segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

IMMANUEL KANT


Vida moralizada

No que diz respeito à importância da moral para uma vida boa, suponho que você leitor pense como eu: a vida vivida num lugar onde todos se respeitam e se preocupam com os demais tende a ser melhor do que em outro onde cada um simplesmente luta, no limite das suas forças, para satisfazer seus apetites, em detrimento de qualquer outro concorrente. Freud se juntaria a nós. Porque se a vida na civilização pode ser castradora e horrível, fora dela — num eventual estado de natureza — será ainda muito pior.

Mas, se a moral entendida, a grosso modo, como respeito pelo outro ou até mesmo preocupação pela sua felicidade — é relevante para a vida, não garante, por si só, uma existência feliz. Porque, como dizem alguns, nem sempre o bem vence o mal. Porque o mundo quase nunca é justo. Por isso, talvez, tantas promessas de salvação fora daqui. Num outro mundo qualquer em que a moral e a vida boa possam estar finalmente alinhadas.

Mas, neste nosso mundo velho de guerra, neste de carne e osso, que é onde nos toca viver por enquanto, quantos não conhecemos, indivíduos super gente fina e tristes. Porque ser um cara legal não elimina boa parte dos chamados problemas existenciais.

Afinal, por mais zelosos que sejamos com os outros, por mais que condicionemos, nós mesmos, a satisfação de nossos apetites a um entendimento coletivo, nosso corpo segue sua trajetória de encontros com o mundo. Muitos deles entristecedores. No envelhecimento, que compartilhamos. Mas também no que nos é particular. Na reduzida visão de perto, nos constrangedores exames de próstata, no cansaço depois de meia hora de jogo, no acúmulo de adiposidade na região pneumática. Sem falar na rigidez, dos ossos, e na falta de rigidez, do que não é osso.

Como se não bastasse nosso próprio corpo, que definha mesmo quando não merecemos, outras pessoas também nos causam problemas. Por mais que as respeitemos. Por maiores que sejam nossas preocupações morais. Porque algumas, que amamos, sofrem. E seus sofrimentos nos entristecem. Entes queridos morrem. Desaparecem do nosso mundo. Filhos pequenos choram.

Imaginemos um diálogo com uma criança que pretendemos educar. Você informa a criança que ela não pode fazer isso ou aquilo; e ela, então, pergunta por quê. Você explica o motivo. Mas ela continua perguntando por quê. Chega uma hora você se sente encurralado. Precisa dar uma resposta definitiva que interrompa a série de porquês. Esse é o fundamento da moral. Durante muitos séculos a vontade de Deus cumpriu esse papel.

— Não pode porque Deus não quer.

Justifica você aliviado. Mas, com Kant, já estamos no século XVIII. E procuramos outro fundamento para a moral. Sem Deus desta vez.

Moral e boa vontade

Não há, para Kant, no mundo, nada que seja bom em si mesmo. Tudo é o que é. E será bom ou mau em função das circunstâncias particulares e das relações que mantiver com o mundo. Assim, poderíamos exemplificar ao infinito. Uma pizza não é boa em si, mas em função de quem a degusta. Da sua fome. Das suas preferências alimentares.

Um sorriso também não é bom em si. Pode ser entendido, nos códigos daquele lugar, como provocação ou desdém. E um carro novo? Bem, aquele carro de lata e tinta que acaba de ser comprado, este é a alegria do proprietário. Mas indica também consumismo desenfreado.

Fica claro, então, que nada, absolutamente nada pode ser bom ou mau por si mesmo. A não ser a tal da boa vontade. Só ela é boa independentemente de qualquer coisa.


Moral, vontade e uso dos talentos naturais 

Não posso usar a vontade. Por uma razão: é ela que usa. A vontade nunca é meio, mas agente. É a mão que opera, não a ferramenta.

Temos que diferenciar três coisas. A primeira é o talento natural. Ao qual já nos familiarizamos desde os gregos. A beleza, a inteligência, a força etc. Já sabemos que, para os gregos, esses talentos eram a própria virtude. Por isso, uns eram melhores do que outros. Aprendemos também, que os cristãos não estavam de acordo com isso. Que, para eles, tais talentos não valem por si.

