sexta-feira, 21 de março de 2014

A filosofia moral – Parte 2


 O cristianismo: interioridade e dever


Diferentemente de outras religiões da Antiguidade, que eram nacionais e políticas, o cristianismo nasce como religião de indivíduos que não se definem por seu pertencimento a uma nação ou a um Estado, mas por sua fé num mesmo e único Deus. Dessa maneira, o cristianismo introduz duas diferenças primordiais na antiga concepção ética:
1. em primeiro lugar, a ideia de que a virtude se define por nossa relação com Deus e não com a cidade nem com os outros. Por esse motivo, as duas virtudes cristãs primeiras e condições de todas as outras são a fé (qualidade da relação de nossa alma com Deus) e a caridade (o amor aos outros e a responsabilidade pela salvação dos outros, conforme exige a fé). As duas virtudes são privadas, isto é, são relações do indivíduo com Deus e com os outros, a partir da intimidade e da interioridade de cada um;

2. em segundo lugar, a afirmação de que somos dotados de vontade livre — ou livre-arbítrio — e que, em decorrência da desobediência do primeiro homem aos mandamentos divinos, o impulso espontâneo de nossa liberdade dirige-se para o mal e para o pecado. Somos seres fracos, pecadores, divididos entre o bem e o mal. O cristianismo considera, portanto, que, em decorrência do pecado original, o ser humano tornou-se uma natureza fraca, incapaz de realizar o bem e as virtudes apenas por sua vontade.

Em outras palavras, enquanto para os filósofos antigos a vontade era uma faculdade racional capaz de dominar e controlar a desmedida passional de nossos apetites e desejos, havendo, portanto, uma força interior (a vontade consciente) que nos tornava morais, para o cristianismo, a própria vontade está pervertida pelo pecado e precisamos do auxílio divino para nos tornarmos morais. Esse auxílio é trazido pela lei divina revelada ou pelos mandamentos diretamente ordenados por Deus aos homens e que devem ser obedecidos obrigatoriamente, sem nenhuma exceção.

A ideia de dever

A concepção cristã introduz uma nova ideia na moral: a ideia do dever, isto é, a ideia de que a virtude é a obrigação de cumprir o que é ordenado pela lei divina.

Por meio da revelação aos profetas (Antigo Testamento) e de Jesus Cristo (Novo Testamento), Deus tornou sua vontade e sua lei manifestas aos seres humanos, definindo eternamente o bem e o mal, a virtude e o vício, a felicidade e a infelicidade, a salvação e o castigo. Para obedecer à lei divina, três virtudes são necessárias: fé, esperança e caridade. São as virtudes teologais, isto é, referidas à nossa relação com Deus.

·   Teologais: relativo a ciência ou estudo que se ocupa de Deus

Há, porém, virtudes que se referem à nossa força de alma ou ao nosso interior. Assim como para guiar-se no mundo os humanos inventaram os quatro pontos cardeais, assim também a lei divina define quatro virtudes cardeais que devem guiar nossos passos no mundo moral: coragem, justiça, temperança e prudência.
Além delas, o cristianismo define virtudes que concernem ao nosso comportamento exterior ou à nossa conduta, as virtudes morais: sobriedade, prodigalidade, trabalho, castidade, mansidão, modéstia generosidade. Em oposição a elas, define os principais vícios, conhecidos como os sete pecados capitais: gula, avareza, preguiça, luxaria, ira (ou cólera), soberba (ou orgulho) e inveja.

·   Prodigalidade: ato de repartir ou oferecer com largueza (p.ex., dinheiro); generosidade.

A ideia de intenção

O dever não se refere apenas aí ações visíveis mas também às intenções invisíveis, que passam a ser julgadas eticamente. Eis por que um cristão, quando se confessa, obriga-se a confessar pecados cometidos por atos, palavras e intenções.
Natureza humana e dever

0 cristianismo introduz a ideia do dever para resolver um problema ético, qual seja, oferecer um caminho seguro para nossa vontade, que, sendo livre, mas fraca, sente-se dividida entre o bem e o mal. No entanto, essa ideia cria um problema novo.

