Vida tranquila
Os primeiros estoicos eram gregos, os últimos
eram romanos. Por isso, o estoicismo figura tanto como escola filosófica grega
quanto como romana. Destacamos entre os mais
antigos os gregos Zenão, Cleanto e Crisipo. E, entre os mais recentes, e seguramente
muito mais conhecidos, os romanos Sêneca, Epicteto e Marco Aurélio.
Politicamente, os estoicos gregos eram marginais
e dominados. Já os romanos se aproximaram do poder. E passaram a exercê-lo como
nunca antes um filósofo tinha logrado em tal magnitude. Como Marco Aurélio,
simplesmente imperador.
Zenão, reconhecido como pai
fundador do estoicismo grego, nascido em 333 a.C, na ilha de Chipre, era
imigrante. Não tinha cidadania ateniense. Por isso não podia adquirir imóveis.
Assim, para dar aulas, teve que se contentar com um pórtico, em grego stoá, espécie de porta de entrada da cidade, ao ar livre.
Desta palavra grega, deriva estoico. Aquele que se encontra na porta. Que pode
ser tanto de entrada como de saída. Espaço que denuncia a marginalidade do
pensamento estoico neste momento.
Identificamos no estoicismo muitas semelhanças com o
pensamento de Epicuro. Negação de toda explicação transcendente do mundo. E
isto é o que mais aproxima as duas escolas adversárias. Redução do mundo ao
observável. Ênfase à reflexão e ao ensino da ética, denominada por eles de arte
de viver. E a felicidade, como escopo da vida.
Porém, duas questões
fundamentais distinguiam o estoicismo do epicurismo: em primeiro lugar, a
refutação do atomismo. Esta distancia-se de nossa temática.
A segunda nos interessa mais de perto: a redução
epicurista da felicidade e da vida boa ao prazer. O prazer é a condição da vida boa. E
este prazer que corresponde à vida boa não é qualquer prazer. Mas apenas
aqueles que requerem a satisfação de desejos naturais e necessários.
O pensamento estoico sugere postura mais
defensiva. Uma razão protetora contra as agressões. Porque, segundo sua perspectiva,
estaria presente — em tudo que vive — uma tendência da conservação de si.
Brilhante, companheiro
O que desce redondo para uns, atrita em outros.
A nossa vida boa vai depender das condições de aproximação de tudo
que se harmoniza conosco e de distanciamento de tudo que se opõe a nós.
A vida feliz deve ser uma vida harmonizada com o
resto da natureza. Harmonia que não significa proximidade de tudo ou relação com tudo. Mas apenas com aquilo que conserva e ativa.
Harmonia que pressupõe distância de tudo que enfraquece. Por isso, o bem vai sempre depender desta particular conservação. Uma coisa boa, para uns, poderá
ser má para outros.
Prazer e dor não são prioritários. São
consequências de uma vida que já encontrou o que lhe é fundamental, o que a
conserva e realiza.
Todos os homens, contam, segundo os estoicos,
com um instinto primeiro. Como todo instinto, é pré-racional. Este nos
permite avaliar as coisas do mundo como benévolas ou malévolas. O bem é,
portanto, vantajoso e útil e o mal, o nocivo. Mas esse instinto, o gorila
também tem. Deve haver algo mais...
Tranquilidade e Deus
O homem
se manifesta no logos divino. O ser de Deus é o ser do mundo. É o
próprio universo. Imanente ao universo. Não seu criador. Ora, esse universo, que é Deus, é
lógico. Portanto, existe um logos divino. Uma lógica, ou
compreensibilidade, das coisas divinas. Que se manifesta no homem. Porque só a
ele é dada a faculdade de compreender esse divino da ordem universal.
Os estoicos achavam o universo maravilhoso.
Contemplavam e constatavam uma adequação perfeita na relação entre suas partes. Passou a chamá-la de
Deus.
Tranquilidade
e alma
Para os estoicos, tanto o homem quanto o próprio
universo cósmico são dotados de alma.
Essa força racional da própria
natureza corresponderia a um fogo que penetraria toda a realidade, aquecendo e
ensejando vida. Assim, uma girafa está viva porque seu fogo a anima. Alma de girafa. A alma que o constitui é
matéria, é corpo, é fogo. Fogo que lhe proporciona a vida.
Ora, essa alma que permeia o organismo humano é
responsável por todas as suas funções essenciais.Para os estoicos a alma é corpórea. Constituída de
fogo.
Esse privilégio humano — manifestação
do logos divino — exige, segundo os estoicos, uma reflexão sobre a vida
boa que não se confunda com a do resto dos viventes. Isto porque as coisas que
se harmonizam com animais — estritamente instintivos — não se harmonizam
necessariamente com o homem, essencialmente racional.
