terça-feira, 17 de janeiro de 2017

O problema da existência do mal no monoteísmo

Trecho das obras: Sapiens – Uma breve história da humanidade, Antologia de textos de Epicuro e uma explicação sobre Leibniz

A batalha entre o bem e o mal


O politeísmo deu origem não só a religiões monoteístas como também a religiões dualistas. Estas reconhecem a existência de dois poderes opostos: o bem e o mal. Ao contrário do monoteísmo, o dualismo acredita que o mal é um poder independente, nem criado pelo Deus bom e nem subordinado a ele. O dualismo explica que todo o universo é um campo de batalha entre essas duas forças e que tudo que acontece no mundo é parte dessa batalha.
O dualismo é uma visão de mundo muito atraente, porque tem uma resposta simples e sucinta para o famoso problema do mal, uma das preocupações fundamentais do pensamento humano. "Por que há mal no mundo? Por que há sofrimento? Por que acontecem coisas ruins com pessoas boas?" Os monoteístas têm de praticar uma ginástica intelectual para explicar como um Deus onisciente, todo-poderoso e perfeitamente bom permite tanto sofrimento no mundo. Uma explicação conhecida é que essa é a maneira que Deus encontrou de dotar os humanos de livre-arbítrio. Se não houvesse mal, os humanos não poderiam escolher entre o bem e o mal; por conseguinte, não haveria livre-arbítrio. Isso, no entanto, é uma resposta pouco intuitiva que imediatamente levanta uma série de novas perguntas. O livre-arbítrio permite que os humanos escolham o mal. Com efeito, muitos escolhem o mal, e, de acordo com o relato monoteísta padrão, essa escolha deve ter como consequência a punição divina. Se Deus soubesse de antemão que determinada pessoa usaria seu livre-arbítrio para escolher o mal, e que, em consequência, ela seria punida por isso com torturas eternas no Inferno, por que Deus a criaria?
Para os dualistas, é fácil explicar o mal. Coisas ruins acontecem até mesmo para pessoas boas porque o mundo não é governado tão-somente por um Deus bom. Há um poder maligno independente à solta no mundo. O poder maligno faz coisas ruins.
O dualismo tem suas próprias desvantagens. Embora ofereça uma solução para o problema do mal, é incomodada pelo problema da ordem. Se o mundo foi criado por um só Deus, fica claro por que razão trata-se de um lugar tão ordeiro, onde tudo segue as mesmas leis. Mas se o Bem e o Mal lutam pelo controle do mundo, quem faz com que se cumpram as leis que governam essa guerra cósmica? Dois Estados rivais podem lutar um com o outro porque ambos obedecem às mesmas leis da física. Um míssil lançado do Paquistão pode acertar alvos na índia porque a gravidade funciona do mesmo jeito em ambos os países. Quando Deus e o Diabo lutam, a que leis em comum obedecem, e quem decretou essas leis?
Há uma maneira lógica de resolver essa charada: afirmar que há um único Deus onipotente que criou o universo inteiro – e Ele é um Deus maligno. Mas ninguém, em toda a história, teve estômago para tal crença.

Leibniz
Para Leibniz, Deus escolheu dentre os mundos possíveis, o que melhor espelhava sua perfeição, mas não poderia ser tão perfeito quanto o próprio Deus, para não ser Ele mesmo e para existir o livre-arbítrio. Ele escolheu esse mundo por uma necessidade moral. Mas se esse mundo é tão bom porque existe o mal? No leibnizianismo, existe um conjunto de argumentos que, em face da presença do mal no mundo, procuram defender e justificar a crença na onipotência e suprema bondade do Deus criador, contra aqueles que, em vista de tal dificuldade, duvidam de sua existência ou perfeição (Teodiceia), Leibniz identifica três tipos de mal:
1. O mal metafísico, que deriva da finitude do que não é Deus
2. O mal moral, que advém do homem, não de Deus. É o pecado.
3. O mal físico. Deus o faz para evitar males maiores, para corrigir.
O mal não é algo que desfaz a bondade de Deus. O mal é tudo que se diferencia de Deus, é o menos bem, sendo que somente se poderia ter feito o mal (imperfeição) para Ele fazer algo diferente e sair de si mesmo, em outras palavras, Deus somente poderia fazer o mal. Deus é o “sumo bem” (o objetivo final, contendo todos os outros bens, ou bem maior), por isso não pode haver algo igual a Ele, muito menos a criatura que Ele cria, ela tem que ser inferior. Todo o resto que não é Deus é mal, logo, Ele é a medida para ajudar a distinguir o que é bom do mal. Apesar de tudo, estamos no melhor dos mundos possíveis, o ser só é, só existe, porque é o melhor possível e necessário, pois o mundo para ter movimento precisa ser dessa maneira.

