segunda-feira, 15 de maio de 2017

NIETZSCHE – SOBRE FELICIDADE


TRECHOS DA OBRA DE NIETZSCHE – SOBRE FELICIDADE

Sofrimento

(...) o estreito caminho do nosso próprio céu passa sempre pela volúpia do nosso próprio inferno. (...) felicidade e desgraça são duas irmãs gêmeas que crescem ao mesmo tempo ou, como sucede convosco, que ao mesmo tempo ficam pequenas! (NIETZSCHE, A Gaia Ciência, 2012, p.176)

371 Nós, os incompreensíveis — Reclamamos, alguma vez, de sermos mal compreendidos, desconhecidos, confundidos, caluniados, mal ouvidos ou ignorados? Eis nosso destino — e por muito tempo ainda!, digamos, a nossa modéstia, até o ano de 1901 — é também o nosso título de honra; não nos daríamos um respeito considerável se desejássemos introduzir alguma modificação no caso. Confundem-nos com outros: é que crescemos, é que não paramos de mudar, de fazer estalar velhas cascas, de criar pele nova em todas as primaveras, de nos tornarmos incessantemente mais novos, mais futuros, mais altos e mais fortes, e de enterrar mais fortemente as nossas raízes nas profundezas — no mal — ao mesmo tempo em que abraçamos o céu de uma forma mais apaixo­nada, mais vasta, e aspiramos à sua luz — com todos os nossos ramos, com todas as nossas folhas — mais avidamente. Crescemos como a árvore cresce — algo difícil de compreender, como toda e qualquer vida! — não cresceremos apenas em um só lugar, mas por todos os lados, não em um sentido, mas em todos ao mesmo tempo, em cima, em baixo, dentro, fora, a nossa força cresce ao mesmo tempo no tronco, nos ramos e nas raízes, já não temos liberdade de fazer nada separadamente, de ser nada separadamente... Assim é o nosso destino, como já disse: crescemos até às alturas e, mesmo admitindo que talvez seja para nossa desgraça — pois nos aproxi­mamos sempre mais dos raios! — nem assim deixamos de tirar a glória disso; é apesar de tudo um destino que não partilhamos, que não queremos partilhar, é o destino das alturas, nossa fatalidade... (NIETZSCHE, A Gaia Ciência, 2012, p.219)

Amor fati

(...) vou dizer qual é o pensamento que deve tornar-se a razão, a garantia e a doçura de toda a existência que ainda terei! Desejo aprender cada vez mais a ver o belo na necessidade das coisas: é assim que serei sempre daqueles que tornam as coisas belas. Amor fati (amor ao destino): seja assim, de agora em diante, o meu amor. Não pretendo fazer a guerra ao que é feio. Não pretendo acusar, nem mesmo os acusadores. Desviarei o meu olhar, será essa, de agora em diante, a minha única negação! E, em uma palavra, portanto: não quero, a partir de hoje, ser outra coisa senão uma pessoa que diz Sim! (NIETZSCHE, A Gaia Ciência, 2012, p.142-143)

A vida de todos os dias, de todas as horas, parece apenas que procura nos provar sem cessar essa tese; seja como for, bom ou mau tempo, perda de amigos, doença, calúnia, carta que não chega, esfoladela, simples olhar que se lança a uma loja, argumento que outra pessoa vos opõe, livro que se abre, sonho, duplicidade... tudo, tudo se revela a breve prazo ou imediatamente como uma dessas coisas que "tinha de acontecer"... tudo está carregado de um sentido, profundo, de uma profunda utilidade; e isso precisamente para nós! (...) Não pensemos também muito bem da destreza da nossa sabedoria se nos acontece, por momentos, ser surpreendidos pela maravilhosa harmonia que nasce do toque do nosso instrumento, demasiado bela para que ousemos atribuir-nos o seu mérito. Alguém vem, com efeito, às vezes, tocar conosco...é o nosso querido acaso: guia-nos as mãos fortuitamente, e a mais sábia providência não poderia imaginar mais bela música do que esta que nasce então sob a nossa louca mão. (NIETZSCHE, A Gaia Ciência, 2012, p.143-144)

Eterno retorno

341 O peso mais pesado — E se um dia ou uma noite, um demônio se introduzisse na tua suprema solidão e te dissesse: "Esta exis­tência, tal como a levas e a levaste até aqui, vai-te ser necessário recomeçá-la sem cessar, sem nada de novo, ao contrário, a menor dor, o menor prazer, o menor pensamento, o menor suspiro, tudo o que pertence à vida voltará ainda a repetir-se, tudo o que nela há de indizivelmente grande ou pequeno, tudo voltará a acontecer, e voltará a verificar-se na mesma ordem, seguindo a mesma impiedosa sucessão, esta aranha também voltará a aparecer, este lugar entre as árvores, e este instante, e eu também! A eterna ampulheta da vida será invertida sem descanso, e tu com ela, ínfima poeira das poei­ras!"... Não te lançarias por terra, rangendo os dentes e amaldi­çoando esse demônio? Ou já vivestes um instante prodigioso, e então lhe responderias: "Tu és um deus; nunca ouvi palavras tão divinas!". Caso este pensamento te dominasse, talvez te transfor­masse e talvez te aniquilasse; perguntarias a propósito de tudo: "Queres isto outra vez e por repetidas vezes, até o infinito?". E pesaria sobre tuas ações com um peso decisivo e terrível! Ou então, como seria necessário que amasse a ti mesmo e que amasse a vida para nunca mais desejar nada além dessa suprema confirmação! (NIETZSCHE, A Gaia Ciência, 2012, p.179)

Quem, semelhante a mim, com algum desejo enigmático, se esforçou longamente por pensar a fundo o pessimismo e salvá-lo da estreiteza e da simplicidade meio cristã (...); quem realmente olhou ao menos uma vez um olho asiático e mais que asiático para o interior e para o fundo desse modo de pensar que, dentre todos os modos de pensar possíveis, é o que mais nega o mundo – além do bem e do mal, e não mais, como Buda e Schopenhauer, sob o encanto e na ilusão da moral –, essa talvez tenha, precisamente com isso, sem que propriamente o quisesse, aberto os olhos para o ideal contrário: para o ideal do homem mais pleno de alegria, mais vivo mais afirmador do mundo, que não somente aprendeu a contentar-se e suportar aquilo que foi e que é, mas que o quer novamente tal como foi e é, por toda a eternidade, exclamando insaciavelmente da capo [do início], não apenas para si, mas para a peça e o espetáculo inteiros, e não somente para um espetáculo, mas no fundo para aquele que justamente precisa desse espetáculo e faz com que ele seja preciso: pois ele sempre precisa de si outra vez e faz com que seja preciso — O quê? E isto não seria – circulus vitiosus [círculo vicioso] deus? (NIETZSCHE, Além do bem e do mal, 2010, p. 81)

Felicidade

Algumas teses. — Ao indivíduo, enquanto busca sua felicidade, não se deve dar prescrições sobre o caminho para a felicidade: pois a felicidade individual brota de leis próprias, desconhecidas de todos, e preceitos externos podem apenas inibi-la, impedi-la. — Os preceitos chamados de "morais" são, na verdade, dirigidos contra os indivíduos, e não querem abso­lutamente a sua felicidade. Tampouco referem-se eles à "feli­cidade e bem-estar da humanidade" — palavras a que não é possível ligar conceitos rigorosos, e menos ainda usar como estrelas-guia no escuro oceano dos empenhos morais. — Não é verdade que a moralidade, como quer o preconceito, seja mais propícia ao desenvolvimento da razão que a imoralidade. — Não é verdade que o objetivo inconsciente, no desenvolvimento de todo ser consciente (bicho, homem, humanidade, etc.), seja sua "felicidade suprema": trata-se antes de alcançar, em todos os estágios do desenvolvimento, uma felicidade particular e in­comparável, nem superior nem inferior, mas simplesmente pe­culiar. Desenvolvimento não busca felicidade, mas desenvolvi­mento e nada mais. — Apenas se a humanidade tivesse um objetivo geralmente reconhecido poderia alguém propor: "De tal e tal modo deve-se agir"; atualmente não há esse objetivo. Logo, não se deve relacionar as exigências da moral à humanidade, o que é insensatez e diversão. — Recomendar à humanidade um objetivo é algo bem diferente: então ele é concebido como algo que está ao nosso bel-prazer; supondo que agradasse à humanida­de a proposta, ela poderia então dar-se uma lei moral, igualmen­te a partir de seu bel-prazer. Mas até agora a lei moral devia estar acima do bel-prazer: não queríamos propriamente dar-nos essa lei, e sim toma-la de alguma parte, ou achá-la em algum lugar, ou deixá-la impor-se de alguma parte. (NIETZSCHE, Aurora, 2016, p.73)

