sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

ESTOICOS


Vida tranquila
Os primeiros estoicos eram gregos, os últimos eram romanos. Por isso, o estoicismo figura tanto como escola filosófica grega quanto como romana. Destacamos entre os mais antigos os gregos Zenão, Cleanto e Crisipo. E, entre os mais recentes, e seguramente muito mais conhecidos, os romanos Sêneca, Epicteto e Marco Aurélio.
Politicamente, os estoicos gregos eram marginais e dominados. Já os romanos se aproximaram do poder. E passaram a exercê-lo como nunca antes um filósofo tinha logrado em tal magnitude. Como Marco Aurélio, simplesmente imperador.
Zenão, reconhecido como pai fundador do estoicismo grego, nascido em 333 a.C, na ilha de Chipre, era imigrante. Não tinha cidadania ateniense. Por isso não podia adquirir imóveis. Assim, para dar aulas, teve que se contentar com um pórtico, em grego stoá, espécie de porta de entrada da cidade, ao ar livre. Desta palavra grega, deriva estoico. Aquele que se encontra na porta. Que pode ser tanto de entrada como de saída. Espaço que denuncia a marginalidade do pensamento estoico neste momento.
Identificamos no estoicismo muitas semelhanças com o pensamento de Epicuro. Negação de toda explicação transcendente do mundo. E isto é o que mais aproxima as duas escolas adversárias. Redução do mundo ao observável. Ênfase à reflexão e ao ensino da ética, denominada por eles de arte de viver. E a felicidade, como escopo da vida.

Porém, duas questões fundamentais distinguiam o estoicismo do epicurismo: em primeiro lugar, a refutação do atomismo. Esta distancia-se de nossa temática.

A segunda nos interessa mais de perto: a redução epicurista da felicidade e da vida boa ao prazer. O prazer é a condição da vida boa. E este prazer que corresponde à vida boa não é qualquer prazer. Mas apenas aqueles que requerem a satisfação de desejos naturais e necessários.
O pensamento estoico sugere postura mais defensiva. Uma ra­zão protetora contra as agressões. Porque, segundo sua perspectiva, estaria presente — em tudo que vive — uma tendência da conservação de si.

Brilhante, companheiro
O que desce redondo para uns, atrita em outros. A nossa vida boa vai depender das condições de aproximação de tudo que se harmoniza conosco e de distanciamento de tudo que se opõe a nós.
A vida feliz deve ser uma vida harmonizada com o resto da natureza. Harmonia que não significa proximidade de tudo ou relação com tudo. Mas apenas com aquilo que conserva e ativa. Harmonia que pressupõe distância de tudo que enfraquece. Por isso, o bem vai sempre depender desta particular conservação. Uma coisa boa, para uns, poderá ser má para outros.
Prazer e dor não são prioritários. São consequências de uma vida que já encontrou o que lhe é fundamental, o que a conserva e realiza.
Todos os homens, contam, segundo os estoicos, com um instinto primeiro. Como todo instinto, é pré-racional. Este nos permite avaliar as coisas do mundo como benévolas ou malévolas. O bem é, portanto, vantajoso e útil e o mal, o nocivo. Mas esse instinto, o gorila também tem. Deve haver algo mais...

Tranquilidade e Deus

O homem se manifesta no logos divino. O ser de Deus é o ser do mundo. É o próprio universo. Imanente ao universo. Não seu criador. Ora, esse universo, que é Deus, é lógico. Portanto, existe um logos divino. Uma lógica, ou compreensibilidade, das coisas divinas. Que se manifesta no homem. Porque só a ele é dada a faculdade de compreender esse divino da ordem universal.
Os estoicos achavam o universo maravilhoso. Contemplavam e constatavam uma adequação perfeita na relação entre suas partes. Passou a chamá-la de Deus.

Tranquilidade e alma

Para os estoicos, tanto o homem quanto o próprio universo cósmico são dotados de alma.
Essa força racional da própria natureza corresponderia a um fogo que penetraria toda a realidade, aquecendo e ensejando vida. Assim, uma girafa está viva porque seu fogo a anima. Alma de girafa. A alma que o constitui é matéria, é corpo, é fogo. Fogo que lhe proporciona a vida.
Ora, essa alma que permeia o organismo humano é responsável por todas as suas funções essenciais.Para os estoicos a alma é corpórea. Constituída de fogo.
Esse privilégio humano — manifestação do logos divino — exige, segundo os estoicos, uma reflexão sobre a vida boa que não se confunda com a do resto dos viventes. Isto porque as coisas que se harmonizam com animais — estritamente instintivos — não se harmonizam necessariamente com o homem, essencialmente racional.

