sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Princípio da ética em Rousseau


A diferença entre animalidade e humanidade segundo Rousseau: o nascimento da ética humanista

Para Rousseau, antes de tudo, é evidente que o animal, mesmo que se pareça com uma "máquina engenhosa", como diz Descartes, possui mesmo assim uma inteligência, uma sensibilidade, até mesmo uma faculdade de comunicar. Não são, portanto, a razão, a afetividade, nem mesmo a linguagem que distinguem, em última instância, os seres humanos, mesmo que, à primeira vista, esses diversos elementos possam parecer discriminatórios. Nesses dois aspectos, só diferimos dos animais pelo grau, do mais ao menos.

O critério de diferenciação entre o homem e o animal reside em outro ponto.

Rousseau vai situá-lo na liberdade, ou, como exprime por meio de uma palavra que vamos analisar, na "perfectibilidade". Digamos apenas, por ora, que essa "perfectibilidade" designa, numa primeira abordagem, a faculdade de se aperfeiçoar ao longo da vida, enquanto o animal, guiado desde a origem e de modo seguro pela natureza, como se dizia na época, pelo "instinto", é, por assim dizer, perfeito "de imediato", desde o nascimento.

Poderíamos fazer o seguinte comentário: no animal, a natureza fala o tempo todo e fortemente, tão fortemente que ele não tem a liberdade de fazer nada além de obedecer-lhe. No homem, ao contrário, domina certa indeterminação: a natureza está presente, de fato, e muito, como nos ensinam todos os biólogos. Nós também temos um corpo, um programa genético, o do nosso DNA, do genoma transmitido por nossos pais. Contudo, o homem pode afastar-se das regras naturais, e até mesmo criar uma cultura que se opõe a elas quase termo a termo — por exemplo, a cultura democrática que vai tentar resistir à lógica da seleção natural para garantir a proteção dos mais fracos.

Três consequências maiores da nova definição das diferenças entre animalidade e humanidade: os homens, únicos seres portadores de história, de igual dignidade e de inquietação moral

As consequências dessa constatação são profundíssimas. Eu lhe indicarei apenas as três que vão ter penetração considerável nos planos moral e político.

Primeira consequência: os humanos serão, diferentemente dos animais, dotados do que se poderia chamar de dupla historicidade. De um lado, haverá a história do indivíduo, da pessoa, e é o que chamamos habitualmente de educação; de outro, haverá também a história da espécie humana, ou, se você preferir, a história das sociedades humanas, o que habitualmente chamamos de cultura e política.

O que faz com que um bicho não possua nem história pessoal (educação) nem história política e cultural é que ele é desde o início e desde sempre guiado pelas regras da natureza, pelo instinto, e que lhe é impossível se afastar deles. O que, ao contrário, permite ao ser humano ter essa dupla historicidade é justamente o fato de que, estando em excesso em relação aos "programas" da natureza, pode evoluir indefinidamente, educar-se "ao longo da vida", e entrar numa história da qual ninguém pode dizer hoje quando e onde acabará. Em outras palavras, a perfectibilidade, a historicidade, como queira, é consequência direta de uma liberdade em si mesma definida como possibilidade de afastamento em relação à natureza.

Segunda consequência: como diz Sartre — que sem saber repetia Rousseau —, se o homem é livre, então não existe "natureza humana", "essência do homem", definição de humanidade, que precederia e determinaria sua existência. A existência do homem precede sua essência, como diz Sartre, temos uma magnífica crítica ao racismo e ao sexismo.

O racismo diz que "o africano é jogador", "o judeu, inteligente", "o árabe, preguiçoso" etc., e só com o emprego do artigo "o" sabe-se que estamos lidando com um racista, um ser convencido de que todos os indivíduos de um mesmo grupo partilham a mesma "essência". O mesmo vale para o sexista que facilmente pensa que está na "natureza" da mulher ser mais sensível do que inteligente, mais terna do que corajosa, para não dizer "feita para" ter filhos e ficar em casa, grudada no fogão...

Terceira consequência: é porque é livre, porque não é prisioneiro de nenhum código natural ou histórico determinante, que o ser humano é um ser moral. Como poderíamos, aliás, lhe imputar boas ou más ações se ele não fosse de algum modo livre para escolher? Em contrapartida, quem pensaria em condenar o tubarão que acaba de devorar um surfista?

A herança de Rousseau: uma definição do homem como “animal desnaturado”

Para se interrogar, é preciso dois, aquele que interroga e aquilo que é interrogado. Confundido com a natureza, o animal não pode se interrogar. Eis aí, me parece, o ponto que procuramos. O animal e a natureza são um só. O homem e a natureza são dois.

É por causa dessa distância que nos é possível entrar na história da cultura, não ficar preso à natureza, como lhe expliquei há pouco. Mas é também graças a ela que podemos interrogar o mundo, julgá-lo, transformá-lo e, como tão bem se diz, inventar "ideais", uma distinção entre o bem e o mal.

Referências Bibliográficas:
FERRY, Luc. Aprender a viver: Filosofia para os novos temposRio de Janeiro, Editora Objetiva, 2010.

ESTOICOS


Vida tranquila
Os primeiros estoicos eram gregos, os últimos eram romanos. Por isso, o estoicismo figura tanto como escola filosófica grega quanto como romana. Destacamos entre os mais antigos os gregos Zenão, Cleanto e Crisipo. E, entre os mais recentes, e seguramente muito mais conhecidos, os romanos Sêneca, Epicteto e Marco Aurélio.
Politicamente, os estoicos gregos eram marginais e dominados. Já os romanos se aproximaram do poder. E passaram a exercê-lo como nunca antes um filósofo tinha logrado em tal magnitude. Como Marco Aurélio, simplesmente imperador.
Zenão, reconhecido como pai fundador do estoicismo grego, nascido em 333 a.C, na ilha de Chipre, era imigrante. Não tinha cidadania ateniense. Por isso não podia adquirir imóveis. Assim, para dar aulas, teve que se contentar com um pórtico, em grego stoá, espécie de porta de entrada da cidade, ao ar livre. Desta palavra grega, deriva estoico. Aquele que se encontra na porta. Que pode ser tanto de entrada como de saída. Espaço que denuncia a marginalidade do pensamento estoico neste momento.
Identificamos no estoicismo muitas semelhanças com o pensamento de Epicuro. Negação de toda explicação transcendente do mundo. E isto é o que mais aproxima as duas escolas adversárias. Redução do mundo ao observável. Ênfase à reflexão e ao ensino da ética, denominada por eles de arte de viver. E a felicidade, como escopo da vida.

Porém, duas questões fundamentais distinguiam o estoicismo do epicurismo: em primeiro lugar, a refutação do atomismo. Esta distancia-se de nossa temática.

A segunda nos interessa mais de perto: a redução epicurista da felicidade e da vida boa ao prazer. O prazer é a condição da vida boa. E este prazer que corresponde à vida boa não é qualquer prazer. Mas apenas aqueles que requerem a satisfação de desejos naturais e necessários.
O pensamento estoico sugere postura mais defensiva. Uma ra­zão protetora contra as agressões. Porque, segundo sua perspectiva, estaria presente — em tudo que vive — uma tendência da conservação de si.