Louvor e censura. — Se uma guerra tem desenlace infeliz, pergunta-se pelo "culpado" da guerra; se termina com vitória, elogia-se quem a instigou. Sempre é buscada a culpa quando há um fracasso, pois este traz consigo um mau humor a que se aplica automaticamente um único remédio: uma nova excitação do sentimento de poder — e esta se acha na condenação do "culpado". Esse culpado não é um bode expiatório da culpa de outros: é a vítima dos fracos, humilhados, abatidos, que de algum modo querem provar a si mesmos que ainda têm força. Também condenar a si próprio pode ser um meio de readquirir o sentimento de força após a derrota. — Já a glorificação do instigador é, com frequência, o resultado igualmente cego de outro impulso que procura sua vítima — e desta vez o sacrifício é doce e convidativo até para a vítima —: quando o sentimento de poder de um povo, uma sociedade, está saturado em virtude de um grande, fascinante êxito, e sobrevêm um cansaço do triun­fo, uma parte do orgulho é abandonada; avulta o sentimento da devoção, que busca seu objeto. — Ao sermos louvados ou censu­rados, nisto somos geralmente oportunidades, e com frequência oportunidades agarradas arbitrariamente, para nossos próximos descarregarem o impulso de louvor ou censura neles acumu­lado: nos dois casos lhes prestamos um benefício, no qual não temos mérito e pelo qual não têm gratidão. (NIETZSCHE, Aurora, 2016, p.101-102)

NIETZSCHE – SOBRE A MORAL





TRECHOS DAS OBRAS DE NIETZSCHE – SOBRE A MORAL

Não há quaisquer fenômenos morais, mas apenas uma interpretação moral de fenômenos..... (NIETZSCHE, Além do bem e do mal, 2010, p. 97)

“(..) a história da luta da moral contra os instintos fundamentais da vida é a maior imoralidade que até hoje existiu sobre a terra...” (NIETZSCHE, Vontade potência, 2011, p.274)

Chamo um animal, uma espécie, um indivíduo de corrompidos quando eles perdem os seus instintos, quan­do escolhem, quando preferem o que lhes é prejudicial. Uma história dos "sentimentos superiores", dos "ideais da humanidade" – e é possível que eu tenha de narrá-la – também seria quase a explicação de por que o homem está tão corrompido.

Considero a própria vida como instinto de cresci­mento, de duração, de acumulação de forças, como ins­tinto para o poder, onde falta a vontade de poder, ocorre declínio. Minha tese é a de que todos os valores supremos da humanidade carecem dessa vontade – que sob os no­mes mais sagrados há valores de declínio, valores niilistas no comando. (NIETZSCHE, O Anticristo, 2016, p.18)

Os animais e a moral — As práticas que são requeridas na sociedade refinada: evitar cuidadosamente o ridículo, o chamativo, o pretensioso, relegar tanto suas virtudes como suas veementes cobiças, mostrar-se como igual, inserir-se, dimi­nuir-se — tudo isso que é a moral social encontra-se, grosso modo, em toda parte, até na profundeza do mundo animal, — e apenas nessa profundeza enxergamos a intenção por trás dessas gentis precauções: quer-se escapar aos perseguidores e ser favo­recido na busca da presa. Por isso os animais aprendem a se dominar e a dissimular de tal modo que alguns, por exemplo, adéquam suas cores à cor do ambiente (mediante a chamada "função cromática"), fazem-se de mortos ou assumem as formas e cores de outro animal ou de areia, folhas, liquens, fungos (aquilo que os pesquisadores ingleses designam por mimicry [mimetismo]). Dessa maneira o indivíduo se esconde na genera­lidade do conceito "homem" ou na sociedade, ou se adéqua a governantes, classes, partidos, opiniões da época ou do ambiente: e para todas as sutis maneiras de nos pormos felizes, gra­tos, fortes, enamorados, encontra-se facilmente o símile animal. Também o sentido para a verdade, que é, no fundo, o sentido para a segurança, o homem tem em comum com os animais: não queremos nos deixar enganar, não queremos induzir a nós próprios em erro, ouvimos desconfiados a conversa de nossas próprias paixões, contemo-nos e ficamos à espreita de nós mesmos; tudo isso o animal entende como o homem, também nele o autodomínio nasce do sentido para o real (da pru­dência). E igualmente observa os efeitos que produz na noção que têm os outros animais, aprende a olhar de volta para si a partir dela, a apreender-se "objetivamente", tem seu grau de autoconhecimento. O animal julga os movimentos de seus rivais e amigos, memoriza as peculiaridades deles, orienta-se por elas: no tocante a indivíduos de determinada espécie renuncia definitivamente à luta, e também percebe, na aproximação de algumas variedades de animais, a intenção de paz e de acordo. Os primórdios da justiça, assim como da prudência, da modera­ção, da valentia — em suma, tudo aquilo que designamos pelo nome de virtudes socráticas é animal: uma consequência dos im­pulsos que ensinam a procurar alimento e escapar aos inimigos. Se considerarmos que também o homem superior apenas se elevou e refinou no tipo da alimentação e na ideia do que lhe é hostil, será lícito caracterizar todo o fenômeno da moral como animal. (NIETZSCHE, Aurora, 2016, p.28-29)

Durante a mais longa época da história humana – a chamada época pré-histórica –, o valor ou o desvalor de uma ação era derivado de suas consequências (...) Chamamos esse período de período pré-moral da humanidade: o imperativo ‘conhece-te a ti mesmo!’ ainda era desconhecido naquele tempo. Nos dez últimos milênios, entretanto, em algumas grandes regiões da Terra se chegou passo a passo ao pon­to de deixar a origem da ação, e não mais as consequên­cias, decidir acerca de seu valor (...) a origem de uma ação foi interpretada no mais preciso sentido de origem a partir de uma intenção; chegou-se à crença unânime de que o va­lor de uma ação reside no valor de sua intenção. A intenção como a inteira origem e pré-história de uma ação: sob este preconceito se louvou, repreendeu, condenou e também se filosofou moralmente sobre a Terra quase até a época mo­derna. – Não teríamos hoje, porém, chegado à necessidade de mais uma vez nos decidirmos acerca de uma inversão e de um deslocamento radical dos valores, graças a uma repetida autorreflexão e aprofundamento do homem – não es­taríamos no limiar de um período que, negativamente, po­deria ser designado em primeiro lugar de extramoral: hoje, quando pelo menos entre nós, imoralistas, se faz sentir a suspeita de que precisamente naquilo que não é intencional numa ação reside o seu valor decisivo, e de que toda a sua intencionalidade, tudo que dela pode ser visto, sabido, ‘co­nhecido’, ainda pertence à sua superfície e epiderme – a qual, como toda epiderme, revela algo, mas oculta muito mais? Em suma, acreditamos que a intenção é apenas um sinal e um sintoma que primeiro precisa de interpretação, um sinal, além disso, que significa coisas demais e, por conseguinte, não significa quase nada por si mesmo – que a moral, no sentido em que ela foi entendida até agora, portanto, como moral de intenções, foi um preconceito, uma precipitação, uma provisoriedade talvez, uma coisa mais ou menos da categoria e da alquimia, mas em todo caso algo que precisa ser superado. (NIETZSCHE, Além do bem e do mal, 2010, p. 57-58-59)