Theoría:
a
contemplação da ordem cósmica
Para os estoicos, de fato, a the-oría (theó significa Deus) consiste exatamente em
esforçar-se por contemplar o que é "divino" no real que nos cerca. Em
outras palavras, a tarefa primeira da filosofia é ver o essencial do
mundo, o que nele é mais real, mais importante, mais significativo. Ora, pela
tradição que culmina no estoicismo, a essência mais íntima do mundo é a harmonia,
a ordem, simultaneamente justa e bela, que os gregos designam pelo
nome de cosmos.
O mundo material, o
universo todo, é, no fundo, como um gigantesco animal do
qual cada elemento — cada órgão — seria admiravelmente concebido e agenciado
em harmonia com o conjunto. É essa ordem, esse cosmo como tal, essa
estrutura ordenada do universo todo que os gregos chamam de "divino",
e não, como para os judeus ou os cristãos, um
Ser exterior ao universo, que existiria antes dele e que o teria criado. Pode-se, portanto, dizer
que a estrutura do universo não é
apenas "divina", perfeita, mas também "racional", de acordo
com o que os gregos chamam de logos (lógica) e que designa justamente
essa ordenação admirável das coisas. Para os estoicos, abrir os olhos para o mundo era, assim como para
um biólogo, abrir os olhos para o corpo de um rato ou de um coelho, a fim de
descobrir que tudo nele é perfeitamente “benfeito”. Cícero dizia que “o mundo é um ser animado, dotado de consciência, inteligência e
razão”.
Se compreendemos bem os
Antigos, o que queriam dizer não tem
nada de absurdo: ao afirmar o caráter divino do universo todo, eles exprimiam sua
convicção de que uma ordem “lógica” operava por trás do caos aparente das
coisas, e que a razão humana poderia trazê-la à luz. Do ponto de vista da theoría
estoica, o cosmo é, pois, com exceção de alguns
episódios acidentais e provisórios que são as catástrofes, essencialmente harmonioso
— o que terá consequências importantes no plano "prático" (ou
seja, nos planos moral, jurídico e político). Sob essa ótica, uma das finalidades últimas da vida humana será
encontrar seu justo lugar no seio da ordem cósmica. Para a maioria dos
pensadores gregos — com exceção dos epicuristas —, é perseguindo essa busca, ou
melhor, realizando essa tarefa, que se pode conquistar a felicidade e a vida
boa. Marco Aurélio nós fala um pouco dessa harmonia:
A juba do leão, a espuma que escorre da
goela do javali, e muitas outras coisas, se observamos detalhadamente, sem
dúvida estão longe de ser belas, e, no entanto, porque derivam do fato de terem
sido engendradas pela natureza, são um ornamento e possuem encanto; se nos
apaixonássemos pelos seres do universo, se tivéssemos uma inteligência mais
profunda, sem dúvida, todos eles nos pareceriam sempre criaturas agradáveis.
Mesmo em velhos e velhas, poderemos encontrar uma certa perfeição,
uma beleza, como encontramos na graça infantil, se tivermos os olhos de um
sábio.
O Deus dos cristãos é transcendente em relação ao mundo, ao passo que o
divino dos estoicos, que absolutamente não se situa em não sei que
"além", já que não é senão a estrutura harmoniosa, cósmica ou
cosmética do próprio mundo, lhe é perfeitamente imanente.
O que não impede que, de outro ponto de vista, o divino dos estoicos possa ser do mesmo modo chamado de "transcendente", não,
com certeza, em relação ao mundo, mas em relação aos homens, tendo em vista que
ele é radicalmente superior e exterior a eles. É importante perceber que a
theoría filosófica, entendida nesse
duplo sentido, não é redutível a uma ciência particular como a biologia, a
astronomia, a física ou a química, por exemplo. Por exemplo, ela não se interessa apenas pelo ser vivo, como a biologia, ou
apenas pelos planetas, como a astronomia, nem mesmo apenas pela matéria inanimada, como a física, mas tenta captar a
essência ou a estrutura interna da totalidade do mundo. Contudo, a filosofia não é uma ciência entre outras, e mesmo que ela deva levar
em conta os resultados científicos, seu propósito fundamental não é de ordem
científica. Ela busca um sentido para este mundo que nos cerca, elementos que
nos permitam nele inscrever nossa existência, e não apenas um conhecimento
objetivo.
Essa theoría, contrariamente
às nossas ciências modernas que são, por
princípio, "neutras", visto que descrevem o que é e nunca o que
poderia ser, vai ter implicações práticas nos planos moral, jurídico e
político.
Do
amor à sabedoria à prática da sabedoria: a morte não é para ser temida, ela é
apenas uma passagem, pois somos um fragmento eterno do cosmo
Mesmo que todos os seres humanos não se tornem filósofos,
todos são, um dia ou outro, tocados pelas questões filosóficas. A filosofia,
diferentemente das grandes religiões, vai prometer nos ajudar a nos
"salvar", a vencer nossos medos e inquietações, não por intermédio de
Outro, de um Deus, mas por nós mesmos, por nossas próprias forças, fazendo uso
de nossa simples razão. Tendo chegado a certo nível de sabedoria teórica e prática, o ser humano
compreende que a morte não existe verdadeiramente, que ela é apenas a passagem
de um estado a outro, não um aniquilamento, mas um modo de ser diferente.