Brilhante, companheiro
O que desce redondo para uns, atrita em outros. A nossa vida boa vai depender das condições de aproximação de tudo que se harmoniza conosco e de distanciamento de tudo que se opõe a nós.
A vida feliz deve ser uma vida harmonizada com o resto da natureza. Harmonia que não significa proximidade de tudo ou relação com tudo. Mas apenas com aquilo que conserva e ativa. Harmonia que pressupõe distância de tudo que enfraquece. Por isso, o bem vai sempre depender desta particular conservação. Uma coisa boa, para uns, poderá ser má para outros.
Prazer e dor não são prioritários. São consequências de uma vida que já encontrou o que lhe é fundamental, o que a conserva e realiza.
Todos os homens, contam, segundo os estoicos, com um instinto primeiro. Como todo instinto, é pré-racional. Este nos permite avaliar as coisas do mundo como benévolas ou malévolas. O bem é, portanto, vantajoso e útil e o mal, o nocivo. Mas esse instinto, o gorila também tem. Deve haver algo mais...

Tranquilidade e Deus

O homem se manifesta no logos divino. O ser de Deus é o ser do mundo. É o próprio universo. Imanente ao universo. Não seu criador. Ora, esse universo, que é Deus, é lógico. Portanto, existe um logos divino. Uma lógica, ou compreensibilidade, das coisas divinas. Que se manifesta no homem. Porque só a ele é dada a faculdade de compreender esse divino da ordem universal.
Os estoicos achavam o universo maravilhoso. Contemplavam e constatavam uma adequação perfeita na relação entre suas partes. Passou a chamá-la de Deus.

Tranquilidade e alma

Para os estoicos, tanto o homem quanto o próprio universo cósmico são dotados de alma.
Essa força racional da própria natureza corresponderia a um fogo que penetraria toda a realidade, aquecendo e ensejando vida. Assim, uma girafa está viva porque seu fogo a anima. Alma de girafa. A alma que o constitui é matéria, é corpo, é fogo. Fogo que lhe proporciona a vida.
Ora, essa alma que permeia o organismo humano é responsável por todas as suas funções essenciais.Para os estoicos a alma é corpórea. Constituída de fogo.
Esse privilégio humano — manifestação do logos divino — exige, segundo os estoicos, uma reflexão sobre a vida boa que não se confunda com a do resto dos viventes. Isto porque as coisas que se harmonizam com animais — estritamente instintivos — não se harmonizam necessariamente com o homem, essencialmente racional.

Theoría: a contemplação da ordem cósmica

Para os estoicos, de fato, a the-oría (theó significa Deus) consiste exatamente em esforçar-se por contemplar o que é "divino" no real que nos cerca. Em outras palavras, a tarefa primeira da filosofia é ver o essencial do mundo, o que nele é mais real, mais importante, mais significativo. Ora, pela tradição que culmina no estoicismo, a essência mais íntima do mundo é a harmonia, a ordem, simultaneamente justa e bela, que os gregos designam pelo nome de cosmos.
O mundo material, o universo todo, é, no fundo, como um gigantesco animal do qual cada elemento — cada órgão — seria admiravelmente concebido e agenciado em harmonia com o conjunto. É essa ordem, esse cosmo como tal, essa estrutura ordenada do universo todo que os gregos chamam de "divino", e não, como para os judeus ou os cristãos, um Ser exterior ao universo, que existiria antes dele e que o teria criado. Pode-se, portanto, dizer que a estrutura do universo não é apenas "divina", perfeita, mas também "racional", de acordo com o que os gregos chamam de logos (lógica) e que designa justamente essa ordenação admirável das coisas. Para os estoicos, abrir os olhos para o mundo era, assim como para um biólogo, abrir os olhos para o corpo de um rato ou de um coelho, a fim de descobrir que tudo nele é perfeitamente “benfeito”. Cícero dizia que “o mundo é um ser animado, dotado de consciência, inteligência e razão”.
Se compreendemos bem os Antigos, o que queriam dizer não tem nada de absurdo: ao afirmar o caráter divino do universo todo, eles exprimiam sua convicção de que uma ordem “lógica” operava por trás do caos aparente das coisas, e que a razão humana poderia trazê-la à luz. Do ponto de vista da theoría estoica, o cosmo é, pois, com exceção de alguns episódios acidentais e provisórios que são as catástrofes, essencialmente harmonioso — o que terá consequências importantes no plano "prático" (ou seja, nos planos moral, jurídico e político). Sob essa ótica, uma das finalidades últimas da vida humana será encontrar seu justo lugar no seio da ordem cósmica. Para a maioria dos pensadores gregos — com exceção dos epicuristas —, é perseguindo essa busca, ou melhor, realizando essa tarefa, que se pode conquistar a felicidade e a vida boa. Marco Aurélio nós fala um pouco dessa harmonia:
A juba do leão, a espuma que escorre da goela do javali, e muitas outras coisas, se observamos detalhadamente, sem dúvida estão longe de ser belas, e, no entanto, porque derivam do fato de terem sido engendradas pela natureza, são um ornamento e possuem encanto; se nos apaixonássemos pelos seres do universo, se tivéssemos uma inteligência mais profunda, sem dúvida, todos eles nos pareceriam sempre criaturas agradáveis. Mesmo em velhos e velhas, poderemos encontrar uma certa perfeição, uma beleza, como encontramos na graça infantil, se tivermos os olhos de um sábio.
O Deus dos cristãos é transcendente em relação ao mundo, ao passo que o divino dos estoicos, que absolutamente não se situa em não sei que "além", já que não é senão a estrutura harmoniosa, cósmica ou cosmética do próprio mundo, lhe é perfeitamente imanente.

O que não impede que, de outro ponto de vista, o divino dos estoicos possa ser do mesmo modo chamado de "transcendente", não, com certeza, em relação ao mundo, mas em relação aos homens, tendo em vista que ele é radicalmente superior e exterior a eles. É importante perceber que a theoría filosófica, entendida nesse duplo sentido, não é redutível a uma ciência particular como a biologia, a astronomia, a física ou a química, por exemplo. Por exemplo, ela não se interessa apenas pelo ser vivo, como a biologia, ou apenas pelos planetas, como a astronomia, nem mesmo apenas pela matéria inanimada, como a física, mas tenta captar a essência ou a estrutura interna da totalidade do mundo. Contudo, a filosofia não é uma ciência entre outras, e mesmo que ela deva levar em conta os resultados científicos, seu propósito fundamental não é de ordem científica. Ela busca um sentido para este mundo que nos cerca, elementos que nos permitam nele inscrever nossa existência, e não apenas um conhecimento objetivo.
Essa theoría, contrariamente às nossas ciências modernas que são, por princípio, "neutras", visto que descrevem o que é e nunca o que poderia ser, vai ter implicações práticas nos planos moral, jurídico e político.