A refinada crueldade como virtude. — Eis uma moralidade que se baseia inteiramente no impulso para a distinção — não pensem muito bem dela! Pois que impulso é esse e qual o pensamento por trás dele? Queremos que a nossa simples vista cause dor ao outro e desperte sua inveja, o sentimento de impo­tência e de declínio; queremos fazê-lo saborear a amargura de seu fado, ao deixar-lhe na língua uma gota de nosso mel e fixá-lo nos olhos agudamente e com maldosa alegria, ante o suposto benefício. Esse tornou-se humilde e perfeito em sua humilda­de — procurem aqueles que há muito ele quer assim torturar! já os encontrarão! Aquele mostra-se piedoso com os animais e é admirado por isso — mas há certas pessoas nas quais, justa­mente com isso, ele quis dar livre curso à sua crueldade. Ali está um grande artista: a volúpia que antecipadamente sentiu com a inveja dos rivais derrotados não deixou sua energia esmorecer, até ele tornar-se grande — quantos instantes amargos a sua grandeza não custou a outras almas! A castidade da freira: que olhares castigadores ela não lança ao rosto das mulheres que vivem de outra forma! quanto prazer da vingança há nesses olhos! — O tema é breve, as variações em torno dele podem ser inúmeras, mas dificilmente tediosas — pois é ainda uma novi­dade paradoxal e quase dolorosa que a moralidade da distinção seja, em última instância, o prazer na crueldade refinada. Em última instância — isto significa aqui: sempre na primeira gera­ção. Pois quando o hábito de uma ação que distingue é herdado, o pensamento por trás dela não é herdado (apenas sentimentos são hereditários, não pensamentos): e, desde que a educação não o introduza novamente, na segunda geração não há mais prazer na crueldade; e sim apenas prazer no hábito como tal. Esse prazer, porém, é o primeiro estágio do "bem". (NIETZSCHE, Aurora, 2016, p.30-31)

Simulação como dever. — Na maioria das vezes, a bonda­de foi desenvolvida pela demorada simulação que buscava parecer bondade: em todo lugar onde existiu grande poder, viu-se a ne­cessidade de justamente esse tipo de simulação — ela infunde certeza e confiança, e centuplica a verdadeira soma de poder físi­co. A mentira é, se não a mãe, certamente a ama de leite da bondade. Também a honradez foi cultivada sobretudo pela demanda de uma aparência de honradez e probidade: nas aristocracias he­reditárias. O que é simulado por longo tempo torna-se enfim natureza: a simulação acaba por suprimir a si mesma, e órgãos e instintos são os inesperados frutos do jardim da hipocrisia. (NIETZSCHE, Aurora, 2016, p.158)

(...) a história dos sentimentos morais é muito diferente da história dos conceitos morais. Aqueles são poderosos antes da ação, estes depois da ação, em vista da neces­sidade de pronunciar-se sobre ela. (NIETZSCHE, Aurora, 2016, p.33)

Com seus princípios, quer-se tiranizar ou justificar ou honrar ou insultar ou ocultar seus hábitos: – é provável que dois homens com princípios idênticos queiram com eles algo fundamentalmente diferente. (NIETZSCHE, Além do bem e do mal, 2010, p. 93)

Há uma desmedida alegria da bondade que se parece com maldade. (NIETZSCHE, Além do bem e do mal, 2010, p. 107)

Contra os caluniadores da natureza — Que seres desagradáveis estas pessoas em que toda tendência natural se torna rapidamente doença, algo deformante ou mesmo ignomínia! São elas que nos fazem acreditar que as inclinações naturais, os instintos do homem são maus; são elas a causa da nossa injustiça para com a nossa natureza, para com toda a natureza! Não faltam pessoas que teriam o direito de se abandonar às suas inclinações com graça, com despreocupação: mas não o fazem, com receio desta "má essência" imaginária da natureza! (NIETZSCHE, A Gaia Ciência, 2012, p.152)

“Crítica da moral da décadence. – Uma moral "altruísta", uma moral em que o egoísmo definha, é, de qualquer maneira, um mau sinal. Isso vale para o indivíduo, isso vale sobretudo para povos. Falta o melhor quando começa a faltar egoísmo. Escolher instintivamente o que é danoso para si, ser atraído por motivos "desinteressados", é quase a fórmula da décadence. "Não buscar o seu benefício" — isso é apenas a folha de parreira moral que encobre um fato muito diferente, a saber, um fato fisiológico: "Não sei mais encontrar o meu benefício"... Desagregação dos instintos! — Quando o homem se torna altruísta, é o seu fim. — Em vez de dizer, ingenuamente, "Eu não valho mais nada", a mentira moral na boca do décadent diz: "Nada tem valor — a vida não vale nada"...” (NIETZSCHE, Crepúsculo dos ídolos, 2010, p.103)

A vingança sobre o espirito e outros subentendidos da moral — A moral — onde acreditais que possa ter os seus mais perigosos e pérfidos advogados?... Eis aqui um homem que não teve bom êxito, que não tem espírito o bastante para dele se alegrar e que recebeu a cultura exata apenas para dar-se conta disso; aborrece-se, enjoa-se, despreza-se; privado, por uma pequena herança que recebeu, da última consolação, a "bênção do trabalho", do esquecimento de si na "tarefa cotidiana"; é um ser que, no fundo, tem vergonha da sua existência — talvez, ainda por cima, mantenha alguns pequenos vícios no fundo da alma; por outro lado, não pode impedir-se de se corromper cada vez mais, de se tornar cada vez mais irritável e vaidoso em virtude de leituras a que não tem direito, ou a frequências demasiado intelectuais para as suas capacidades digestivas: envenenado até à medula — pois para um malogrado desta natureza o espírito torna-se veneno, e veneno a cultura, a solidão e a higiene — prostra-se finalmente em um estado de rancor, em uma vontade crônica de se vingar... O que pensais que tenha necessidade, que tenha absolutamente necessidade para conservar diante dele mesmo uma aparência de superioridade sobre espíritos mais fortes do que o seu, para se dar, pelo menos em imaginação, a volúpia da vingança satisfeita? A moralidade, sempre ela; pode pôr-se a mão no fogo, precisa das grandes frases da moral, do grande tambor da justiça, da sabedoria, da santidade, da virtude; tem necessidade do estoicismo, da atitude (oh, estoicismo, como escondes bem o que não tem!...), precisa da capa do silêncio superior, da afabilidade, da suavidade, e outros envoltórios idealistas sob os quais vemos caminhar os contempladores incuráveis deles próprios, que são também os incuráveis vaidosos. Não me entendam mal: acontece, às vezes, que estes inimigos natos do espírito dão nascença às extraordinárias amostras humanas que o povo honra com o nome de santos e de sábios; são eles que produzem os monstros da moral que fazem barulho, que fazem história: um Santo Agostinho, por exemplo. (NIETZSCHE, A Gaia Ciência, 2012, p.206)

(...) moralidade não é outra coisa (e, portanto, não mais!) do que obediência a costumes, não importa quais sejam; mas cos­tumes são a maneira tradicional de agir e avaliar. Em coisas nas quais nenhuma tradição manda não existe moralidade; e quanto menos a vida é determinada pela tradição, tanto menor é o cír­culo da moralidade. O homem livre é não moral, porque em tudo quer depender de si, não de uma tradição: em todos os estados originais da humanidade, "mau" significa o mesmo que "individual", "livre", "arbitrário", "inusitado", "inaudito", "im­previsível". Sempre conforme o padrão desses estados originais: se uma ação é realizada não porque a tradição ordena, mas por outros motivos (a utilidade individual, por exemplo), mesmo por aqueles que então fundaram a tradição, ela é considerada imoral e assim tida mesmo por seu ator: pois não foi realizada em obe­diência à tradição. O que é a tradição? Uma autoridade superior, a que se obedece não porque ordena o que nos é útil, mas por­que ordena. — O que distingue esse sentimento ante a tradição do sentimento do medo? Ele é o medo ante um intelecto supe­rior que manda, ante um incompreensível poder indeterminado, ante algo mais do que pessoal — há superstição nesse medo. — Originalmente fazia parte do domínio da moralidade toda a educação e os cuidados da saúde, o casamento, as artes da cura, a guerra, a agricultura, a fala e o silêncio, o relacionamento de uns com os outros e com os deuses: ela exigia que alguém ob­servasse os preceitos sem pensar em si como indivíduo. (NIETZSCHE, Aurora, 2016, p.17)

“Em todas as épocas se quis "melhorar" os homens: isso, sobretudo, foi chamado de moral. (...) Chamar a domesticação de um animal de "melhoramento" soa aos nossos ouvidos quase como uma piada. Quem sabe o que acontece nas exposições de feras duvida que nelas a besta seja "melhorada". Ela é enfraquecida, tornada menos daninha, transformada numa besta doentia através do afeto depressivo do medo, através da dor, dos ferimentos, da fome. — Não é diferente com o homem domesticado que o sacerdote "melhorou"”. (NIETZSCHE, Crepúsculo dos ídolos, 2010, p.60-61)