O paradoxo de Epicuro
“Deus, ou quer impedir os males e não pode, ou pode e não quer, ou não quer e nem pode, ou quer e pode. Se quer e não pode, é impotente: o que é impossível em Deus. Se pode e não quer, é invejoso [tem desgosto pela felicidade dos outros]: o que, do mesmo modo, é contrário a Deus. Se nem quer e nem pode, é invejoso e impotente: portanto, nem sequer é Deus. Se pode e quer, o que é a única coisa compatível com Deus, donde provém então a existência dos males? Por que razão é que não os impede?”


Referência bibliográfica:
HARARI, Yuval Noah. Sapiens – Uma breve história da humanidade. Tradução Janaína Marcoantonio. 5ª ed. Porto Alegre, RS: L&PM, 2015.

sábado, 14 de janeiro de 2017

Jean-Paul Sartre

Jean-Paul Sartre

Trechos da obra O EXISTENCIALISMO É UM HUMANISMO

(...) o que podemos desde já afirmar é que concebemos o existencialismo como uma doutrina que torna a vida humana possível e que, por outro lado, declara que toda ver­dade e toda ação implicam um meio e uma subjetividade humana.
(...) a existência precede a essência, ou, se se preferir, que é necessário partir da subjetividade. O que significa isso exatamente?
Consideremos um objeto fabricado, como, por exemplo, um li­vro ou um corta-papel; (...) no caso do corta-papel, a essência — ou seja, o conjunto das técnicas e das qualidades que permitem a sua produção e definição — precede a exis­tência; e desse modo, também, a presença de tal corta-papel ou de tal livro na minha frente é determinada.
O homem, tal como o existencialista o concebe, só não é passível de uma definição porque, de início, não é nada: só posteriormente será alguma coisa e será aquilo que ele fizer de si mesmo. Assim, não exis­te natureza humana, já que não existe um Deus para concebê-la. O homem é tão-somente, não apenas como ele se concebe, mas tam­bém como ele se quer; como ele se concebe após a existência, como ele se quer após esse impulso para a existência. O homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo: é esse o primeiro princípio do existencialismo. (...) o ho­mem será apenas o que ele projetou ser. Não o que ele quis ser, pois entendemos vulgarmente o querer como uma decisão consciente que, para quase todos nós, é posterior àquilo que fizemos de nós mesmos. (...) Porém, se realmente a exis­tência precede a essência, o homem é responsável pelo que é. (...) Assim, quando dizemos que o homem é responsável por si mesmo, não queremos dizer que o homem é apenas responsável pela sua estrita individualidade, mas que ele é responsável por todos os homens. (...) Subjetivismo signi­fica, por um lado, escolha do sujeito individual por si próprio e, por outro lado, impossibilidade em que o homem se encontra de trans­por os limites da subjetividade humana. É esse segundo significado que constitui o sentido profundo do existencialismo. Ao afirmarmos que o homem se escolhe a si mesmo, queremos dizer que cada um de nós se escolhe, mas queremos dizer também que, escolhendo-se, ele escolhe todos os homens. De fato, não há um único de nossos atos que, criando o homem que queremos ser, não esteja criando, simul­taneamente, uma imagem do homem tal como julgamos que ele deva ser. Escolher ser isto ou aquilo é afirmar, concomitantemente, o va­lor do que estamos escolhendo, pois não podemos nunca escolher o mal; o que escolhemos é sempre o bem e nada pode ser bom para nós sem o ser para todos. Se, por outro lado, a existência precede a essência, e se nós queremos existir ao mesmo tempo que moldamos nossa imagem, essa imagem é válida para todos e para toda a nossa, época. (...) Se eu sou um operário e se escolho aderir a um sindicato cristão em vez de ser co­munista, e se, por essa adesão, quero significar que a resignação é, no fundo, a solução mais adequada ao homem, que o reino do ho­mem não é sobre a terra, não estou apenas engajando a mim mesmo: quero resignar-me por todos e, portanto, a minha decisão engaja to­da a humanidade.