Theoría: a contemplação da ordem cósmica

Para os estoicos, de fato, a the-oría (theó significa Deus) consiste exatamente em esforçar-se por contemplar o que é "divino" no real que nos cerca. Em outras palavras, a tarefa primeira da filosofia é ver o essencial do mundo, o que nele é mais real, mais importante, mais significativo. Ora, pela tradição que culmina no estoicismo, a essência mais íntima do mundo é a harmonia, a ordem, simultaneamente justa e bela, que os gregos designam pelo nome de cosmos.
O mundo material, o universo todo, é, no fundo, como um gigantesco animal do qual cada elemento — cada órgão — seria admiravelmente concebido e agenciado em harmonia com o conjunto. É essa ordem, esse cosmo como tal, essa estrutura ordenada do universo todo que os gregos chamam de "divino", e não, como para os judeus ou os cristãos, um Ser exterior ao universo, que existiria antes dele e que o teria criado. Pode-se, portanto, dizer que a estrutura do universo não é apenas "divina", perfeita, mas também "racional", de acordo com o que os gregos chamam de logos (lógica) e que designa justamente essa ordenação admirável das coisas. Para os estoicos, abrir os olhos para o mundo era, assim como para um biólogo, abrir os olhos para o corpo de um rato ou de um coelho, a fim de descobrir que tudo nele é perfeitamente “benfeito”. Cícero dizia que “o mundo é um ser animado, dotado de consciência, inteligência e razão”.
Se compreendemos bem os Antigos, o que queriam dizer não tem nada de absurdo: ao afirmar o caráter divino do universo todo, eles exprimiam sua convicção de que uma ordem “lógica” operava por trás do caos aparente das coisas, e que a razão humana poderia trazê-la à luz. Do ponto de vista da theoría estoica, o cosmo é, pois, com exceção de alguns episódios acidentais e provisórios que são as catástrofes, essencialmente harmonioso — o que terá consequências importantes no plano "prático" (ou seja, nos planos moral, jurídico e político). Sob essa ótica, uma das finalidades últimas da vida humana será encontrar seu justo lugar no seio da ordem cósmica. Para a maioria dos pensadores gregos — com exceção dos epicuristas —, é perseguindo essa busca, ou melhor, realizando essa tarefa, que se pode conquistar a felicidade e a vida boa. Marco Aurélio nós fala um pouco dessa harmonia:
A juba do leão, a espuma que escorre da goela do javali, e muitas outras coisas, se observamos detalhadamente, sem dúvida estão longe de ser belas, e, no entanto, porque derivam do fato de terem sido engendradas pela natureza, são um ornamento e possuem encanto; se nos apaixonássemos pelos seres do universo, se tivéssemos uma inteligência mais profunda, sem dúvida, todos eles nos pareceriam sempre criaturas agradáveis. Mesmo em velhos e velhas, poderemos encontrar uma certa perfeição, uma beleza, como encontramos na graça infantil, se tivermos os olhos de um sábio.
O Deus dos cristãos é transcendente em relação ao mundo, ao passo que o divino dos estoicos, que absolutamente não se situa em não sei que "além", já que não é senão a estrutura harmoniosa, cósmica ou cosmética do próprio mundo, lhe é perfeitamente imanente.

O que não impede que, de outro ponto de vista, o divino dos estoicos possa ser do mesmo modo chamado de "transcendente", não, com certeza, em relação ao mundo, mas em relação aos homens, tendo em vista que ele é radicalmente superior e exterior a eles. É importante perceber que a theoría filosófica, entendida nesse duplo sentido, não é redutível a uma ciência particular como a biologia, a astronomia, a física ou a química, por exemplo. Por exemplo, ela não se interessa apenas pelo ser vivo, como a biologia, ou apenas pelos planetas, como a astronomia, nem mesmo apenas pela matéria inanimada, como a física, mas tenta captar a essência ou a estrutura interna da totalidade do mundo. Contudo, a filosofia não é uma ciência entre outras, e mesmo que ela deva levar em conta os resultados científicos, seu propósito fundamental não é de ordem científica. Ela busca um sentido para este mundo que nos cerca, elementos que nos permitam nele inscrever nossa existência, e não apenas um conhecimento objetivo.
Essa theoría, contrariamente às nossas ciências modernas que são, por princípio, "neutras", visto que descrevem o que é e nunca o que poderia ser, vai ter implicações práticas nos planos moral, jurídico e político.