A moral ensina ao homem a ser função do rebanho, e a se atribuir valor somente como função. Uma vez que as condições de conserva­ção eram muito diferentes de uma comunidade para outra, resultam morais muito diferentes; e, se considerarmos todas as transformações essenciais que os rebanhos e as comunidades, os Estados e as sociedades são ainda chamados a sofrer, pode-se profetizar que haverá ainda morais muito divergentes. Moralidade é o instinto gregário no indivíduo. (NIETZSCHE, A Gaia Ciência, 2012, p.111)

“... Não podemos hoje imaginar a degenerescência moral separada da degenerescência fisiológica: a primeira nada mais é que o conjunto de sintomas da segunda: somos necessariamente maus, como somos necessariamente doentes... Mau: a palavra exprime aqui certas incapacidades que são fisiologicamente ligadas ao tipo da degenerescência: por exemplo, a fraqueza da vontade, a incerteza e até a multiplicidade da "pessoa", a impotência para suprimir a reação a uma excitação qualquer e de "dominar-se", o constrangimento diante de toda espécie de sugestão de uma vontade estranha. O vício não é a causa; o vício é a consequência.”(NIETZSCHE, Vontade potência, 2011, p.269) 

“A moral religiosa — A emoção, o grande desejo, as paixões do poder, do amor, da vingança, da posse: os moralistas querem extingui-los, arrancá-los, para ‘purificar’ a alma.

É a mesma lógica que diz: ‘Se teu membro te escandaliza, arranca-o’.

Sua conclusão é sempre: somente o homem castrado pode tornar-se um homem bom.” (NIETZSCHE, Vontade potência, 2011, p.306-307)

“A partir de todas as idiossincrasias [características peculiares] morais, vejo uma avaliação fundamentalmente diferente: não conheço essas separações absurdas entre o gênio e o mundo da vontade moral e imoral. O homem moral é de uma espécie inferior ao homem imoral, de uma espécie mais fraca; é um tipo segundo a moral, não é porém seu próprio tipo; é uma cópia, uma boa cópia ao rigor — a medida de seu valor reside fora dele. Estimo o homem pela quantidade de potência e pela plenitude de sua vontade; e não conforme o enfraquecimento e a purificação da vontade; considero uma filosofia que ensina a negação da vontade como uma doutrina de aviltamento e de calúnia... Julgo a potência de uma vontade segundo o grau de resistência, de dor, de tortura que ela suporta para convertê-las em seu favor; não censuro à existência seu caráter mau e doloroso, mas espero que esse caráter se tornará um dia mais mau e mais doloroso ainda...” (NIETZSCHE, Vontade potência, 2011, p.475)






“O constrangimento da vontade era tido como o que dava ao ato valor superior: Deus era considerado então o autor...

Vem o contramovimento: o dos moralistas, sempre com o mesmo preconceito, o de crer que somos responsáveis pelos menores acontecimentos, se os quisermos. O valor do homem está fixado como valor moral: portanto, seu valor deve ser causa prima; logo, deve haver aí um princípio no homem, o "livre-arbítrio", que seria a causa prima. Há sempre a segunda intenção: se o homem não é a causa prima enquanto vontade, é irresponsável, consequentemente, não é da competência da moral. A virtude e o vício serão então automáticos e inconscientes.” (NIETZSCHE, Vontade potência, 2011, p.266)

“O erro do livre-arbítrio. — (...) Em todo lugar onde se procura responsabilidades, costuma ser o instinto de querer punir e julgar que está a procura delas. O devir foi despido de sua inocência quando se busca explicar pela vontade, pelas intenções ou por atos de responsabilidade alguma maneira de ser: a doutrina da vontade foi inventada essencialmente com a finalidade de punir, ou seja, de querer encontrar culpados. (...) O cristianismo é uma metafísica de carrasco...

(...) Fomos nós que inventamos a noção de "finalidade": a finalidade está ausente da realidade... Somos necessários, somos um fragmento de destino, pertencemos ao todo, estamos no todo — não há nada que possa julgar, medir, comparar e condenar o nosso ser, pois isso significaria julgar, medir, comparar e condenar o todo... Mas não há nada fora do todo!” (NIETZSCHE, Crepúsculo dos ídolos, 2010, p.57-59)

Há dois tipos de negadores da moralidade. — "Negar a moralidade" — isso pode significar, primeiro: negar que os motivos morais que as pessoas alegam tenham-nas realmente impelido a seus atos — ou seja, a afirmação de que a moralidade consiste em palavras e é parte dos embustes grosseiros ou sutis (embustes de si mesmo, em especial) dos seres humanos, e talvez principalmente dos mais famosos pela virtude. Depois pode significar: negar que os juízos morais repousem sobre verdades. Nesse caso se admite que são realmente motivos da ação, mas que, dessa forma, são os erros, fundamento de todo juízo moral, que impelem os indivíduos a suas ações morais. Este é o meu ponto de vista; mas seria o último a ignorar que em muitíssimos casos a sutil desconfiança do primeiro ponto de vista, ou seja, no espírito de La Rochefoucauld, é também justificada e, certamente, de grande utilidade geral. — Assim, nego a moralidade como nego a alquimia, ou seja, nego os seus pressupostos; mas não que tenha havido alquimistas que acreditaram nesses pres­supostos e agiram de acordo com eles. — Também nego a imo­ralidade: não que inúmeras pessoas sintam-se imorais, mas que haja razão verdadeira para assim sentir-se. Não nego, como é evidente — a menos que eu seja um tolo —, que muitas ações consideradas imorais devem ser evitadas e combatidas; do mes­mo modo, que muitas consideradas morais devem ser praticadas e promovidas — mas acho que, num caso e no outro, por razões outras que as de até agora. Temos que aprender a pensar de outra forma — para enfim, talvez bem mais tarde, alcançar ainda mais: sentir de outra forma. (NIETZSCHE, Aurora, 2016, p.69-70)

O problema que com isso coloco não se refere ao que deve substituir a humanidade na sucessão dos seres (o homem é um final), mas ao tipo de homem que se deve cultivar, se deve querer como sendo o de mais alto valor, mais digno de vida, mais seguro de futuro.

Esse tipo de alto valor já existiu com bastante frequência: mas como um acaso feliz, uma exceção, jamais como algo desejado. Pelo contrário, precisamente ele foi o mais temido, foi até agora quase o temível; – e foi por temor que se quis, se cultivou, se alcançou o tipo contrário: o animal doméstico, o animal de rebanho, o animal doente homem – o cristão... (NIETZSCHE, O Anticristo, 2016, p.15)

domingo, 9 de abril de 2017

NIETZSCHE - VONTADE DE PODER


Trechos das obras sobre vontade de poder

“O prazer e o desprazer são simples consequências, simples fenômenos secundários. O que o homem quer, o que a menor parcela de organismo vivo quer, é um plus de potência. Na aspiração para um fim, há tanto prazer quanto desprazer; daquela vontade o homem busca a resistência, tem necessidade de algo que se lhe oponha... O desprazer, obstáculo da vontade de potência, é, portanto, um fato normal, o ingrediente normal de todo fenômeno orgânico; o homem não o evita, ao contrário, tem contínua necessidade dele: qualquer vitória, qualquer sentimento de prazer, qualquer acontecimento pressupõe uma resistência vencida. (...) O que chamamos nutrição é simplesmente a consequência, a aplicação dessa vontade primitiva de tornar-se mais forte.
Logo, o desprazer não é acompanhado de uma diminuição de nosso sentimento de potência; tão de somenos é esse o caso que, geralmente, trata-se de uma excitação dessa vontade de potência – o obstáculo é o stimulus da vontade de potência.”  (NIETZSCHE, Vontade de potência, 2011, p.388)

Os fisiólogos deveriam refletir ao estabelecer o impulso de autoconservação com o impulso cardinal de um ser orgânico. Algo que é vivo quer sobretudo dar vazão à sua força – a vida mesma é vontade de poder –: a autoconservação é apenas uma das consequências indiretas e mais frequentes disso. (...)” (NIETZSCHE, Além do bem e do mal, 2010, p. 35)