Tudo isso permite-nos compreender o que subjaz a palavras um tanto grandiloquentes como angústia, desamparo, desespero. Como vocês poderão constatar, é extremamente simples. Em primeiro lu­gar, como devemos entender a angústia? O existencialista declara fre­quentemente que o homem é angústia. Tal afirmação significa o seguinte: o homem que se engaja e que se dá conta de que ele não é apenas aquele que escolheu ser, mas também um legislador que es­colhe simultaneamente a si mesmo e a humanidade inteira, não con­segue escapar ao sentimento de sua total e profunda responsabilidade. (...) devemos sempre perguntar-nos: o que aconteceria se todo mundo fizesse como nós? e não pode­mos escapar a essa pergunta inquietante a não ser através de uma es­pécie de má fé. Aquele que mente e que se desculpa dizendo: nem todo mundo faz o mesmo, é alguém que não está em paz com sua consciência, pois o fato de mentir implica um valor universal atribuí­do à mentira. (...) E cada homem deve perguntar a si próprio: sou eu, realmente, aquele que tem o direito de agir de tal forma que os meus atos sirvam de norma para toda a humanidade? E, se ele não fizer a si mesmo esta pergunta, é porque estará masca­rando sua angústia. Não se trata de uma angústia que conduz ao quietismo, à inação. Trata-se de uma angústia simples, que todos aqueles que um dia tiveram responsabilidades conhecem bem. Quando, por exemplo, um chefe militar assume a responsabilidade de uma ofensi­va e envia para a morte certo número de homens, ele escolhe fazê-lo, e, no fundo, escolhe sozinho. Certamente, algumas ordens vêm de cima, porém são abertas demais e exigem uma interpretação; é dessa interpretação — responsabilidade sua — que depende a vida de dez, catorze ou vinte homens. Não é possível que não exista certa angustia na decisão tomada. Todos os chefes conhecem essa angústia. Mas isso não os impede de agir, muito pelo contrário: é a própria angús­tia que constitui a condição de sua ação, pois ela pressupõe que eles encarem a pluralidade dos possíveis e que, ao escolher um caminho, eles se deem conta de que ele não tem nenhum valor a não ser o de ter sido escolhido. (...) Não se trata de uma cortina entreposta entre nós e a ação, mas parte constitutiva da própria ação.
Quando falamos de desamparo, expressão cara a Heidegger, que­remos simplesmente dizer que Deus não existe e que é necessário le­var esse fato às suas últimas consequências. (...) O existencialista, pelo contrário, pensa que é extremamente incómo­do que Deus não exista, pois, junto com ele, desaparece toda e qual­quer possibilidade de encontrar valores num céu inteligível; não pode mais existir nenhum bem a priori, já que não existe uma consciência infinita e perfeita para pensá-lo; não está escrito em nenhum lugar que o bem existe, que devemos ser honestos, que não devemos men­tir, já que nos colocamos precisamente num plano em que só existem homens. Dostoiévski escreveu: "Se Deus não existisse, tudo seria per­mitido". Eis o ponto de partida do existencialismo. De fato, tudo é permitido se Deus não existe, e, por conseguinte, o homem está desamparado porque não encontra nele próprio nem fora dele nada a que se agarrar. Para começar, não encontra desculpas. Com efeito, se a existência precede a essência, nada poderá jamais ser explicado por referência a uma natureza humana dada e definitiva; ou seja, não existe determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade. Por outro lado, se Deus não existe, não encontramos, já prontos, valores ou ordens que possam legitimar a nossa conduta. Assim, não tere­mos nem atrás de nós, nem na nossa frente, no reino luminoso dos valores, nenhuma justificativa e nenhuma desculpa. Estamos sós, sem desculpas. É o que posso expressar dizendo que o homem está conde­nado a ser livre. Condenado, porque não se criou a si mesmo, e co­mo, no entanto, é livre, uma vez que foi lançado no mundo, é responsável por tudo o que faz. O existencialista não acredita no po­der da paixão. Ele jamais admitirá que uma bela paixão é uma cor­rente devastadora que conduz o homem, fatalmente, a determinados atos, e que, consequentemente, é uma desculpa. Ele considera que o homem é responsável por sua paixão. O existencialista não pensará nunca, também, que o homem pode conseguir o auxílio de um sinal qualquer que o oriente no mundo, pois considera que é o próprio ho­mem quem decifra o sinal como bem entende. Pensa, portanto, que o homem, sem apoio e sem ajuda, está condenado a inventar o ho­mem a cada instante.