Do amor à sabedoria à prática da sabedoria: a morte não é para ser temida, ela é apenas uma passagem, pois somos um fragmento eterno do cosmo
Mesmo que todos os seres humanos não se tornem filósofos, todos são, um dia ou outro, tocados pelas questões filosóficas. A filosofia, diferentemente das grandes religiões, vai prometer nos ajudar a nos "salvar", a vencer nossos medos e inquietações, não por intermédio de Outro, de um Deus, mas por nós mesmos, por nossas próprias forças, fazendo uso de nossa simples razão. Tendo chegado a certo nível de sabedoria teórica e prática, o ser humano compreende que a morte não existe verdadeiramente, que ela é apenas a passagem de um estado a outro, não um aniquilamento, mas um modo de ser diferente. Enquanto membros de um cosmo divino e estável, nós também podemos participar dessa estabilidade e dessa divindade. Já que o universo é eterno, e nós mesmos somos chamados a permanecer para sempre um fragmento dele, não cessaremos jamais de existir!
Para Epicteto, o objetivo de toda atividade filosófica é "a viver e morrer como um deus", ou seja: como um ser que, percebendo sua ligação privilegiada com todos os outros no seio da harmonia cósmica, alcança a serenidade, a consciência de que, mortal num sentido, não deixa de ser eterno em outro.

“Esperar um pouco menos, amar um pouco mais”
Vivemos continuamente na dimensão do projeto, correndo atrás de objetivos postos num futuro mais ou menos distante e pensamos, ilusão suprema, que nossa felicidade depende da realização completa de fins medíocres ou grandiosos. Esquecemos que não há outra realidade além da que é vivida aqui e agora, e que essa estranha fuga para adiante nos faz com certeza falhar. Segundo a famosa expressão de Sêneca, "enquanto se espera viver, a vida passa".  O passado não está mais aqui, e o porvir ainda não chegou. Marco Aurélio insiste:
Lembra-te de que cada um de nós só vive no momento presente, no instante. O resto é o passado, ou o obscuro futuro. Pequena é, pois, na verdade, a extensão da vida
A vida boa é a vida sem esperanças e sem temores; é, pois, a vida reconciliada com o que é, a existência que aceita o mundo tal como é. Você entende que essa reconciliação não poderia acontecer se não houvesse a certeza de que o mundo é divino, harmonioso e bom.

Em defesa do "não apego"

O estoicismo, num espírito próximo ao do budismo, defende uma atitude de "não apego" aos bens deste mundo, como sugere Epicteto:
O primeiro e principal exercício, o que conduz de imediato às portas do bem, consiste, quando uma coisa nos prende, em considerar que ela não é daquelas que não nos podem ser tiradas; que ela é como uma panela, ou uma taça de cristal, que quando se quebra não nos perturba porque lembramos o que ela é. O mesmo acontece aqui: se abraças um filho, um irmão ou um amigo, não te abandones sem reservas à imaginação... Lembra-te que amas um mortal, um ser que não é absolutamente tu mesmo. Ele te foi concedido para o momento, mas não para sempre, nem sem que te possa ser tomado... que mal existe em murmurar entre dentes, enquanto se abraça o filho: "Amanhã ele morrerá"?
O fato de que nada é estável neste mundo, que tudo muda e passa, e que não compreender isso é preparar para si mesmo os horríveis tormentos da nostalgia e da esperança. Marco Aurélio confirma:
Se, eu afirmo, separas dessa faculdade diretora tudo o que a ela se juntou em consequência das paixões, tudo o que está além do presente e todo o passado, farás de ti mesmo, como disse Empédocles, "uma esfera bem redonda, altiva em sua alegria e solidão". Tu te exercitarás a viver apenas no momento em que vives, quer dizer, no presente; e poderás passar todo o tempo que te resta até a morte, sem perturbação, nobremente e de um modo agradável para teu próprio demônio.
Trata-se de viver no presente, afastar de si os remorsos, os arrependimentos e as angústias que cristalizam o passado e o porvir, para aproveitar cada instante da vida como merecido, quer dizer, com plena e total consciência de que, para os mortais que somos, pode ser que seja o último. Portanto, "é preciso realizar cada ação da vida como se fosse a última" (Marco Aurélio, Meditações II, 5, 2).
Quando a coincidência entre nós e o mundo que nos cerca se torna perfeita, quando a concordância se faz por si mesma, sem constrangimento, na harmonia, que, de repente, o tempo parece anulado, dando lugar a um presente que parece durar, um presente, por assim dizer, dotado de espessura, cuja serenidade não é corrompida por nada do que passou ou virá. Quando ascende a esse grau de vigilância, o sábio pode viver "como um deus", na eternidade de um instante que nada mais relativiza, na completude de uma felicidade que nenhuma angústia poder vir a corromper. Quando a catástrofe, ou, pelo menos, o que os homens consideram habitualmente como tal — a morte, a doença, a miséria e todos os males ligados ao caráter irreversível do tempo que passa —, acontecer, eu poderei enfrentá-la graças às capacidades que me foram dadas de viver no presente, quer dizer, de amar o mundo tal como ele é.

Referências Bibliográficas:
FERRY, Luc. Aprender a viver: Filosofia para os novos temposRio de Janeiro, Editora Objetiva, 2010.


DE BARROS FILHO, Clóvis. A vida que vale a pena ser vivida. Editora Vozes, 2010.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

PERSEU


Com Perseu, temos mais uma vez pela frente um desses heróis gregos motivados pela justiça e preocupados em expulsar do mundo dos vivos seres passíveis de destruir a bela ordem cósmica instaurada por Zeus.

Era uma vez dois irmãos gémeos que se chamavam Acrísio e Proitos e dos quais se diz que se davam tão mal que já brigavam dentro da barriga da mãe! Para evitar que continuassem a brigar já adultos, eles resolveram dividir o poder. Proitos se tornou rei de uma cidade chamada Tirinto, e Acrísio, que é quem vai nos interessar, passa a reinar na bela cidade de Argos.

Ele tem uma linda filha, Dânae, mas nenhum filho, e nessa época longínqua um rei precisa ter um filho que assuma sua sucessão no trono. Seguindo a tradição, Acrísio se dirige então a Delfos para consultar o oráculo e saber se um dia, sim ou não, ele terá um herdeiro. Também seguindo a tradição, o oráculo responde à questão de forma enviesada. Diz apenas que ele vai ter um neto e esse neto, quando for adulto, vai matá-lo. Acrísio fica assustado e, para dizer a verdade, apavorado: o oráculo de Delfos nunca se engana e é uma condenação à morte que acaba de sair de sua boca. Nada se pode fazer contra o destino, mas, mesmo assim, os humanos não conseguem deixar de tentar. Mesmo gostando muito da filha, Acrísio resolve trancá-la com uma dama de companhia, uma servente, numa espécie de prisão de bronze que ele manda construir no subsolo do pátio do seu palácio. Ele, porém, pede ao arquiteto que deixe uma pequena fenda no teto para que um pouco de ar possa entrar, para Dânae não morrer asfixiada. Terminado o trabalho, ele tranca a filha com a servente e se sente um pouco menos angustiado.