“Todo sentimento que leva a superação é ‘saudável’ e todo sentimento que retrai e faz querer destruir algo é ‘doentio’.
(...) O prazer é um sentimento da potência: quando se excluem as paixões, excluem-se as condições que provocam o sentimento de potência ao mais alto grau, e consequentemente o prazer. A mais alta "razoabilidade" é um estado frio e claro que está longe de provocar aquele sentimento de felicidade que traz consigo toda espécie de embriaguez...” (NIETZSCHE, Vontade de potência, 2011, p.322)

“(...) o prazer é apenas um sintoma do sentimento de que a potência foi atingida, é a percepção de uma diferença (não se aspira ao prazer: este produz-se desde que se atinge ao que se aspirava: o prazer acompanha, ele não põe em movimento); que toda a força é vontade de potência, que não há outra força física, dinâmica ou psíquica...”(NIETZSCHE, Vontade de potência, 2011, p.386)

Sobre a doutrina do sentimento de poder — Ao fazer o bem e mal aos outros exercitamos o nosso poder sobre eles — é, nesse caso, o que queremos! Fazemos mal a quem devemos fazer sentir nosso poder, pois o sofrimento é um meio muito mais sensível, para esse fim, do que o prazer: o sofrimento procura sempre a sua causa enquanto o prazer mostra inclinação para se bastar a si próprio e a não olhar para trás. Ao fazer bem ou ao desejarmos o bem exercemos o nosso poder sobre aqueles que, de alguma forma, já estão na nossa dependência (quer dizer que se habituaram a pensar em nós como suas causas); queremos aumentar o seu poder porque assim aumentamos o nosso, ou queremos mostrar-lhes a vantagem que há em estar em nosso poder; (...) mesmo se arriscarmos a nossa vida, como o mártir [pessoa que sofreu torturas, ou mesmo morte, por não renunciar a qualquer outra crença] pela sua igreja, é um sacrifício que fazemos à nossa necessidade de poder, ou com a finalidade de conservar o nosso sentimento de poder. Quando se sente profundamente que se "possui o verdadeiro", quantas outras posses não se abandonariam para conservar este sentimento! O que não se lança pela borda afora para continuar à superfície, ou seja, continuar "por cima" daqueles que carecem da verdade! Indubita­velmente, é raro que o estado que acompanha o gesto de fazer mal seja tão agradável, tão puramente agradável, como aquele que acompanha o gesto de fazer bem; trata-se de um sinal que revela que ainda nos falta poder ou que trai o nosso desgosto diante desta pobreza, anunciando novos perigos e novas incertezas para o nosso capital de poder, mantendo o nosso horizonte velado por perspecti­vas de vingança, escárnio, punição, malogro. Somente para os ho­mens mais irritáveis, para pessoas mais ávidas do sentimento de poder, pode haver algum prazer em imprimir ao recalcitrante [aquele que demonstra resistência em obedecer] o selo do seu domínio; para aqueles que só veem nisso aborrecimento, é um desprazer o espetáculo de um ser já submetido (tornado objeto de benevolência). Trata-se de saber como o homem acostumou-se a temperar sua vida; é sempre uma questão de gosto: quer que o crescimento de poder seja lento ou brusco, seguro ou perigoso e temerário? Procura-se esta ou aquela especiaria conforme a inclinação do nosso temperamento. Uma presa fácil, para as naturezas orgulhosas, é algo de desprezível; só experimentam um sentimento de bem-estar diante de homens íntegros que poderiam tornar-se seus inimigos, e diante de todas as posses dificilmente acessíveis; muitas vezes duras, para aquele que sofre, porque não o julgam digno do seu esforço e da sua altivez, mas mostram-se tanto mais corteses para com os seus semelhantes com os quais a luta seria certamente honrosa, se aparecesse ocasião para isso. Foi sob o efeito do sentimento de bem-estar que lhe dava esta perspectiva que os homens da casta cavalheiresca se acostumaram a usar uns para com os outros de uma delicadeza requintada. A piedade é o sentimento mais agradável para aqueles que são pouco orgulhosos e que não têm possibilidades de fazer grandes conquistas: a presa fácil — qualquer ser sofredor é presa fácil — é coisa que os encanta. Louva-se a piedade como sendo a virtude das mulheres de vida alegre. (NIETZSCHE, A Gaia Ciência, 2012, p.45-46)

“As funções animais são mil vezes mais importantes que os belos estados de alma e os ápices da consciência: estes últimos são um excedente enquanto não devem ser instrumentos para essas funções animais. Toda a vida consciente, o espírito assim como a alma e o coração, a bondade assim como a virtude, a serviço de quem elas trabalham? A serviço de um aperfeiçoamento, tão grande quanto possível, das funções animais essenciais (os meios de nutrição, de aumento de energia): antes de tudo, a serviço do aumento da vida.
O que chamamos "corpo" e "carne" tem muito mais importância: o resto é um pequeno acessório. Continuar a tecer a tela da vida, de maneira que o fio se torne cada vez mais potente, eis a tarefa.
(...)
A consciência é simplesmente um meio; os sentimentos agradáveis ou desagradáveis também não são mais que meios! De acordo com que avaliamos objetivamente o valor? Somente de acordo com a quantidade de potência aumentada e organizada.” (NIETZSCHE, Vontade de potência, 2011, p.396)

“(...) a vontade não é apenas um complexo de sentir e pensar, mas antes de tudo, ainda um afeto (...). Um homem que quer – ordena a um algo em si que obedece ou que ele acredita que obedece. (...) na medida em que no caso dado somos ao mesmo tempo os mandantes e os obedecentes, e, como obedecentes, conhecemos as sensações de coação, insistência, pressão, resistência, movimento, que costumam iniciar imediatamente após  o ato de vontade; na medida em que por outro lado, temos o hábito de não fazer caso, de nos enganar acerca dessa dualidade graças ao conceito sintético ‘eu’, prendeu-se ao querer ainda toda uma cadeia de conclusões errôneas e, por conseguinte, de falsas valorações da própria vontade — de tal modo que o querente [que quer] acredita de boa-fé que o querer basta para a ação. (...) a aparência se traduziu na sensação de que aí haveria uma necessidade do efeito; em suma, o querente acredita, com um razoável grau de certeza, que vontade e ação, de algum modo, são uma só coisa – ele atribui o êxito, a execução do querer, à própria vontade, gozando com isso de um aumento daquela sensação de poder que todo êxito traz consigo. ‘Livre-arbítrio’ – essa é a expressão para aquele multiforme estado de prazer do querente que ordena e ao mesmo tempo se funde num só com o executante – que, como tal, goza conjuntamente o triunfo sobre as resistências, mas julga consigo mesmo que foi sua própria vontade que verdadeiramente superou as resistências.” (NIETZSCHE, Além do bem e do mal, 2010, p. 40-41)

“O que é bom? –  Tudo o que eleva a sensação de poder, a vontade de poder, o próprio poder no homem.
O que é ruim? – Tudo o que provém da fraqueza.
O que é a felicidade? – A sensação de que o poder cresce, de que uma resistência é superada.
Não o contentamento, porém mais poder; acima de tudo não a paz, mas a guerra; não a virtude, mas a exce­lência (virtude no estilo da Renascença, virtù, virtude sem moralina).
Os fracos e os malogrados [frustrado] devem sucumbir: pri­meira tese de nosso amor à humanidade. E ainda devem ser ajudados nisso.
O que é mais danoso do que qualquer vício? - A compaixão ativa por todos os malogrados e fracos – o cristia­nismo...” (NIETZSCHE, O Anticristo, 2016, p.14)

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

O problema da existência do mal no monoteísmo

Trecho das obras: Sapiens – Uma breve história da humanidade, Antologia de textos de Epicuro e uma explicação sobre Leibniz