Já que os valores são vagos e que eles são sempre amplos demais para o caso preciso e concreto que consideramos, só nos resta con­fiar em nosso instinto. Foi o que o jovem tentou fazer; (...) Mas como determinar o valor de um sentimento? (...) Posso dizer: amo minha mãe o bastante para ficar junto dela; mas não posso determinar o valor dessa afeição a não ser, precisamente, que eu pratique um ato que a confirme e a defina. Ora, como eu desejo que esse afeto justifique os meus atos, acabo sendo arrastado num círculo vicioso.
Por outro lado, Gide disse, e muito bem, que um sentimento re­presentado e um sentimento vivido são duas coisas quase indiscerníveis: decidir que amo minha mãe ficando junto dela, ou representar uma comédia que me levará a ficar, por causa de minha mãe, é mais ou menos a mesma coisa. Por outras palavras: o sentimento constrói-se através dos atos praticados; não posso, portanto, pedir-lhe que me guie. O que significa que não posso nem procurar em mim mesmo a autenticidade que me impele a agir, nem buscar numa moral os con­ceitos que me autorizam a agir. (...) Nenhuma moral geral poderá indicar-lhe o caminho a se­guir; não existem sinais no mundo. (...) O desamparo implica que somos nós mes­mos que escolhemos o nosso ser. Desamparo e angústia caminham juntos. Quanto ao desespero, trata-se de um conceito extremamente simples. Ele significa que só podemos contar com o que depende da nossa vontade ou com o conjunto de probabilidades que tornam a nossa ação possível. Quando se quer alguma coisa, há sempre elemen­tos prováveis. (...) A partir do momento em que as possibilidades que estou considerando não estão diretamente envolvidas em minha ação, é pre­ferível desinteressar-me delas, pois nenhum Deus, nenhum desígnio poderá adequar o mundo e seus possíveis à minha vontade. No fun­do, quando Descartes afirmava: "É melhor vencermo-nos a nós mes­mos do que ao mundo", ele queria dizer a mesma coisa: agir sem esperança. (...) Isso significa que eu deva abandonar-me ao quietismo? De modo algum. Primeiro, tenho que me engajar; em seguida, agir segundo a velha fórmula: "não é preci­so ter esperança para empreender". (...) O quietismo é a atitude daqueles que dizem: os outros po­dem fazer o que eu não posso. A doutrina que lhes estou apresentando é justamente o contrário do quietismo, visto que ela afirma: a realidade não existe a não ser na ação; aliás, vai mais longe ainda, acrescentando: o homem nada mais é do que o seu projeto; só existe na medida em que se realiza; não é nada além do conjunto de seus atos, nada mais que sua vida. (...) para o existencialista, não existe amor senão aquele que se constrói; não há possibilidade de amor se­não a que se manifesta num amor; não há génio senão aquele que se expressa em obras de arte: o génio de Proust é a totalidade das obras de Proust; o génio de Racine é a série de tragédias que escre­veu; para além disso, não há nada. Por que atribuir a Racine a possi­bilidade de escrever uma outra tragédia, se, justamente, ele não o fez? Um homem compromete-se com sua vida, desenha seu rosto e para além desse rosto, não existe nada. (...) todavia, quando se diz: "tu nada mais és do que tua vida", isso não implica que o artista seja julgado unicamente por suas obras de arte; mil outras coisas contribuem igualmente para defini-lo. O que queremos dizer é que um homem nada mais é do que uma série de empreendimentos, que ele é a soma, a organização, o conjunto das relações que constituem esses empreendimentos.
Não existe temperamento covarde; existem tem­peramentos nervosos, existem pessoas que têm "sangue fraco" co­mo diz o povo, ou temperamentos ricos; mas o homem que tem sangue fraco nem por isso é um covarde, pois o que cria a covardia é o ato de renunciar ou de ceder: um temperamento não é um ato e o covar­de se define pelos atos que pratica. (...) O que o existen­cialista afirma é que o covarde se faz covarde, que o herói se faz herói; existe sempre, para o covarde, uma possibilidade de não mais ser co­varde, e, para o herói, de deixar de o ser.
(...) o existencialismo diz-lhe que a única esperança está em sua ação e que só o ato permite ao homem viver.