Não contava com a concupiscência de Zeus, que, do alto do Olimpo, havia percebido a linda Dânae. E, como de costume, uma vez mais ele resolve se deitar com ela. Tendo isso em mente, se metamorfoseia em chuva de ouro que cai do céu e sutilmente se infiltra na prisão pela abertura deixada no alto. A chuva dourada cai no corpo de Dânae e desse contato único nasce um menino, Perseu. Cresce bem direitinho naquela gaiola, até o dia em que chama a atenção de Acrísio o tatibitate da criança. Horrori­zado, manda que imediatamente abram a prisão e descobre com terror a realidade: ele pura e simplesmente, apesar de tantas precauções, tem um neto. O que fazer? Para começar, mata a infeliz servente que, no entanto, não tem culpa alguma. Interroga a filha: o que fez para arrumar o bebé? Quem é o pai? Dânae conta a verdade. Zeus é o pai e tinha descido do céu transformado em chuva de ouro etc. Ele não acredita numa só palavra dessa história e acha que a filha está contando lorotas. Mas não pode, afinal de contas, fazer com ela o que fez com a servente. Nem com Perseu: trata-se de sua filha e de seu neto — as Erínias, que sempre punem os assassinatos em família, viriam atormentá-lo.

E apela então para um hábil marceneiro. Pede que construa um grande baú, tão benfeito que possa vagar pelos mares. Coloca lá dentro a filha e o neto. Fecha bem hermeticamente e pronto, tudo isso dentro d'água! Seguem abandonados ao sabor das ondas, entregues à própria sorte. O baú, como é de imaginar, acaba chegando a algum lugar. No caso, uma ilha, a ilha de Sérifo, onde os dois náufragos são encontrados por um pescador chamado Dictis. É um bom sujeito, com real generosidade, e trata Dânae com o devido respeito que se deve a uma princesa, criando ainda o pequeno Perseu como se fosse seu próprio filho. Mas Dictis tem um irmão, Polidectes, bem menos delicado e respeitoso. Polidectes é rei de Sérifo e se apaixona por Dânae assim que a vê. Resumindo os fatos, ele daria tudo para dormir com ela. O único problema é que Dânae não quer e que Perseu cresceu: já é um rapaz. Ele protege a mãe e não é tão fácil assim se livrar dele. Polidectes tem uma ideia, sem dúvida para desviar a atenção de Perseu ou talvez para fazê-lo cair numa armadilha, não se sabe muito bem. Em todo caso, trata-se de afastá-lo, e ele anuncia com grande alarde que vai dar uma festa para a qual todos os jovens da ilha estão convidados. Pretende anunciar, nessa ocasião, que quer se casar com uma moça, Hipodâmia, que adora cavalos. É costume que todos os jovens ofereçam um presente. Cada um traz um cavalo, o mais bonito possível, para agradar ao rei. Perseu, entretanto, nada tem. É claro, ele é pobre como, literalmente, um náufrago. Em compensação, ou talvez por pura bravata, se dispõe a presentear Polidectes com qualquer outra coisa, até mesmo a cabeça de Medusa, a terrível Górgona! Talvez tenha dito isso só para chamar a atenção, ou pode ser também que já sentisse em si mesmo uma vocação heróica.

De um jeito ou de outro, o rei evidentemente o toma ao pé da letra, todo contente com a oportunidade de definitivamente se livrar daquele desmancha-prazeres que nunca sai de perto da mãe. Já da Górgona, ninguém jamais se aproximara que voltasse vivo. O caminho estaria livre para se casar (ou tomar à força...) Dânae.

As três Górgonas tinham anteriormente sido muito bonitas, mas cometeram a impudência de pretender que eram mais belas do que Atena. E o tipo de hybris, como você já sabe, que não se perdoa. Para se vingar ou, mais exatamente, para colocá-las de volta no devido lugar, Atena literalmente as desfigurou. Passaram a ter pavorosos olhos exorbitados; uma língua semelhante à de um porco ou de um carneiro sai o tempo todo das suas bocas, além dos dentes de javali que as obriga a uma espécie de cacoete medonho. Têm braços e mãos de bronze e asas de ouro nas costas. Mas o pior é que os seus olhos globulosos transformam qualquer ser vivo, animais, plantas ou seres humanos em pedra assim que se cruza o olhar: o dom mágico que permite transformar o orgânico em inorgânico, o vivo em pedra ou em metal, representa uma ameaça direta à harmonia e à preservação da ordem cósmica inteira. Na verdade, se assim quiserem ou lhes permitirem, semelhantes seres podem aniquilar o trabalho de Zeus. É então vital para o cosmos que, quando necessário, eles sejam enviados de volta a seus lugares. Acontece porém que, das três Górgonas, duas são imortais e apenas uma mortal. Já era tempo de se liquidar pelo menos esta que pode ser liquidada, e é Perseu quem vai se encarregar disso.

A primeira etapa para Perseu consiste em procurar as assim chamadas "Greias". Três irmãs que são também irmãs das Górgonas. Todas têm os mesmos pais, igualmente apavorantes, dois gigantescos monstros marinhos, Fôreis e Ceto. As Greias têm como missão guardar o caminho que leva às Górgonas e, mesmo que pessoalmente ignorem a moradia exata delas, pelo menos sabem de ninfas que, com certeza, têm a informação. Caso Perseu consiga fazer as Greias falarem, poderá em seguida consultar as tais ninfas, numa segunda etapa do périplo. Mas as Greias não são fáceis. A sua maneira, são verdadeiros monstros, e é preciso ter cuidado: são famosas por devorarem rapazes quando bem entendem.

Como prova disso, as Greias têm duas características assustadoras. A primeira é que já nasceram velhas. A segunda característica é que as três têm só um olho e só um dente! Imagine só a cena: o tempo todo, sem parar, elas passam de uma para a outra o olho e o dente, que giram incessantemente nesse revezamento infernal.

Perseu é um herói, e, como você pode imaginar, nessa primeira façanha ele se sai bem. Rápido como o relâmpago, consegue subtrair os dois órgãos, e são as três velhas que passam a ficar aterrorizadas, pondo-se a berrar: elas são imortais, mas, sem o olho e o dente, a vida delas vai se tornar um inferno. Se não lhe disserem onde encontrar as ninfas que sabem onde se encontram as Górgonas, ele não lhes devolve os seus bens. E se assim escolherem, vão passar todo o restante da eternidade sem enxergar nem comer. Reclamando muito, as velhas aceitam. Indicam o caminho das ninfas, que elas deviam guardar. Muito honesto, Perseu lhes devolve o olho e o dente e sai rápido dali.