A batalha entre o bem e o mal


O politeísmo deu origem não só a religiões monoteístas como também a religiões dualistas. Estas reconhecem a existência de dois poderes opostos: o bem e o mal. Ao contrário do monoteísmo, o dualismo acredita que o mal é um poder independente, nem criado pelo Deus bom e nem subordinado a ele. O dualismo explica que todo o universo é um campo de batalha entre essas duas forças e que tudo que acontece no mundo é parte dessa batalha.
O dualismo é uma visão de mundo muito atraente, porque tem uma resposta simples e sucinta para o famoso problema do mal, uma das preocupações fundamentais do pensamento humano. "Por que há mal no mundo? Por que há sofrimento? Por que acontecem coisas ruins com pessoas boas?" Os monoteístas têm de praticar uma ginástica intelectual para explicar como um Deus onisciente, todo-poderoso e perfeitamente bom permite tanto sofrimento no mundo. Uma explicação conhecida é que essa é a maneira que Deus encontrou de dotar os humanos de livre-arbítrio. Se não houvesse mal, os humanos não poderiam escolher entre o bem e o mal; por conseguinte, não haveria livre-arbítrio. Isso, no entanto, é uma resposta pouco intuitiva que imediatamente levanta uma série de novas perguntas. O livre-arbítrio permite que os humanos escolham o mal. Com efeito, muitos escolhem o mal, e, de acordo com o relato monoteísta padrão, essa escolha deve ter como consequência a punição divina. Se Deus soubesse de antemão que determinada pessoa usaria seu livre-arbítrio para escolher o mal, e que, em consequência, ela seria punida por isso com torturas eternas no Inferno, por que Deus a criaria?
Para os dualistas, é fácil explicar o mal. Coisas ruins acontecem até mesmo para pessoas boas porque o mundo não é governado tão-somente por um Deus bom. Há um poder maligno independente à solta no mundo. O poder maligno faz coisas ruins.
O dualismo tem suas próprias desvantagens. Embora ofereça uma solução para o problema do mal, é incomodada pelo problema da ordem. Se o mundo foi criado por um só Deus, fica claro por que razão trata-se de um lugar tão ordeiro, onde tudo segue as mesmas leis. Mas se o Bem e o Mal lutam pelo controle do mundo, quem faz com que se cumpram as leis que governam essa guerra cósmica? Dois Estados rivais podem lutar um com o outro porque ambos obedecem às mesmas leis da física. Um míssil lançado do Paquistão pode acertar alvos na índia porque a gravidade funciona do mesmo jeito em ambos os países. Quando Deus e o Diabo lutam, a que leis em comum obedecem, e quem decretou essas leis?
Há uma maneira lógica de resolver essa charada: afirmar que há um único Deus onipotente que criou o universo inteiro – e Ele é um Deus maligno. Mas ninguém, em toda a história, teve estômago para tal crença.

Leibniz
Para Leibniz, Deus escolheu dentre os mundos possíveis, o que melhor espelhava sua perfeição, mas não poderia ser tão perfeito quanto o próprio Deus, para não ser Ele mesmo e para existir o livre-arbítrio. Ele escolheu esse mundo por uma necessidade moral. Mas se esse mundo é tão bom porque existe o mal? No leibnizianismo, existe um conjunto de argumentos que, em face da presença do mal no mundo, procuram defender e justificar a crença na onipotência e suprema bondade do Deus criador, contra aqueles que, em vista de tal dificuldade, duvidam de sua existência ou perfeição (Teodiceia), Leibniz identifica três tipos de mal:
1. O mal metafísico, que deriva da finitude do que não é Deus
2. O mal moral, que advém do homem, não de Deus. É o pecado.
3. O mal físico. Deus o faz para evitar males maiores, para corrigir.
O mal não é algo que desfaz a bondade de Deus. O mal é tudo que se diferencia de Deus, é o menos bem, sendo que somente se poderia ter feito o mal (imperfeição) para Ele fazer algo diferente e sair de si mesmo, em outras palavras, Deus somente poderia fazer o mal. Deus é o “sumo bem” (o objetivo final, contendo todos os outros bens, ou bem maior), por isso não pode haver algo igual a Ele, muito menos a criatura que Ele cria, ela tem que ser inferior. Todo o resto que não é Deus é mal, logo, Ele é a medida para ajudar a distinguir o que é bom do mal. Apesar de tudo, estamos no melhor dos mundos possíveis, o ser só é, só existe, porque é o melhor possível e necessário, pois o mundo para ter movimento precisa ser dessa maneira.

O paradoxo de Epicuro
“Deus, ou quer impedir os males e não pode, ou pode e não quer, ou não quer e nem pode, ou quer e pode. Se quer e não pode, é impotente: o que é impossível em Deus. Se pode e não quer, é invejoso [tem desgosto pela felicidade dos outros]: o que, do mesmo modo, é contrário a Deus. Se nem quer e nem pode, é invejoso e impotente: portanto, nem sequer é Deus. Se pode e quer, o que é a única coisa compatível com Deus, donde provém então a existência dos males? Por que razão é que não os impede?”


Referência bibliográfica:
HARARI, Yuval Noah. Sapiens – Uma breve história da humanidade. Tradução Janaína Marcoantonio. 5ª ed. Porto Alegre, RS: L&PM, 2015.