Se o sujeito moral é aquele que encontra em sua consciência as normas da conduta virtuosa, submetendo-se apenas ao bem e jamais a poderes externos à consciência, como falar em comportamento ético por dever? Este não seria o poder externo de uma vontade externa (Deus), que nos domina e nos impõe suas leis, forçando-nos a agir em conformidade com regras vindas de fora de nossa consciência?
Em outras palavras, se a ética exige um sujeito autônomo, a ideia de dever não introduziria a heteronomia, isto é, o domínio de nossa vontade e de nossa consciência por um poder estranho a nós?

·  Heteronomia: segundo Kant (1724-1804), sujeição da vontade humana a impulsos passionais, inclinações afetivas ou quaisquer outras determinações que não pertençam ao âmbito da legislação estabelecida pela consciência moral de maneira livre e autônoma



  
Carreira e influências

O papa Alexandre VI morreu em 1503, e seu sucessor, o papa Júlio II, era outro homem forte e bem-sucedido que fascinou Maquiavel com sua capacidade militar e astúcia. Mas a tensão entre a França e o papado levou Florença a lutar com os franceses contra o papa e seus aliados, os espanhóis. Os franceses perderam a guerra - e Florença também. Em 1512, os espanhóis dissolveram o governo da cidade-estado, os Médicis retornaram, e instaurou-se uma virtual tirania sob o cardeal Mediei. Maquiavel foi exonerado de seu cargo oficial e ficou exilado em sua fazenda florentina. Sua carreira política poderia ter se renovado sob o domínio dos Médicis, mas em fevereiro de 1513, falsamente implicado numa trama contra o clã governante, foi torturado, multado e aprisionado.

Maquiavel saiu da prisão em um mês, mas suas chances de recolocação eram pequenas. Suas tentativas de conseguir um novo cargo político deram em nada. Decidiu então presentear o chefe da família Mediei em Florença, Juliano, com um livro. Na época em que o texto ficou pronto, Juliano tinha morrido, o que fez Maquiavel mudar a dedicatória para o sucessor, Lorenzo.


O príncipe

O livro de Maquiavel, O príncipe, era espirituoso, cínico e revelava fina compreensão da Itália em geral, e de Florença, em particular. Nele, Maquiavel inicia seu argumento de que os objetivos de um governante justificam os meios usados para obtê-los. O príncipe se diferenciava de outros livros do gênero por sua resoluta rejeição da moralidade cristã. Os valores cristãos deviam ser postos de lado, se atrapalhassem o caminho.

Maquiavel escreveu sobre as virtudes dos príncipes, elas eram os poderes e funções que diziam respeito ao domínio político. A raiz latina de virtú também se relaciona com "virilidade", e isso embasou o que Maquiavel tinha a dizer em relação ao próprio príncipe e ao Estado.

Parte da tese de Maquiavel era que um soberano não poderia ser limitado pela moralidade, mas deveria fazer o que for necessário para assegurar sua própria glória e o sucesso do Estado que governa: uma abordagem que se tornou conhecida como realismo.

Os principais meios a serem evitados consistem naqueles que fariam o povo odiar seu príncipe. O povo pode amá-lo e temê-lo -preferivelmente ambos, dizia Maquiavel, embora seja mais importante para um príncipe ser temido do que amado.

Nos casos em que Maquiavel não acredita que os fins justificam os meios, essa regra se aplica somente aos príncipes. A conduta adequada dos cidadãos do Estado não é de modo algum a mesma de um príncipe. Mas mesmo em relação aos cidadãos comuns, Maquiavel desdenhou da moralidade convencional cristã, considerada fraca e imprópria para uma cidade sólida.


Príncipe ou república

Há razões para suspeitar que O príncipe não representava ideias do próprio Maquiavel. Talvez o mais importante seja a disparidade entre as teorias que ele contém e as expressas em outra obra principal, Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. Nos Discursos, Maquiavel defendeu a república como regime ideal que deve ser instituído quando um razoável grau de igualdade existe ou pode ser estabelecido. Um principado só seria apropriado quando a igualdade não existe num Estado e não pode ser introduzida. Pode-se argumentar que O príncipe representava as ideias genuínas de Maquiavel sobre como o soberano deve governar em tais casos; se principados são às vezes um mal necessário, melhor que sejam tão bem administrados quanto possível. Além disso, Maquiavel acreditava que Florença estava em tal agitação política que precisava de um governante forte para deixá-la em ordem.