Ao contrário das três bruxas, as ninfas são tão bonitas quanto acolhedoras. Recebem Perseu com todo carinho. Não colocam a menor dificuldade para dizer onde encontrar as Górgonas. Mais ainda, chegam a oferecer presentes de valor inestimável, dotados de poderes mágicos sem os quais Perseu na verdade não teria a menor chance de alcançar o seu objeto. Para começar, oferecem sandálias aladas iguais às de Hermes, calçados que permitem que se voe no céu a toda velocidade, como um pássaro ou até mais rápido. Em seguida, dão o famoso capacete de Ha­des, um chapéu de pele de cachorro que torna invisível quem o usa — o que faz com que Perseu possa escapar da perseguição das duas Górgonas imortais, que vão querer vingar a irmã. Por último oferecem uma espécie de bornal, esse saco em que os caçadores colocam a caça já morta, para que Perseu possa guardar com segurança a cabeça da Górgona, depois de cortada. É preciso que saiba que seus olhos, mesmo com ela já morta, eternamente continuam a petrificar tudo aquilo por que passarem: é então extremamente prudente, para não dizer vital, mante-los sob controle. Aos três presentes, Hermes acrescenta uma faca. Em todo caso, um instrumento afiado que também é mágico: por mais duro e resistente que seja o que cair sob a sua lâmina, ele corta.

Mais uma vez, a tarefa não é fácil e ele precisa da ajuda de Atena. De fato, como cortar a cabeça da horrível Medusa sem correr o risco de cruzar o olhar com ela? Para executar semelhante trabalho, é preciso enxergar o que se faz. E é o que inexoravelmente o exporia à morte certa! Felizmente Atena pensou em tudo. Trouxe seu famoso escudo. Sendo lustroso e brilhante, ele vai servir de espelho. Ela se coloca atrás de Medusa, que está dormindo, enquanto Perseu se aproxima, silencioso como um gato. Ele vê no espelho o reflexo do rosto de Medusa: mesmo que ela o olhe, não há perigo, pois é apenas uma imagem e não a realidade. A partir daí, nada mais fácil do que cortar a horrível cabeça e colocá-la no bornal. Mas as duas outras Górgonas acordam. Imediatamente Perseu veste o chapéu de Hades que o torna invisível e os calçados de Hermes que lhe permitem fugir como o vento.

No caminho de volta para Sérifo, onde vai encontrar a mãe, Dânae, e entregar a cabeça de Medusa a Polidectes, estando nos ares, em pleno céu, ele vê aquela que vai se tornar sua mulher: a bela Andrômeda, que está numa péssima situação. No momento em que Perseu passa lá por cima, Andrômeda na verdade está acorrentada na encosta de um penhasco, num abismo acima do mar, onde a espera um monstro abominável! Qual pior situação se pode imaginar? Por quê? Sua mãe, Cassiopeia, que é mulher de Cefeu, rei da Etiópia, teve a péssima ideia, assim como Medusa com Atena, de desafiar divindades nada desprezíveis, no caso as Nereidas, filhas de Nereu, um dos mais antigos deuses do mar, inclusive anterior a Poseidon. Ela de fato as tinha insultado, pretendendo ultrapassá-las muito facilmente em matéria de beleza — algo que significa, como você já sabe, cometer por excelência o pecado de hybris. As Nereidas têm como melhor amigo Poseidon, que também se irrita com a estúpida pretensão. Para punir a insolente, ele envia um maremoto e, junto, um monstro marinho que passa a aterrorizar a região. Existe um único meio que pode acalmá-lo: entregar-lhe para comer a filha do rei, a bela Andrômeda. E Cefeu, com a alma em frangalhos, acaba aceitando. Por isso Andrômeda está amarrada naquele rochedo, aguardando um fim medonho, assim que o monstro resolver vir buscá-la. Perseu não hesita um segundo. Promete a Cefeu libertar a bela. Em troca, pede apenas que ela se torne sua mulher. Negócio feito. Com seu podão, sandálias aladas e capacete da invisibilidade, ele não tem a menor dificuldade para matar a fera, libertar a bela e levá-la de volta à terra. Todos ficam encantados, exceto um certo Fineu, tio de Andrômeda, que devia justamente se casar com ela. Tenta então se livrar de Perseu, que saca a cabeça da Górgona do bornal e imediatamente o transforma em pedra.

De volta a Sérifo, Perseu encontra sua mãe que havia fugido com Dictis para um templo, tentando escapar da violência de Polidec-tes. Ele penetrou no palácio num momento em que Polidectes havia convidado seus amigos e, desviando os olhos (para não ser ele próprio petrificado), mostrou a todos a cabeça da Górgona. Os convivas (inclusive, é claro, Polidectes) foram logo transformados em pedra, cada um na exata postura em que se encontrava (imagine só o quadro: uns bebendo vinho, outros no espanto de ver a entrada de Perseu, Polidectes certamente cheio de curiosidade e apreensão etc.). Depois de tornar Dictis rei de Sérifo (Polidectes, que virou estátua, está morto e seu irmão justo e bom o sucede no trono), Perseu devolve as sandálias, o bornal e o capacete a Hermes e dá a Atena a cabeça da Górgona. Hermes devolve os objetos em questão às ninfas e Atena coloca a cabeça da Górgona no centro do seu escudo (não esqueça que ela é também a deusa da guerra e que com a cabeça de Medusa ela pode literalmente "petrificar" de medo todos os inimigos).

Última sequência, inevitável: é preciso que o oráculo se cumpra e que Acrísio seja punido por sua maldade e egoísmo. Acompanhado por Andrômeda, que passa a ser sua mulher, e a mãe, Perseu decide voltar a Argos. Bom príncipe que ele é, já havia perdoado o avô. Não lhe quer mal, pois sabe que no fundo Acrísio fez tudo aquilo por medo de o oráculo se realizar. Quer lhe dar o seu perdão. Mas Acrísio, ao saber que Perseu está a caminho, fica aterrorizado com a ideia do cumprimento do oráculo. E rapidamente foge para outra cidade, Larissa, onde pede proteção ao rei, um certo Teutâmides. Este último está em plena organização de jogos atléticos, espécie de competição pelas quais os gregos eram loucos naquela época, com jovens disputando em todo tipo de modalidade esportiva. Acrísio é convidado pelo amigo para assistir ao espetáculo da tribuna. Ao saber que jogos se realizavam nas proximidades de Argos, justamente no seu caminho, Perseu não resiste à tentação de participar. Ele é excelente lançador de disco. Por falta de sorte, o primeiro disco que ele lança cai com toda força no pé de Acrísio, que morre na mesma hora.

N
ão me pergunte como um disco que cai no pé de alguém pode causar assim a sua morte. Isso não importa. O que conta é que a justiça se faz e o destino — que não passa de outra maneira de se chamar a ordem cósmica — reassume seus direitos. Tudo entra em sua ordem, e Perseu vai poder seguir tranquilamente o curso da sua vida, entre a mãe e a esposa, assim como os filhos que esta última não deixará de gerar. Ao morrer, Zeus, seu pai, concede o insigne favor para um mortal. Recompensando sua coragem e contribuição para a sustentação da ordem cósmica, Per­seu é inscrito por toda a eternidade na abóbada celeste, sob a forma de constelação que, ao que dizem, traça o desenho do seu rosto.