sábado, 14 de janeiro de 2017

Jean-Paul Sartre

Jean-Paul Sartre

Trechos da obra O EXISTENCIALISMO É UM HUMANISMO

(...) o que podemos desde já afirmar é que concebemos o existencialismo como uma doutrina que torna a vida humana possível e que, por outro lado, declara que toda ver­dade e toda ação implicam um meio e uma subjetividade humana.
(...) a existência precede a essência, ou, se se preferir, que é necessário partir da subjetividade. O que significa isso exatamente?
Consideremos um objeto fabricado, como, por exemplo, um li­vro ou um corta-papel; (...) no caso do corta-papel, a essência — ou seja, o conjunto das técnicas e das qualidades que permitem a sua produção e definição — precede a exis­tência; e desse modo, também, a presença de tal corta-papel ou de tal livro na minha frente é determinada.
O homem, tal como o existencialista o concebe, só não é passível de uma definição porque, de início, não é nada: só posteriormente será alguma coisa e será aquilo que ele fizer de si mesmo. Assim, não exis­te natureza humana, já que não existe um Deus para concebê-la. O homem é tão-somente, não apenas como ele se concebe, mas tam­bém como ele se quer; como ele se concebe após a existência, como ele se quer após esse impulso para a existência. O homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo: é esse o primeiro princípio do existencialismo. (...) o ho­mem será apenas o que ele projetou ser. Não o que ele quis ser, pois entendemos vulgarmente o querer como uma decisão consciente que, para quase todos nós, é posterior àquilo que fizemos de nós mesmos. (...) Porém, se realmente a exis­tência precede a essência, o homem é responsável pelo que é. (...) Assim, quando dizemos que o homem é responsável por si mesmo, não queremos dizer que o homem é apenas responsável pela sua estrita individualidade, mas que ele é responsável por todos os homens. (...) Subjetivismo signi­fica, por um lado, escolha do sujeito individual por si próprio e, por outro lado, impossibilidade em que o homem se encontra de trans­por os limites da subjetividade humana. É esse segundo significado que constitui o sentido profundo do existencialismo. Ao afirmarmos que o homem se escolhe a si mesmo, queremos dizer que cada um de nós se escolhe, mas queremos dizer também que, escolhendo-se, ele escolhe todos os homens. De fato, não há um único de nossos atos que, criando o homem que queremos ser, não esteja criando, simul­taneamente, uma imagem do homem tal como julgamos que ele deva ser. Escolher ser isto ou aquilo é afirmar, concomitantemente, o va­lor do que estamos escolhendo, pois não podemos nunca escolher o mal; o que escolhemos é sempre o bem e nada pode ser bom para nós sem o ser para todos. Se, por outro lado, a existência precede a essência, e se nós queremos existir ao mesmo tempo que moldamos nossa imagem, essa imagem é válida para todos e para toda a nossa, época. (...) Se eu sou um operário e se escolho aderir a um sindicato cristão em vez de ser co­munista, e se, por essa adesão, quero significar que a resignação é, no fundo, a solução mais adequada ao homem, que o reino do ho­mem não é sobre a terra, não estou apenas engajando a mim mesmo: quero resignar-me por todos e, portanto, a minha decisão engaja to­da a humanidade.
Tudo isso permite-nos compreender o que subjaz a palavras um tanto grandiloquentes como angústia, desamparo, desespero. Como vocês poderão constatar, é extremamente simples. Em primeiro lu­gar, como devemos entender a angústia? O existencialista declara fre­quentemente que o homem é angústia. Tal afirmação significa o seguinte: o homem que se engaja e que se dá conta de que ele não é apenas aquele que escolheu ser, mas também um legislador que es­colhe simultaneamente a si mesmo e a humanidade inteira, não con­segue escapar ao sentimento de sua total e profunda responsabilidade. (...) devemos sempre perguntar-nos: o que aconteceria se todo mundo fizesse como nós? e não pode­mos escapar a essa pergunta inquietante a não ser através de uma es­pécie de má fé. Aquele que mente e que se desculpa dizendo: nem todo mundo faz o mesmo, é alguém que não está em paz com sua consciência, pois o fato de mentir implica um valor universal atribuí­do à mentira. (...) E cada homem deve perguntar a si próprio: sou eu, realmente, aquele que tem o direito de agir de tal forma que os meus atos sirvam de norma para toda a humanidade? E, se ele não fizer a si mesmo esta pergunta, é porque estará masca­rando sua angústia. Não se trata de uma angústia que conduz ao quietismo, à inação. Trata-se de uma angústia simples, que todos aqueles que um dia tiveram responsabilidades conhecem bem. Quando, por exemplo, um chefe militar assume a responsabilidade de uma ofensi­va e envia para a morte certo número de homens, ele escolhe fazê-lo, e, no fundo, escolhe sozinho. Certamente, algumas ordens vêm de cima, porém são abertas demais e exigem uma interpretação; é dessa interpretação — responsabilidade sua — que depende a vida de dez, catorze ou vinte homens. Não é possível que não exista certa angustia na decisão tomada. Todos os chefes conhecem essa angústia. Mas isso não os impede de agir, muito pelo contrário: é a própria angús­tia que constitui a condição de sua ação, pois ela pressupõe que eles encarem a pluralidade dos possíveis e que, ao escolher um caminho, eles se deem conta de que ele não tem nenhum valor a não ser o de ter sido escolhido. (...) Não se trata de uma cortina entreposta entre nós e a ação, mas parte constitutiva da própria ação.
Quando falamos de desamparo, expressão cara a Heidegger, que­remos simplesmente dizer que Deus não existe e que é necessário le­var esse fato às suas últimas consequências. (...) O existencialista, pelo contrário, pensa que é extremamente incómo­do que Deus não exista, pois, junto com ele, desaparece toda e qual­quer possibilidade de encontrar valores num céu inteligível; não pode mais existir nenhum bem a priori, já que não existe uma consciência infinita e perfeita para pensá-lo; não está escrito em nenhum lugar que o bem existe, que devemos ser honestos, que não devemos men­tir, já que nos colocamos precisamente num plano em que só existem homens. Dostoiévski escreveu: "Se Deus não existisse, tudo seria per­mitido". Eis o ponto de partida do existencialismo. De fato, tudo é permitido se Deus não existe, e, por conseguinte, o homem está desamparado porque não encontra nele próprio nem fora dele nada a que se agarrar. Para começar, não encontra desculpas. Com efeito, se a existência precede a essência, nada poderá jamais ser explicado por referência a uma natureza humana dada e definitiva; ou seja, não existe determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade. Por outro lado, se Deus não existe, não encontramos, já prontos, valores ou ordens que possam legitimar a nossa conduta. Assim, não tere­mos nem atrás de nós, nem na nossa frente, no reino luminoso dos valores, nenhuma justificativa e nenhuma desculpa. Estamos sós, sem desculpas. É o que posso expressar dizendo que o homem está conde­nado a ser livre. Condenado, porque não se criou a si mesmo, e co­mo, no entanto, é livre, uma vez que foi lançado no mundo, é responsável por tudo o que faz. O existencialista não acredita no po­der da paixão. Ele jamais admitirá que uma bela paixão é uma cor­rente devastadora que conduz o homem, fatalmente, a determinados atos, e que, consequentemente, é uma desculpa. Ele considera que o homem é responsável por sua paixão. O existencialista não pensará nunca, também, que o homem pode conseguir o auxílio de um sinal qualquer que o oriente no mundo, pois considera que é o próprio ho­mem quem decifra o sinal como bem entende. Pensa, portanto, que o homem, sem apoio e sem ajuda, está condenado a inventar o ho­mem a cada instante.
Já que os valores são vagos e que eles são sempre amplos demais para o caso preciso e concreto que consideramos, só nos resta con­fiar em nosso instinto. Foi o que o jovem tentou fazer; (...) Mas como determinar o valor de um sentimento? (...) Posso dizer: amo minha mãe o bastante para ficar junto dela; mas não posso determinar o valor dessa afeição a não ser, precisamente, que eu pratique um ato que a confirme e a defina. Ora, como eu desejo que esse afeto justifique os meus atos, acabo sendo arrastado num círculo vicioso.
Por outro lado, Gide disse, e muito bem, que um sentimento re­presentado e um sentimento vivido são duas coisas quase indiscerníveis: decidir que amo minha mãe ficando junto dela, ou representar uma comédia que me levará a ficar, por causa de minha mãe, é mais ou menos a mesma coisa. Por outras palavras: o sentimento constrói-se através dos atos praticados; não posso, portanto, pedir-lhe que me guie. O que significa que não posso nem procurar em mim mesmo a autenticidade que me impele a agir, nem buscar numa moral os con­ceitos que me autorizam a agir. (...) Nenhuma moral geral poderá indicar-lhe o caminho a se­guir; não existem sinais no mundo. (...) O desamparo implica que somos nós mes­mos que escolhemos o nosso ser. Desamparo e angústia caminham juntos. Quanto ao desespero, trata-se de um conceito extremamente simples. Ele significa que só podemos contar com o que depende da nossa vontade ou com o conjunto de probabilidades que tornam a nossa ação possível. Quando se quer alguma coisa, há sempre elemen­tos prováveis. (...) A partir do momento em que as possibilidades que estou considerando não estão diretamente envolvidas em minha ação, é pre­ferível desinteressar-me delas, pois nenhum Deus, nenhum desígnio poderá adequar o mundo e seus possíveis à minha vontade. No fun­do, quando Descartes afirmava: "É melhor vencermo-nos a nós mes­mos do que ao mundo", ele queria dizer a mesma coisa: agir sem esperança. (...) Isso significa que eu deva abandonar-me ao quietismo? De modo algum. Primeiro, tenho que me engajar; em seguida, agir segundo a velha fórmula: "não é preci­so ter esperança para empreender". (...) O quietismo é a atitude daqueles que dizem: os outros po­dem fazer o que eu não posso. A doutrina que lhes estou apresentando é justamente o contrário do quietismo, visto que ela afirma: a realidade não existe a não ser na ação; aliás, vai mais longe ainda, acrescentando: o homem nada mais é do que o seu projeto; só existe na medida em que se realiza; não é nada além do conjunto de seus atos, nada mais que sua vida. (...) para o existencialista, não existe amor senão aquele que se constrói; não há possibilidade de amor se­não a que se manifesta num amor; não há génio senão aquele que se expressa em obras de arte: o génio de Proust é a totalidade das obras de Proust; o génio de Racine é a série de tragédias que escre­veu; para além disso, não há nada. Por que atribuir a Racine a possi­bilidade de escrever uma outra tragédia, se, justamente, ele não o fez? Um homem compromete-se com sua vida, desenha seu rosto e para além desse rosto, não existe nada. (...) todavia, quando se diz: "tu nada mais és do que tua vida", isso não implica que o artista seja julgado unicamente por suas obras de arte; mil outras coisas contribuem igualmente para defini-lo. O que queremos dizer é que um homem nada mais é do que uma série de empreendimentos, que ele é a soma, a organização, o conjunto das relações que constituem esses empreendimentos.