Enquanto membros de um cosmo divino e estável, nós também podemos participar
dessa estabilidade e dessa divindade. Já que
o universo é eterno, e nós mesmos somos chamados a permanecer para sempre um
fragmento dele, não cessaremos jamais de existir!
Para Epicteto, o objetivo de toda atividade
filosófica é "a viver e morrer
como um deus", ou
seja: como um ser que, percebendo sua ligação privilegiada com todos os outros
no seio da harmonia cósmica, alcança a serenidade, a consciência de que, mortal
num sentido, não deixa de ser eterno em outro.
“Esperar um pouco
menos, amar um pouco mais”
Vivemos continuamente na
dimensão do projeto, correndo atrás de objetivos
postos num futuro mais ou menos distante e pensamos, ilusão suprema, que nossa
felicidade depende da realização completa de fins medíocres ou grandiosos. Esquecemos que não há outra realidade além da que é vivida aqui e agora,
e que essa estranha fuga para adiante nos faz com certeza falhar. Segundo a famosa expressão de Sêneca, "enquanto se espera viver, a vida
passa". O passado não está mais aqui, e o porvir ainda não chegou. Marco Aurélio insiste:
Lembra-te de que cada
um de nós só vive no momento presente, no instante. O resto é o passado,
ou o obscuro futuro. Pequena é, pois, na verdade, a extensão da vida
A vida boa é a vida sem esperanças e sem temores; é, pois, a
vida reconciliada com o que é, a existência que aceita o mundo tal como é. Você
entende que essa reconciliação não poderia acontecer se não houvesse a certeza
de que o mundo é divino, harmonioso e bom.
Em defesa do "não apego"
O estoicismo, num espírito próximo ao do budismo, defende uma atitude de
"não apego" aos bens deste mundo, como sugere Epicteto:
O primeiro e principal exercício, o que conduz de imediato às portas do bem, consiste,
quando uma coisa nos prende, em considerar que ela não é daquelas que não nos
podem ser tiradas; que ela é como uma panela, ou uma taça de cristal, que
quando se quebra não nos perturba porque lembramos o que ela é. O
mesmo acontece aqui: se abraças um filho, um irmão ou um amigo, não te
abandones sem reservas à imaginação... Lembra-te que amas um mortal, um ser que
não é absolutamente tu mesmo. Ele te foi concedido para o momento, mas não para
sempre, nem sem que te possa ser tomado... que mal existe em murmurar entre dentes, enquanto se abraça o filho: "Amanhã ele morrerá"?
O fato de que nada é estável neste mundo, que tudo muda e passa, e que não
compreender isso é preparar para si mesmo os horríveis tormentos da nostalgia e
da esperança. Marco
Aurélio confirma:
Se, eu afirmo, separas dessa faculdade diretora tudo o
que a ela se juntou em consequência das paixões, tudo o que
está além do presente e todo o passado, farás de ti mesmo, como disse
Empédocles, "uma esfera bem redonda, altiva em sua alegria e
solidão". Tu te exercitarás a viver apenas no momento em que vives, quer
dizer, no presente; e poderás passar todo o tempo que te resta até a morte, sem
perturbação, nobremente e de um modo agradável para teu próprio demônio.
Trata-se de viver no
presente, afastar de si os remorsos, os arrependimentos e as angústias que cristalizam o passado e o porvir, para
aproveitar cada instante da vida como merecido, quer dizer, com plena e total
consciência de que, para os mortais que somos, pode ser que seja o último.
Portanto, "é preciso realizar cada ação da vida como se fosse a
última" (Marco Aurélio, Meditações II, 5, 2).
Quando a coincidência entre nós e o mundo que nos cerca se torna
perfeita, quando a concordância se faz por si mesma, sem constrangimento, na
harmonia, que, de repente, o tempo parece anulado, dando lugar a um presente
que parece durar, um presente, por assim dizer, dotado de espessura, cuja
serenidade não é corrompida por nada do que passou ou
virá. Quando
ascende a esse grau de vigilância,
o sábio pode viver "como um deus", na eternidade de um instante que
nada mais relativiza, na completude de uma felicidade que nenhuma angústia
poder vir a corromper. Quando a catástrofe,
ou, pelo menos, o que os homens consideram habitualmente como tal — a morte, a
doença, a miséria e todos os males ligados ao caráter irreversível do tempo que
passa —, acontecer, eu poderei enfrentá-la graças às capacidades que me
foram dadas de viver no presente, quer dizer, de amar o mundo tal como ele é.
Referências Bibliográficas:
FERRY, Luc. Aprender a viver: Filosofia para os novos tempos. Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 2010.
DE BARROS FILHO, Clóvis. A vida que vale a pena ser vivida. Editora Vozes, 2010.
Nenhum comentário:
Postar um comentário