Referência Bibliográfica:
FERRY, Luc. Aprender a viver II: A sabedoria dos mitos gregos. Rio de Janeiro. Editora Objetiva, 2009.

SARTRE


A existência precede a essência

Nas mais diversas correntes filosóficas, a realidade é essencialmente alguma coisa. Há um atributo essencial na realidade a partir do qual nós podemos defini-la.

Assim, para Platão, a essência da realidade é uma ideia, da qual as coisas sensíveis apenas participam. Conhecer uma coisa é conhecer a sua ideia. Já para Aristóteles, a essência das coisas é a sua causa. O elemento que determina a realidade a ser como ela é. Esta essência, de certa forma, vem antes das coisas particulares que percebemos. Estão por trás delas. Conferem-lhes sentido.

Nesta perspectiva, a essência de uma tesoura contamina toda tesoura particular existente nas gavetas pelo mundo afora. Afinal, temos que aceitar que, antes da tesoura que você usa para cortar papéis, deve ter havido uma ideia. Ideia que inspira toda a produção de tesouras.

Da mesma forma, a natureza de um gato, seu instinto, está por trás de cada instante da existência deste gato. Pautando sua vida. Nestes casos, do gato e da tesoura, a essência precede a existência. A definição vem antes da vida. A ideia antecipa o existir no mundo de carne e osso.

Eis a grande ruptura proposta pelo existencialismo. A de assegurar que, no caso do homem e de sua vida, não é bem assim que funciona. Não há uma essência que pauta a existência. O homem nasce nada. Sem uma definição que antecipe a vida. Porque, se houvesse, estaria comprometida a liberdade.

A existência se impõe sem essência que lhe dê apoio. É a partir da vida que se definem os homens. É a partir da fundamental liberdade para existir que as escolhas se definirão. A liberdade constitui a própria realidade humana.

Na vida que nos toca viver, nunca um momento simplesmente derivará de outro. Como o ferver da água exposta ao fogo. O que nos situa muito distantes do resto da natureza. Onde tudo é determinado. Onde todo efeito determina, por sua vez, a sua causa.

Referência Bibliográfica:

DE BARROS FILHO, Clóvis. POMPEU, Júlio. A Filosofia Explica as Grandes Questões da Humanidade. Casa do Saber, 2014.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

IMMANUEL KANT


Vida moralizada

No que diz respeito à importância da moral para uma vida boa, suponho que você leitor pense como eu: a vida vivida num lugar onde todos se respeitam e se preocupam com os demais tende a ser melhor do que em outro onde cada um simplesmente luta, no limite das suas forças, para satisfazer seus apetites, em detrimento de qualquer outro concorrente. Freud se juntaria a nós. Porque se a vida na civilização pode ser castradora e horrível, fora dela — num eventual estado de natureza — será ainda muito pior.

Mas, se a moral entendida, a grosso modo, como respeito pelo outro ou até mesmo preocupação pela sua felicidade — é relevante para a vida, não garante, por si só, uma existência feliz. Porque, como dizem alguns, nem sempre o bem vence o mal. Porque o mundo quase nunca é justo. Por isso, talvez, tantas promessas de salvação fora daqui. Num outro mundo qualquer em que a moral e a vida boa possam estar finalmente alinhadas.

Mas, neste nosso mundo velho de guerra, neste de carne e osso, que é onde nos toca viver por enquanto, quantos não conhecemos, indivíduos super gente fina e tristes. Porque ser um cara legal não elimina boa parte dos chamados problemas existenciais.

Afinal, por mais zelosos que sejamos com os outros, por mais que condicionemos, nós mesmos, a satisfação de nossos apetites a um entendimento coletivo, nosso corpo segue sua trajetória de encontros com o mundo. Muitos deles entristecedores. No envelhecimento, que compartilhamos. Mas também no que nos é particular. Na reduzida visão de perto, nos constrangedores exames de próstata, no cansaço depois de meia hora de jogo, no acúmulo de adiposidade na região pneumática. Sem falar na rigidez, dos ossos, e na falta de rigidez, do que não é osso.

Como se não bastasse nosso próprio corpo, que definha mesmo quando não merecemos, outras pessoas também nos causam problemas. Por mais que as respeitemos. Por maiores que sejam nossas preocupações morais. Porque algumas, que amamos, sofrem. E seus sofrimentos nos entristecem. Entes queridos morrem. Desaparecem do nosso mundo. Filhos pequenos choram.

Imaginemos um diálogo com uma criança que pretendemos educar. Você informa a criança que ela não pode fazer isso ou aquilo; e ela, então, pergunta por quê. Você explica o motivo. Mas ela continua perguntando por quê. Chega uma hora você se sente encurralado. Precisa dar uma resposta definitiva que interrompa a série de porquês. Esse é o fundamento da moral. Durante muitos séculos a vontade de Deus cumpriu esse papel.

— Não pode porque Deus não quer.

Justifica você aliviado. Mas, com Kant, já estamos no século XVIII. E procuramos outro fundamento para a moral. Sem Deus desta vez.

Moral e boa vontade

Não há, para Kant, no mundo, nada que seja bom em si mesmo. Tudo é o que é. E será bom ou mau em função das circunstâncias particulares e das relações que mantiver com o mundo. Assim, poderíamos exemplificar ao infinito. Uma pizza não é boa em si, mas em função de quem a degusta. Da sua fome. Das suas preferências alimentares.

Um sorriso também não é bom em si. Pode ser entendido, nos códigos daquele lugar, como provocação ou desdém. E um carro novo? Bem, aquele carro de lata e tinta que acaba de ser comprado, este é a alegria do proprietário. Mas indica também consumismo desenfreado.

Fica claro, então, que nada, absolutamente nada pode ser bom ou mau por si mesmo. A não ser a tal da boa vontade. Só ela é boa independentemente de qualquer coisa.


Moral, vontade e uso dos talentos naturais 

Não posso usar a vontade. Por uma razão: é ela que usa. A vontade nunca é meio, mas agente. É a mão que opera, não a ferramenta.

Temos que diferenciar três coisas. A primeira é o talento natural. Ao qual já nos familiarizamos desde os gregos. A beleza, a inteligência, a força etc. Já sabemos que, para os gregos, esses talentos eram a própria virtude. Por isso, uns eram melhores do que outros. Aprendemos também, que os cristãos não estavam de acordo com isso. Que, para eles, tais talentos não valem por si.

A segunda é o uso desse talento. Este uso se materializa numa conduta. Conduta concreta no mundo. Como o salvamento de alguém pelo uso da força. Como a sedução de alguém pelo uso da beleza. Como a instrução de alguém pelo uso da inteligência. Perceba que, aqui, o talento é usado como instrumento para outra coisa. Força, instrumento do salvamento. Beleza, instrumento da sedução. Inteligência, instrumento da instrução.