Não existe temperamento covarde; existem tem­peramentos nervosos, existem pessoas que têm "sangue fraco" co­mo diz o povo, ou temperamentos ricos; mas o homem que tem sangue fraco nem por isso é um covarde, pois o que cria a covardia é o ato de renunciar ou de ceder: um temperamento não é um ato e o covar­de se define pelos atos que pratica. (...) O que o existen­cialista afirma é que o covarde se faz covarde, que o herói se faz herói; existe sempre, para o covarde, uma possibilidade de não mais ser co­varde, e, para o herói, de deixar de o ser.
(...) o existencialismo diz-lhe que a única esperança está em sua ação e que só o ato permite ao homem viver.
Nós desejamos, preci­samente, estabelecer o reino humano como um conjunto de valores distintos dos do reino material. (...) Através do penso, con­trariamente à filosofia de Descartes, contrariamente à filosofia de Kant, nós nos apreendemos a nós mesmos perante o outro, e o outro é tão verdadeiro para nós quanto nós mesmos. Assim, o homem que se alcança diretamente pelo cogito descobre também todos os outros, e descobre-os como sendo a própria condição de sua existência. Ele se dá conta de que só pode ser alguma coisa (no sentido em que se diz que alguém é espirituoso, ou é mau ou é ciumento) se os outros o reconhecerem como tal. Para obter qualquer verdade sobre mim, é necessário que eu considere o outro. O outro é indispensável à mi­nha existência tanto quanto, aliás, ao conhecimento que tenho de mim mesmo. Nessas condições, a descoberta da minha intimidade desvenda-me, simultaneamente, a existência do outro como uma li­berdade colocada na minha frente, que só pensa e só quer ou a favor ou contra mim. Desse modo, descobrimos imediatamente um mundo a que chamaremos de intersubjetividade e é nesse mundo que o ho­mem decide o que ele é e o que são os outros.
Além disso, se bem que seja impossível encontrar em cada ho­mem uma essência universal que seria a natureza humana, considera­mos que exista uma universalidade humana de condição. (...) As situações históricas variam: o homem pode nascer escravo numa sociedade pa­gã ou senhor feudal ou proletário. O que não muda é o fato de que, para ele, é sempre necessário estar no mundo, trabalhar, conviver com os outros e ser mortal. Tais limites não são nem subjetivos nem objetivos; ou, mais exatamente, têm uma face objetiva e uma face subjetiva. São objetivos na medida em que podem ser encontrados em qualquer lugar e são sempre reconhecíveis; são subjetivos porque são vividos e nada são se o homem os não viver, ou seja, se o homem não se determinar livremente na sua existência em relação a eles. (...) cada um de nós é absoluto respirando, comendo, dormindo ou agindo de um modo qualquer. Não existe diferença alguma entre ser livremente, ser como projeto, como existência que escolhe a sua essência, e ser absoluto; não existe nenhuma diferença entre ser um absoluto temporariamente situado, ou seja, que se localizou na história, e ser universalmente com­preensível.
A escolha é possível, em certo sentido, porém o que não é possível é não escolher. Eu posso sempre escolher mas devo estar ciente de que, se não escolher, assim mesmo estarei esco­lhendo. (...) o ho­mem encontra-se numa situação organizada, com a qual está engaja­do; pela sua escolha (...) Digamos antes que devemos comparar a escolha moral à construção de uma obra de arte. E, aqui, precisamos fazer uma pausa para esclarecer que não se trata de uma moral estética, pois a má fé de nossos adversários é tanta que até disso nos acusam. O exemplo que escolhi não passa de uma comparação. Esclarecido esse ponto, perguntamos: alguma vez se acusou um artista que faz um quadro de ele não se inspirar em regras estabelecidas a priori? Alguém, alguma vez, lhe indicou que quadro deveria fazer? É evidente que não existe nenhum quadro de­finido que deva ser feito; o artista engaja-se na construção do seu qua­dro e o quadro que deve ser feito é, precisamente, o quadro que ele tiver feito. Sabemos que não existem valores estéticos a priori; con­tudo, existem valores que se tornam visíveis, posteriormente, na pró­pria coerência do quadro, nas relações que existem entre a vontade de criação e o resultado. Ninguém pode prever como será a pintura de amanhã; não se pode julgar a pintura a não ser que esteja feita. Qual a relação de tudo isso com a moral? Trata-se da mesma situa­ção criadora. Nunca falamos na gratuidade de uma obra de arte. Quando nos referimos a uma tela de Picasso, nunca dizemos que ela é gratuita; compreendemos perfeitamente que ele se construiu a si mes­mo, tal qual é, ao mesmo tempo que pintava, que o conjunto de sua obra se incorpora à sua vida.
O mesmo acontece no plano moral. O que há em comum entre a arte e a moral é que, nos dois casos, existe criação e invenção. Não podemos decidir a priori o que devemos fazer.
(...) algumas escolhas estão fundamentadas no erro e ou­tras na verdade. Podemos julgar um homem dizendo que ele tem má fé. Tendo definido a situação do homem como uma escolha livre, sem desculpas e sem auxílio, consideramos que todo homem que se refu­gia por trás da desculpa de suas paixões, todo homem que inventa um determinismo, é um homem de má fé. É possível objetar o se­guinte: por que razão ele não poderia escolher-se como um homem de má fé? E eu respondo que não tenho que julgá-lo moralmente, mas defino a sua má fé como um erro. Não podemos escapar, aqui, a um juízo de verdade. (...) Alguém pode perguntar-me: e se eu quiser ser um homem de má fé? Eu responderei: não há motivo algum para que você não possa sê-lo, mas declaro que você tem má fé e que a atitude de estrita coerência é a atitude de boa-fé. Além disso, posso fazer um juízo moral. Quan­do declaro que a liberdade, através de cada circunstância concreta, não pode ter outro objetivo senão o de querer-se a si própria, quero dizer que, se alguma vez o homem reconhecer que está estabelecendo valores, em seu desamparo, ele não poderá mais desejar outra coisa a não ser a liberdade como fundamento de todos os valores. Isso não significa que ele a deseja abstratamente. Mas, simplesmente, que os atos dos homens de boa fé possuem como derradeiro significado a procura da liberdade enquanto tal. Um homem que adere a um sindi­cato comunista ou revolucionário quer alcançar objetivos concretos; tais objetivos implicam uma vontade abstrata de liberdade; porém, essa liberdade é desejada em função de uma situação concreta. Que­remos a liberdade através de cada circunstância particular. E, que­rendo a liberdade, descobrimos que ela depende integralmente da liberdade dos outros, e que a liberdade dos outros depende da nossa. (...) Posso, portanto, formar juízos sobre aqueles que pretendem ocultar a si mesmos a total gratuidade de sua existên­cia e sua total liberdade, em nome dessa vontade de liberdade impli­cada pela própria liberdade. (...) A única coisa que impor­ta é saber se a invenção que se faz se faz em nome da liberdade.
Antes de alguém viver, a vida, em si mesma, não é nada; é quem a vive que deve dar-lhe um sentido; e o valor nada mais é do que esse sentido escolhido. (...) a pala­vra humanismo tem dois significados muito diferentes. Podemos con­siderar como humanismo uma teoria que toma o homem como meta e como valor superior. (...) O que supõe que podemos atribuir um valor ao homem em função dos atos mais elevados de certos homens. (...) O existencia­lismo dispensa-o de todo e qualquer juízo desse tipo: o existencialismo não colocará nunca o homem como meta, pois ele está sempre por fazer. E não devemos acreditar que existe uma humanidade à qual possamos nos devotar, tal como fez Auguste Comte. O culto da hu­manidade conduz a um humanismo fechado sobre si mesmo, como o de Comte, e, temos de admiti-lo, ao fascismo. Este é um humanis­mo que recusamos.
Existe, porém, outro sentido para o humanismo, que é, no fun­do, o seguinte: o homem está constantemente fora de si mesmo; é projetando-se e perdendo-se fora de si que ele faz com que o homem exista; por outro lado, é perseguindo objetivos transcendentes que ele pode existir; sendo o homem essa superação e não se apoderando dos objetos senão em relação a ela, ele se situa no âmago, no centro des­sa superação. Não existe outro universo além do universo humano, o universo da subjetividade humana. É a esse vínculo entre a trans­cendência, como elemento constitutivo do homem (não no sentido em que Deus é transcendente, mas no sentido de superação), e a sub­jetividade (na medida em que o homem não está fechado em si mes­mo, mas sempre presente num universo humano) que chamamos humanismo existencialista. Humanismo, porque recordamos ao homem que não existe outro legislador a não ser ele próprio e que é no desamparo que ele decidirá sobre si mesmo; e porque mostramos que não é voltando-se para si mesmo mas procurando sempre uma meta fora de si.
O existencialismo não é tanto um ateísmo no senti­do em que se esforçaria por demonstrar que Deus não existe. Ele declara, mais exatamente: mesmo que Deus existisse, nada mudaria; eis nosso ponto de vista. Não que acreditemos que Deus exista, mas pensamos que o problema não é o de sua existência; é preciso que o homem se reencontre e se convença de que nada pode salvá-lo dele próprio, nem mesmo uma prova válida da existência de Deus.