Rousseau e a moral do coração

Um dos filósofos que procurou resolver o problema do dever cristão foi Jean-Jacques Rousseau, no século XVIII. Para ele, a consciência moral e o sentimento do dever são inatos, são "a voz da natureza" e o "dedo de Deus" em nosso coração. Apesar do pecado do primeiro homem, conservamos em nosso coração vestígios da bondade original e por isso nascemos puros e bons, dotados de generosidade e de benevolência para com os outros. Se o dever parece ser uma imposição e uma obrigação externa, imposta por Deus aos humanos, é porque nossa bondade natural foi pervertida pela sociedade, quando esta criou a propriedade privada e os interesses privados, tornando-nos egoístas, mentirosos e destrutivos. Foi ao dar nascimento à razão utilitária ou à razão dos interesses que a sociedade silenciou a bondade natural do coração humano.

Assim, longe de ser uma imposição externa, o dever simplesmente é o que nos força a recordar nossa boa natureza originária, que ficaria para sempre escondida sob os interesses da razão se o dever não nos fizesse recuperá-la. Obedecendo ao dever, estamos obedecendo a nós mesmos, aos nossos sentimentos e nossas emoções, e não à razão, pois esta, privilegiando a utilidade e o interesse individuais, é responsável pela sociedade egoísta e perversa.

Uma outra resposta ao mesmo problema, também no final do século XVIII, foi trazida por Kant. Opondo-se à "moral do coração" de Rousseau, Kant volta a afirmar o papel da razão na ética. Não existe bondade natural. Por natureza, diz Kant, somos egoístas, ambiciosos, destrutivos, agressivos, cruéis, ávidos de prazeres que nunca nos saciam e pelos quais matamos, mentimos, roubamos. É justamente por isso que precisamos do dever para nos tornarmos seres morais.
As respostas de Rousseau e de Kant, embora diferentes, procuram resolver a mesma dificuldade, qual seja, explicar por que o dever e a liberdade da cons­ciência moral são inseparáveis e compatíveis. A solução de ambos consiste em considerar o dever como algo que nasce em nosso interior, proposto pelo coração (Rousseau) ou pela razão (Kant), desfazendo, assim, a impressão de que ele nos seria imposto de fora, por uma vontade estranha à nossa.

Comparando Aristóteles e cristianismo

Quando examinamos as virtudes definidas pelo cristianismo, descobrimos que, embora as virtudes aristotélicas não sejam afastadas, deixam de ser as mais relevantes. Observamos, assim, o aparecimento de virtudes novas, concernentes à relação do crente com Deus (virtudes teologais), à posição da justiça e da prudência como virtudes particulares (virtudes que, para Aristóteles, não eram particulares, pois a justiça é o resultado da virtude e não uma das virtudes, e a prudência é a condição de todas as virtudes), à substituição da amizade pela caridade (entendida como amor ao próximo e esse amor como responsabilidade pela salvação do outro).
Podemos também observar que o que Aristóteles chamava de vício é transformado em pecado, portanto, em algo voltado para a relação do crente com a lei divina. Quanto às virtudes morais, encontramos entre elas uma que, para Aristóteles, era um vício — a modéstia —, além de verificarmos o aparecimento de virtudes ignoradas ou desconhecidas por Aristóteles, como a humildade e a castidade.
Com o cristianismo, surge também como virtude algo que, para um grego ou um romano, jamais poderia fazer parte dos valores do homem livre: o trabalho. Em contrapartida e como consequência, o ócio, valorizado pelos antigos e considerado pela sociedade escravista greco-romana como condição para o exercício da filosofia e da política, torna-se, a partir de então, o vício da preguiça.


Referências:
CHAUI, Marilena. Filosofia: Novo Ensino Médio, Volume único. São Paulo: Ática, 2010, p. 215-218.
BUCKINGHAM, Will; BURNHAM, Douglas. O livro da Filosofia. São Paulo: Globo, 2011, p. 102-107.