Nós desejamos, preci­samente, estabelecer o reino humano como um conjunto de valores distintos dos do reino material. (...) Através do penso, con­trariamente à filosofia de Descartes, contrariamente à filosofia de Kant, nós nos apreendemos a nós mesmos perante o outro, e o outro é tão verdadeiro para nós quanto nós mesmos. Assim, o homem que se alcança diretamente pelo cogito descobre também todos os outros, e descobre-os como sendo a própria condição de sua existência. Ele se dá conta de que só pode ser alguma coisa (no sentido em que se diz que alguém é espirituoso, ou é mau ou é ciumento) se os outros o reconhecerem como tal. Para obter qualquer verdade sobre mim, é necessário que eu considere o outro. O outro é indispensável à mi­nha existência tanto quanto, aliás, ao conhecimento que tenho de mim mesmo. Nessas condições, a descoberta da minha intimidade desvenda-me, simultaneamente, a existência do outro como uma li­berdade colocada na minha frente, que só pensa e só quer ou a favor ou contra mim. Desse modo, descobrimos imediatamente um mundo a que chamaremos de intersubjetividade e é nesse mundo que o ho­mem decide o que ele é e o que são os outros.
Além disso, se bem que seja impossível encontrar em cada ho­mem uma essência universal que seria a natureza humana, considera­mos que exista uma universalidade humana de condição. (...) As situações históricas variam: o homem pode nascer escravo numa sociedade pa­gã ou senhor feudal ou proletário. O que não muda é o fato de que, para ele, é sempre necessário estar no mundo, trabalhar, conviver com os outros e ser mortal. Tais limites não são nem subjetivos nem objetivos; ou, mais exatamente, têm uma face objetiva e uma face subjetiva. São objetivos na medida em que podem ser encontrados em qualquer lugar e são sempre reconhecíveis; são subjetivos porque são vividos e nada são se o homem os não viver, ou seja, se o homem não se determinar livremente na sua existência em relação a eles. (...) cada um de nós é absoluto respirando, comendo, dormindo ou agindo de um modo qualquer. Não existe diferença alguma entre ser livremente, ser como projeto, como existência que escolhe a sua essência, e ser absoluto; não existe nenhuma diferença entre ser um absoluto temporariamente situado, ou seja, que se localizou na história, e ser universalmente com­preensível.
A escolha é possível, em certo sentido, porém o que não é possível é não escolher. Eu posso sempre escolher mas devo estar ciente de que, se não escolher, assim mesmo estarei esco­lhendo. (...) o ho­mem encontra-se numa situação organizada, com a qual está engaja­do; pela sua escolha (...) Digamos antes que devemos comparar a escolha moral à construção de uma obra de arte. E, aqui, precisamos fazer uma pausa para esclarecer que não se trata de uma moral estética, pois a má fé de nossos adversários é tanta que até disso nos acusam. O exemplo que escolhi não passa de uma comparação. Esclarecido esse ponto, perguntamos: alguma vez se acusou um artista que faz um quadro de ele não se inspirar em regras estabelecidas a priori? Alguém, alguma vez, lhe indicou que quadro deveria fazer? É evidente que não existe nenhum quadro de­finido que deva ser feito; o artista engaja-se na construção do seu qua­dro e o quadro que deve ser feito é, precisamente, o quadro que ele tiver feito. Sabemos que não existem valores estéticos a priori; con­tudo, existem valores que se tornam visíveis, posteriormente, na pró­pria coerência do quadro, nas relações que existem entre a vontade de criação e o resultado. Ninguém pode prever como será a pintura de amanhã; não se pode julgar a pintura a não ser que esteja feita. Qual a relação de tudo isso com a moral? Trata-se da mesma situa­ção criadora. Nunca falamos na gratuidade de uma obra de arte. Quando nos referimos a uma tela de Picasso, nunca dizemos que ela é gratuita; compreendemos perfeitamente que ele se construiu a si mes­mo, tal qual é, ao mesmo tempo que pintava, que o conjunto de sua obra se incorpora à sua vida.
O mesmo acontece no plano moral. O que há em comum entre a arte e a moral é que, nos dois casos, existe criação e invenção. Não podemos decidir a priori o que devemos fazer.