A terceira é a vontade. Que não se confunde nem com o talento nem com seu uso. Que não é nem a força, nem o ato de salvamento. Nem a beleza, nem o ato de sedução. Nem a inteligência, nem o ato de instrução. Porque a vontade é o agente que delibera colocar a força em ato de salvamento. Delibera colocar a beleza em ato de sedução. Delibera colocar a inteligência em ato de instrução. E o que está por trás do uso da força, da beleza e da inteligência.

Exemplo: um jovem tem grandes habilidades musicais. Eis um talento natural. Ao convidar os amigos, toca várias músicas de sua própria autoria. Eis o uso do talento. E, antes de seus amigos chegarem, esse jovem decide que vai tocar. Delibera sobre o uso de seu talento por esta ou aquela razão. Eis a vontade. Vontade que decide sobre o uso a ser dado ao talento.

Kant não concorda com nossos amigos utilitaristas. Afinal, para eles, o que importa é o resultado. Não a vontade.

Moral, vontade e eficácia

Para Kant, nenhum valor moral pode ser atribuído a uma ação em função dos efeitos dessa ação. Os efeitos de uma ação não são um bom critério para definir o valor da sua deliberação porque esses efeitos não estão sob controle de quem a delibera. A boa vontade nada tem a ver com os efeitos da ação.


Moral, vontade e desejo

Toda vontade pressupõe uma deliberação da razão. Distinta dos desejos. Soberana em relação a eles. Se nossa vida se limitasse, como a do resto dos animais, à sobrevivência, à satisfação dos desejos, então, instintos naturais inatos fariam muito melhor o trabalho.

Toda deliberação racional implica dois elementos: de um lado, a finalidade, isto é, o que queremos quando deliberamos. E de outro, o motivo, ou, como se diz, a razão de termos deliberado daquela maneira. Para Kant, a boa vontade decorre apenas de um só desses elementos: o motivo, isto é, o porquê da deliberação.

Kant está dizendo é que o valor da ação não está nem nos seus efeitos, nem na materialidade da conduta. Quando uma pessoa age e faz uma bobagem afeta o mundo de forma negativa para Kant, nem o que ela fez nem o que ela causou importam para atribuir valor moral.

Moral, vontade e dever

O motivo que permite identificar, em qualquer deliberação, uma boa vontade é o que Kant denomina "sentido do dever". Ou seja, só age com boa vontade aquele que age por dever.

— Que história é essa de agir por dever? De onde vem esse dever? Há uma lista de deveres? Alguma coisa como os dez mandamentos?

A boa vontade não é desejo. É deliberação racional. Portanto, podemos deliberar racionalmente no mesmo sentido do desejo. Ou, na sua contramão. Quando deliberamos contrariamente ao que desejamos, fica mais fácil entender. Nosso corpo pede A mas deliberamos B. Fica evidente que a razão foi soberana frente ao corpo.

Aqui, Kant propõe uma diferença que pode parecer só um jogo de palavras. Entre agir por dever e agir segundo o dever. A ação por dever tem este dever como única motivação. O agente faz o que deve fazer, simplesmente porque deve fazer. Caracterizando a ação com boa vontade.

Já no caso da ação que é apenas segundo o dever, o agente também faz o que deve fazer. Mas não porque deve fazer. E sim por motivos egoístas.

Da mesma forma, aquele que salva um desconhecido — ou mesmo um inimigo — age por dever. Com boa vontade. Já o pai que se joga no lago para salvar o filho em afogamento, age em nome da própria vida. Porque não suportaria sobreviver sem o filho. Age em nome do amor paterno. Com motivação egoísta. Sem boa vontade. Por isso, quem ajuda os outros sem ter nenhum prazer nisso tem valor moral superior àquele que salva o filho amado.

Para poder ser desinteressada, primeiro traço já destacado, a vontade tem que ser livre. Convicção que Kant empresta de Rousseau.

Moral e especificidade humana

Rousseau propõe que todos os animais são dotados de instinto. Complexo programa que oferece respostas para todas as situações de existência. O instinto é tudo que o animal tem e tudo de que precisa para conduzir sua vida até o final. O que nos permite concluir que os animais já nascem prontos.

Assim, os animais serão rigorosamente fiéis a esse instinto. Não lhes é possível discrepar. De tal maneira que um gato, programado para comer carne, morrerá de fome do lado de um prato de alpiste. Não lhe ocorrerá arriscar matar a fome com aquilo de que circunstancialmente dispõe. Esse improviso lhe escapa. Da mesma maneira, um pombo, que também definhará sem arriscar comer um prato de filé que lhe está sendo oferecido.

O homem não nasce com todas as respostas de que precisa. Sua vida requer mais do que sua natureza oferece. Por isso, cabe a ele inventar, ponderar, tergiversar, criar, esculpir, instante a instante, a estátua da própria existência. Por isso, o homem excede. Transcende a própria natureza. Vai além dos instintos. Porque quando a natureza se cala, ainda resta a vontade. A deliberação que escapa à necessidade da sua natureza.

A noção kantiana de dever é correlata a essa concepção do humano que o filósofo empresta de Rousseau. De acordo com ela, o ser humano é, antes de tudo, um ser de razão e de liberdade. Ele tem inclinações e seu comportamento é fortemente influenciado pelas circunstâncias em que se encontra.

“(...) se num ser dotado de razão e de vontade a natureza tivesse por finalidade última sua conservação, seu bem-estar ou, em uma palavra, sua felicidade, ela teria se equivocado ao escolher a razão para alcançá-la. Isto porque, todas as ações que este ser deverá realizar nesse sentido, bem como a regra completa de sua conduta, ser-lhe-iam indicadas com muito maior precisão pelo instinto” (KANT. Fundamentação da metafísica dos costumes).

Essa "segunda natureza", essa coerência inventada e produzida pela vontade livre dos seres humanos em nome de valores comuns, Kant designa "reino dos fins". Por que essa formulação? Simplesmente porque nesse "novo mundo", mundo da vontade e não mais da natureza, os seres humanos serão, enfim, tratados como "fins" e não mais como meios; como seres de dignidade absoluta que não poderiam ser usados para a realização de objetivos pretensamente superiores.

Moral e liberdade

Nada na natureza tem moral. A não ser o homem. Por transcendê-la.

Porque a vida se define vivendo. Porque primeiro vivemos existimos no mundo — instante a instante e só depois podemos tentar identificar quem somos. E vivemos como vivemos porque somos senhores de nossas deliberações.

Estamos condenados à liberdade de definir a própria vida.

Moral e amor

Quem age por amor não age por moral. Porque amor é manifestação da natureza. E moral é o resto. É do que precisamos quando a natureza não responde. Para quando não há amor. E temos que admitir que, no mundo em que vivemos, amamos pouca coisa. Se tomarmos apenas as pessoas, amamos pouquíssimas: pais, filhos, alguns amigos, 15 pessoas no máximo, para os de coração dilatado. Pois só na China há alguns milhões que não amamos. Amássemos mais, moralizaríamos menos.