Do amor à sabedoria à prática da sabedoria: a morte não é para ser temida, ela é apenas uma passagem, pois somos um fragmento eterno do cosmo
Mesmo que todos os seres humanos não se tornem filósofos, todos são, um dia ou outro, tocados pelas questões filosóficas. A filosofia, diferentemente das grandes religiões, vai prometer nos ajudar a nos "salvar", a vencer nossos medos e inquietações, não por intermédio de Outro, de um Deus, mas por nós mesmos, por nossas próprias forças, fazendo uso de nossa simples razão. Tendo chegado a certo nível de sabedoria teórica e prática, o ser humano compreende que a morte não existe verdadeiramente, que ela é apenas a passagem de um estado a outro, não um aniquilamento, mas um modo de ser diferente. Enquanto membros de um cosmo divino e estável, nós também podemos participar dessa estabilidade e dessa divindade. Já que o universo é eterno, e nós mesmos somos chamados a permanecer para sempre um fragmento dele, não cessaremos jamais de existir!
Para Epicteto, o objetivo de toda atividade filosófica é "a viver e morrer como um deus", ou seja: como um ser que, percebendo sua ligação privilegiada com todos os outros no seio da harmonia cósmica, alcança a serenidade, a consciência de que, mortal num sentido, não deixa de ser eterno em outro.

“Esperar um pouco menos, amar um pouco mais”
Vivemos continuamente na dimensão do projeto, correndo atrás de objetivos postos num futuro mais ou menos distante e pensamos, ilusão suprema, que nossa felicidade depende da realização completa de fins medíocres ou grandiosos. Esquecemos que não há outra realidade além da que é vivida aqui e agora, e que essa estranha fuga para adiante nos faz com certeza falhar. Segundo a famosa expressão de Sêneca, "enquanto se espera viver, a vida passa".  O passado não está mais aqui, e o porvir ainda não chegou. Marco Aurélio insiste:
Lembra-te de que cada um de nós só vive no momento presente, no instante. O resto é o passado, ou o obscuro futuro. Pequena é, pois, na verdade, a extensão da vida
A vida boa é a vida sem esperanças e sem temores; é, pois, a vida reconciliada com o que é, a existência que aceita o mundo tal como é. Você entende que essa reconciliação não poderia acontecer se não houvesse a certeza de que o mundo é divino, harmonioso e bom.

Em defesa do "não apego"

O estoicismo, num espírito próximo ao do budismo, defende uma atitude de "não apego" aos bens deste mundo, como sugere Epicteto:
O primeiro e principal exercício, o que conduz de imediato às portas do bem, consiste, quando uma coisa nos prende, em considerar que ela não é daquelas que não nos podem ser tiradas; que ela é como uma panela, ou uma taça de cristal, que quando se quebra não nos perturba porque lembramos o que ela é. O mesmo acontece aqui: se abraças um filho, um irmão ou um amigo, não te abandones sem reservas à imaginação... Lembra-te que amas um mortal, um ser que não é absolutamente tu mesmo. Ele te foi concedido para o momento, mas não para sempre, nem sem que te possa ser tomado... que mal existe em murmurar entre dentes, enquanto se abraça o filho: "Amanhã ele morrerá"?
O fato de que nada é estável neste mundo, que tudo muda e passa, e que não compreender isso é preparar para si mesmo os horríveis tormentos da nostalgia e da esperança. Marco Aurélio confirma:
Se, eu afirmo, separas dessa faculdade diretora tudo o que a ela se juntou em consequência das paixões, tudo o que está além do presente e todo o passado, farás de ti mesmo, como disse Empédocles, "uma esfera bem redonda, altiva em sua alegria e solidão". Tu te exercitarás a viver apenas no momento em que vives, quer dizer, no presente; e poderás passar todo o tempo que te resta até a morte, sem perturbação, nobremente e de um modo agradável para teu próprio demônio.
Trata-se de viver no presente, afastar de si os remorsos, os arrependimentos e as angústias que cristalizam o passado e o porvir, para aproveitar cada instante da vida como merecido, quer dizer, com plena e total consciência de que, para os mortais que somos, pode ser que seja o último. Portanto, "é preciso realizar cada ação da vida como se fosse a última" (Marco Aurélio, Meditações II, 5, 2).
Quando a coincidência entre nós e o mundo que nos cerca se torna perfeita, quando a concordância se faz por si mesma, sem constrangimento, na harmonia, que, de repente, o tempo parece anulado, dando lugar a um presente que parece durar, um presente, por assim dizer, dotado de espessura, cuja serenidade não é corrompida por nada do que passou ou virá. Quando ascende a esse grau de vigilância, o sábio pode viver "como um deus", na eternidade de um instante que nada mais relativiza, na completude de uma felicidade que nenhuma angústia poder vir a corromper. Quando a catástrofe, ou, pelo menos, o que os homens consideram habitualmente como tal — a morte, a doença, a miséria e todos os males ligados ao caráter irreversível do tempo que passa —, acontecer, eu poderei enfrentá-la graças às capacidades que me foram dadas de viver no presente, quer dizer, de amar o mundo tal como ele é.

Referências Bibliográficas:
FERRY, Luc. Aprender a viver: Filosofia para os novos temposRio de Janeiro, Editora Objetiva, 2010.


DE BARROS FILHO, Clóvis. A vida que vale a pena ser vivida. Editora Vozes, 2010.

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