(...) algumas escolhas estão fundamentadas no erro e ou­tras na verdade. Podemos julgar um homem dizendo que ele tem má fé. Tendo definido a situação do homem como uma escolha livre, sem desculpas e sem auxílio, consideramos que todo homem que se refu­gia por trás da desculpa de suas paixões, todo homem que inventa um determinismo, é um homem de má fé. É possível objetar o se­guinte: por que razão ele não poderia escolher-se como um homem de má fé? E eu respondo que não tenho que julgá-lo moralmente, mas defino a sua má fé como um erro. Não podemos escapar, aqui, a um juízo de verdade. (...) Alguém pode perguntar-me: e se eu quiser ser um homem de má fé? Eu responderei: não há motivo algum para que você não possa sê-lo, mas declaro que você tem má fé e que a atitude de estrita coerência é a atitude de boa-fé. Além disso, posso fazer um juízo moral. Quan­do declaro que a liberdade, através de cada circunstância concreta, não pode ter outro objetivo senão o de querer-se a si própria, quero dizer que, se alguma vez o homem reconhecer que está estabelecendo valores, em seu desamparo, ele não poderá mais desejar outra coisa a não ser a liberdade como fundamento de todos os valores. Isso não significa que ele a deseja abstratamente. Mas, simplesmente, que os atos dos homens de boa fé possuem como derradeiro significado a procura da liberdade enquanto tal. Um homem que adere a um sindi­cato comunista ou revolucionário quer alcançar objetivos concretos; tais objetivos implicam uma vontade abstrata de liberdade; porém, essa liberdade é desejada em função de uma situação concreta. Que­remos a liberdade através de cada circunstância particular. E, que­rendo a liberdade, descobrimos que ela depende integralmente da liberdade dos outros, e que a liberdade dos outros depende da nossa. (...) Posso, portanto, formar juízos sobre aqueles que pretendem ocultar a si mesmos a total gratuidade de sua existên­cia e sua total liberdade, em nome dessa vontade de liberdade impli­cada pela própria liberdade. (...) A única coisa que impor­ta é saber se a invenção que se faz se faz em nome da liberdade.
Antes de alguém viver, a vida, em si mesma, não é nada; é quem a vive que deve dar-lhe um sentido; e o valor nada mais é do que esse sentido escolhido. (...) a pala­vra humanismo tem dois significados muito diferentes. Podemos con­siderar como humanismo uma teoria que toma o homem como meta e como valor superior. (...) O que supõe que podemos atribuir um valor ao homem em função dos atos mais elevados de certos homens. (...) O existencia­lismo dispensa-o de todo e qualquer juízo desse tipo: o existencialismo não colocará nunca o homem como meta, pois ele está sempre por fazer. E não devemos acreditar que existe uma humanidade à qual possamos nos devotar, tal como fez Auguste Comte. O culto da hu­manidade conduz a um humanismo fechado sobre si mesmo, como o de Comte, e, temos de admiti-lo, ao fascismo. Este é um humanis­mo que recusamos.
Existe, porém, outro sentido para o humanismo, que é, no fun­do, o seguinte: o homem está constantemente fora de si mesmo; é projetando-se e perdendo-se fora de si que ele faz com que o homem exista; por outro lado, é perseguindo objetivos transcendentes que ele pode existir; sendo o homem essa superação e não se apoderando dos objetos senão em relação a ela, ele se situa no âmago, no centro des­sa superação. Não existe outro universo além do universo humano, o universo da subjetividade humana. É a esse vínculo entre a trans­cendência, como elemento constitutivo do homem (não no sentido em que Deus é transcendente, mas no sentido de superação), e a sub­jetividade (na medida em que o homem não está fechado em si mes­mo, mas sempre presente num universo humano) que chamamos humanismo existencialista. Humanismo, porque recordamos ao homem que não existe outro legislador a não ser ele próprio e que é no desamparo que ele decidirá sobre si mesmo; e porque mostramos que não é voltando-se para si mesmo mas procurando sempre uma meta fora de si.
O existencialismo não é tanto um ateísmo no senti­do em que se esforçaria por demonstrar que Deus não existe. Ele declara, mais exatamente: mesmo que Deus existisse, nada mudaria; eis nosso ponto de vista. Não que acreditemos que Deus exista, mas pensamos que o problema não é o de sua existência; é preciso que o homem se reencontre e se convença de que nada pode salvá-lo dele próprio, nem mesmo uma prova válida da existência de Deus.