Assim, a mãe amamenta seu filho recém-nascido. Alguém, que contempla a cena, elogia o respeito ao dever materno de amamentar. Elogio que desperta a incompreensão da mãe. Jamais aceitaria agir por dever moral. Mas quando o amor falta, ainda nos resta uma valiosa boa vontade. Noção de amor prático em Kant.

Dever moral

As relações com as pessoas não podem contar com o amor. Por isso, a moral é tão importante. Deliberação autônoma. Que pressupõe alguma soberania da razão. Justamente quando não há amor. Um amor prático para Kant.

Moral não é ódio. Como também não é amor. Se o homem fosse simplesmente regido pelos instintos, seria bestial. Não transcenderia a mais estrita animalidade. Os animais, estes não têm moral. Falta-lhes, para tanto, justamente a condição de autonomia deliberativa.

Bem, já que a origem do mal não está nos apetites, onde mais poderia estar? Na razão talvez? Optaria o homem pelo mal, na hora de agir, por uma característica intrínseca ao próprio pensamento? Também não, dirá Kant.

Segundo Kant, o homem sempre faria o mal visando a algum tipo de bem ou vantagem para si próprio. Mas, se a origem do mal não está na sensibilidade, coisa de corpo e de animal, nem na razão prática, coisa de alma e de demônio, onde poderia estar? A sua origem estaria no encontro dos dois. Encontro da sensibilidade, apetites e pulsões com a consciência moral, com a razão prática. E qual seria o problema nesse encontro entre o que sentimos e o que pensamos? O mal estaria na inversão da hierarquia legítima entre ambos.

Segundo Kant, qual seria a relação hierárquica legítima entre a consciência moral e os apetites do corpo? A prevalência da primeira, é claro. De tal maneira que os últimos devem ser satisfeitos dentro dos limites e das condições definidos pela primeira. Em outras palavras, a satisfação deve ser buscada de acordo com a lei moral. Se preferirem, a busca da felicidade deve estar subjugada ao dever.

Só deveríamos aceitar o gozo e a felicidade na medida em que estivessem conforme a lei moral. Perceba que, nesta reflexão kantiana, a busca da felicidade pode ser o próprio mal.

Ética tem mais a ver com problematização da nossa convivência do que com um gabarito de respostas certas que o professor apresenta.

A moral kantiana e os fundamentos da ideia republicana: a "boa vontade", a ação desinteressada e a universalidade dos valores

Liberdade, virtude da ação desinteressada ("boa vontade"), preocupação com o interesse geral: eis as três palavras-chave que definem as modernas morais do dever — do "dever", justamente, porque elas nos ordenam uma resistência, até mesmo um combate contra a naturalidade ou animalidade em nós.

Por isso a definição moderna da moralidade vai, segundo Kant, se expressar daí em diante sob forma de ordens indiscutíveis ou, para empregar seu vocabulário, de imperativos categóricos. Dado que não se trata mais de imitar a natureza, de toma-la como modelo, mas quase sempre de combatê-la e especialmente de lutar contra o egoísmo natural em nós.

Os dois momentos da ética moderna — a intenção desinteressada e a universalidade do fim escolhido — se reúnem, assim, na definição do homem como "perfectibilidade". Pois a liberdade significa, antes de tudo, a capacidade de agir além da determinação dos interesses "naturais", quer dizer, particulares. Distanciando-nos do particular, é na direção do universal.

Kant em oposição as sabedorias cosmológicas e o fundamento da boa vontade

Assim, a inteligência, a faculdade de comparar, de discernir o particular podem ser faculdades apreciáveis. Mas não são qualidades morais. E por que não? Porque todas estas faculdades, e todos os talentos naturais em geral, podem ser colocados tanto a serviço do bem quanto do mal. Nunca são, por eles mesmos, bons ou maus.

Assim, podemos usar a inteligência para curar, alegrar, ensinar saberes que trarão alegrias e muito mais. Em contrapartida, também podemos usar as mesmas faculdades do espírito para enganar, entristecer, iludir, mentir e também muito mais. Perceba que nenhuma destas faculdades pode ser boa em si mesma, porque tudo dependerá do uso que delas fizermos. Da vontade. Da livre deliberação sobre um fim em detrimento de outros.

As sabedorias cosmológicas definiam de bom grado a virtude ou a excelência como um prolongamento da natureza, como a realização tão perfeita quanto possível para cada ser daquilo que constitui a naturezae indica, assim, sua "função" ou sua finalidade. Numa perspectiva aristocrática o ser "virtuoso" não é aquele que atinge um certo nível graças a esforços livremente consentidos, mas aquele que funciona bem, e até excelentemente, segundo a natureza e as finalidades que lhe são próprias. E isso vale tanto para as coisas e animais quanto para os seres humanos cuja felicidade está associada a essa realização de si. Na moral aristocrática dos gregos, só há superioridade e inferioridade. Hierarquia, em suma. Natural, moral e política. O poder exercido pelos melhores. Senhores e soberanos. E os piores, escravos. Mas já sabemos que, quando o assunto é moral, isso não tem muita importância. que importa mesmo é a liberdade para decidir bem. Somos, portanto, igualmente livres para uma boa vontade. Para além da nossa natureza. A primeira consequência desta reflexão sobre a boa vontade é a igualdade.

A segunda consequência desta liberdade como boa vontade é o desinteresse. A ação virtuosa se confunde com a ação desinteressada. A liberdade, como vimos, é a capacidade de descolar da natureza. Assim, descolar dela, ou resistir a ela, implica levar em conta os interesses dos outros. Dar lugar aos outros. Para isto, é preciso colocar-se entre parênteses. Considerar outros desejos além dos próprios. E esta autolimitação supõe que não sejamos cem por cento egoístas.

A terceira consequência desta liberdade é o universalismo. A vontade, para ser uma boa vontade, deve se justificar universalmente. O dever, que resulta de uma atividade intelectiva, deve valer para qualquer um. Faça de tal maneira que a máxima que preside a sua ação possa ser universalizada. Possa ser transformada em lei. Eis a fórmula do imperativo categórico. Perceba a tangência entre esse universalismo e o desinteresse. A resistência frente aos próprios interesses. Ao egoísmo. Para levar em conta o interesse geral, o bem comum, é preciso considerar o interesse dos outros.

Desta forma, enquanto para os gregos a virtude corresponde à atualização dos talentos naturais, à realização da natureza em nós, para o pensamento moderno de Kant, a virtude é uma resistência ou oposição a essa mesma natureza. A luta contra a natureza em nós.

Igualdade, desinteresse e universalidade. Consequências da liberdade, fundamento da boa vontade e de todo edifício moral de Kant.

Referências Bibliográficas:
FERRY, Luc. Aprender a viver: Filosofia para os novos temposRio de Janeiro, Editora Objetiva, 2010.

DE BARROS FILHO, Clóvis. POMPEU, Júlio. A Filosofia Explica as Grandes Questões da Humanidade. Casa do Saber, 2014.


DE BARROS FILHO, Clóvis. A vida que vale a pena ser vivida. Editora Vozes, 2010.