terça-feira, 10 de janeiro de 2017

MAQUIAVEL

Trechos da obra O Príncipe


NICOLAU MAQUIAVEL


CAPÍTULO XVII

Da crueldade e da piedade e se é melhor ser amado ou temido

(...) cada Príncipe deve desejar ser tido como piedoso e não como cruel: apesar disso, deve cuidar de empregar convenientemente essa piedade. (...) Não deve, portanto, importar ao Príncipe a qualificação de cruel para manter seus súditos unidos e leais, porque, com raras exceções, é ele mais piedoso do que aqueles que por muita clemência deixam acontecer desordens, das quais podem nascer assassínios ou rapinagem.
(...) será melhor ser amado que temido ou vice-versa. Responder-se-á que se desejaria ser uma e outra coisa; mas como é difícil reunir ao mesmo tempo as qualidades que dão aqueles resultados, é muito mais seguro ser temido que amado, quando se tenha de falhar em uma das duas. E que os homens geralmente são ingratos, volúveis, simuladores, covardes e ambiciosos de dinheiro, e, enquanto lhes fizeres bem, todos estarão contigo, oferecendo-te sangue, bens, vida, filhos, como disse acima, desde que a necessidade esteja longe de ti. Mas, quando ela se avizinha, voltam-se para outra parte. E o Príncipe, que se confiou plenamente em palavras e não tomou outras precauções, está arruinado. Pois as amizades conquistadas por interesse, e não por grandeza e nobreza de caráter, são compradas, mas não se pode contar com elas no momento necessário. E os homens hesitam menos em ofender aos que se fazem amar do que aos que se fazem temer, porque o amor é mantido por um vínculo de obrigação, o qual, em virtude de serem os homens maus, é rompido sempre que lhe aprouver, ao passo que o temor que se infunde é alimentado pelo receio de castigo, que é um sentimento que não se abandona nunca. Deve, portanto, o Príncipe fazer-se temer de maneira que, se não se fizer amado, pelo menos evite o ódio, pois é fácil ser ao mesmo tempo temido e não odiado, o que sucederá uma vez que se abstenha de se apoderar dos bens e das mulheres de seus cidadãos e de seus súditos, e, mesmo sendo obrigado a atingir a família de alguém, poderá fazê-lo quando houver justificativa conveniente e causa manifesta. Deve, sobretudo, abster-se de se aproveitar dos bens dos outros, porque os homens esquecem mais depressa a morte do pai do que a perda de seu patrimônio.
Mas quando o Príncipe está em campanha e tem sob seu comando grande número de soldados, então é absolutamente necessário não se importar com a fama de cruel, porque, sem ela, não se conseguiria nunca manter um exército unido e disposto a qualquer ação.

CAPÍTULO XVIII

De que forma os Príncipes devem manter a palavra

Todos compreendem o quanto seja louvável a um Príncipe manter a palavra e viver com integridade, não com astúcia; contudo, observa-se, pela experiência, em nosso tempo, que houve Príncipes que fizeram grandes coisas, mas em pouca conta tiveram a palavra dada, e souberam, pela astúcia, iludir os homens, superando, enfim, os que foram leais.
(...) um Príncipe prudente não pode nem deve guardar a palavra dada quando isso se lhe torne prejudicial e quando as causas que o determinaram cessem de existir. Se os homens todos fossem bons, esse preceito seria mau. Mas, dado que são maus e que não a observariam a teu respeito, também não és obrigado a cumpri-la para com eles. Jamais faltaram aos Príncipes razões legítimas para dissimular o descumprimento da palavra empenhada.
(...) É que os homens, em geral, julgam mais pelos olhos do que pelas mãos, pois todos podem ver, mas poucos são os que sabem sentir. Todos veem o que tu pareces, mas poucos o que és realmente, e estes poucos não têm a audácia de contrariar a opinião dos que têm por si a majestade do Estado. Nas ações de todos os homens, principalmente dos Príncipes, onde não há tribunal para recorrer, o que importa são os fins. Procure, pois, um Príncipe, vencer e conservar o Estado. Os meios que empregar serão sempre julgados honrosos e louvados por todos, porque o vulgo é levado pelas aparências e pelos resultados dos fatos consumados, e o mundo é constituído pelo vulgo, e não haverá lugar para a minoria se a maioria tem onde se apoiar.

CAPÍTULO XXV

De quanto pode a fortuna nas coisas humanas e de que modo se deve resistir-lhe

Não me é desconhecido que muitos têm tido e têm a opinião de que as coisas do mundo são governadas pela fortuna e por Deus, de sorte que a prudência dos homens não pode corrigi-las, e mesmo não lhes traz remédio algum. Por isso, poder-se-ia julgar que não deve alguém incomodar-se muito com elas, mas deixar-se governar pela sorte. Essa opinião é grandemente aceita em nosso tempo pela grande variação das coisas, o que se vê todo dia, fora de toda conjetura humana. Às vezes, pensando nisso, tenho me inclinado a aceitá-la. Não obstante, e para que nosso livre-arbítrio não desapareça, penso poder ser verdade que a fortuna seja arbitra de metade de nossas ações, mas que, ainda assim, ela nos deixe governar quase a outra metade. Comparo-a a um desses rios impetuosos que, quando se encolerizam, alagam as planícies, destroem as árvores, os edifícios, arrastam montes de terra de um lugar para outro: tudo foge diante dele, tudo cede a seu ímpeto, sem poder obstar-lhe. E, se bem que as coisas se passem assim, não é menos verdade que os homens, quando volta a calma, podem fazer reparos e barragens, de modo que, em outra cheia, aqueles rios correrão por um canal, e seu ímpeto não será tão livre nem tão danoso. Do mesmo modo acontece com a fortuna; seu poder é manifesto onde não existe resistência organizada, dirigindo ela sua violência só para onde não se fizeram diques e reparos para contê-la.
(...) um Príncipe se apoia totalmente na fortuna, arruína-se segundo as variações daquela. Também julgo feliz aquele que combina seu modo de proceder com as particularidades dos tempos, e infeliz o que faz discordar dos tempos sua maneira de proceder. (...) tendo alguém prosperado em um caminho, não pode resignar-se a abandoná-lo. Ora, o homem circunspecto, quando chega a ocasião de ser impetuoso, não o sabe ser, e por isso se arruína, porque, se mudasse de natureza, conforme o tempo e as coisas, não mudaria de sorte.
(...) Estou convencido de que é melhor ser impetuoso do que circunspecto, porque a sorte é mulher e, para dominá-la, é preciso bater-lhe e contrariá-la. E é geralmente reconhecido que ela se deixa dominar mais por estes do que por aqueles que procedem friamente. A sorte, como mulher, é sempre amiga dos jovens, porque são menos circunspectos, mais ferozes e com maior audácia a dominam.