A segunda é o uso desse talento. Este uso se materializa numa conduta. Conduta concreta no mundo. Como o salvamento de alguém pelo uso da força. Como a sedução de alguém pelo uso da beleza. Como a instrução de alguém pelo uso da inteligência. Perceba que, aqui, o talento é usado como instrumento para outra coisa. Força, instrumento do salvamento. Beleza, instrumento da sedução. Inteligência, instrumento da instrução.

A terceira é a vontade. Que não se confunde nem com o talento nem com seu uso. Que não é nem a força, nem o ato de salvamento. Nem a beleza, nem o ato de sedução. Nem a inteligência, nem o ato de instrução. Porque a vontade é o agente que delibera colocar a força em ato de salvamento. Delibera colocar a beleza em ato de sedução. Delibera colocar a inteligência em ato de instrução. E o que está por trás do uso da força, da beleza e da inteligência.

Exemplo: um jovem tem grandes habilidades musicais. Eis um talento natural. Ao convidar os amigos, toca várias músicas de sua própria autoria. Eis o uso do talento. E, antes de seus amigos chegarem, esse jovem decide que vai tocar. Delibera sobre o uso de seu talento por esta ou aquela razão. Eis a vontade. Vontade que decide sobre o uso a ser dado ao talento.

Kant não concorda com nossos amigos utilitaristas. Afinal, para eles, o que importa é o resultado. Não a vontade.

Moral, vontade e eficácia

Para Kant, nenhum valor moral pode ser atribuído a uma ação em função dos efeitos dessa ação. Os efeitos de uma ação não são um bom critério para definir o valor da sua deliberação porque esses efeitos não estão sob controle de quem a delibera. A boa vontade nada tem a ver com os efeitos da ação.


Moral, vontade e desejo

Toda vontade pressupõe uma deliberação da razão. Distinta dos desejos. Soberana em relação a eles. Se nossa vida se limitasse, como a do resto dos animais, à sobrevivência, à satisfação dos desejos, então, instintos naturais inatos fariam muito melhor o trabalho.

Toda deliberação racional implica dois elementos: de um lado, a finalidade, isto é, o que queremos quando deliberamos. E de outro, o motivo, ou, como se diz, a razão de termos deliberado daquela maneira. Para Kant, a boa vontade decorre apenas de um só desses elementos: o motivo, isto é, o porquê da deliberação.

Kant está dizendo é que o valor da ação não está nem nos seus efeitos, nem na materialidade da conduta. Quando uma pessoa age e faz uma bobagem afeta o mundo de forma negativa para Kant, nem o que ela fez nem o que ela causou importam para atribuir valor moral.

Moral, vontade e dever

O motivo que permite identificar, em qualquer deliberação, uma boa vontade é o que Kant denomina "sentido do dever". Ou seja, só age com boa vontade aquele que age por dever.

— Que história é essa de agir por dever? De onde vem esse dever? Há uma lista de deveres? Alguma coisa como os dez mandamentos?

A boa vontade não é desejo. É deliberação racional. Portanto, podemos deliberar racionalmente no mesmo sentido do desejo. Ou, na sua contramão. Quando deliberamos contrariamente ao que desejamos, fica mais fácil entender. Nosso corpo pede A mas deliberamos B. Fica evidente que a razão foi soberana frente ao corpo.

Aqui, Kant propõe uma diferença que pode parecer só um jogo de palavras. Entre agir por dever e agir segundo o dever. A ação por dever tem este dever como única motivação. O agente faz o que deve fazer, simplesmente porque deve fazer. Caracterizando a ação com boa vontade.

Já no caso da ação que é apenas segundo o dever, o agente também faz o que deve fazer. Mas não porque deve fazer. E sim por motivos egoístas.

Da mesma forma, aquele que salva um desconhecido — ou mesmo um inimigo — age por dever. Com boa vontade. Já o pai que se joga no lago para salvar o filho em afogamento, age em nome da própria vida. Porque não suportaria sobreviver sem o filho. Age em nome do amor paterno. Com motivação egoísta. Sem boa vontade. Por isso, quem ajuda os outros sem ter nenhum prazer nisso tem valor moral superior àquele que salva o filho amado.

Para poder ser desinteressada, primeiro traço já destacado, a vontade tem que ser livre. Convicção que Kant empresta de Rousseau.

Moral e especificidade humana

Rousseau propõe que todos os animais são dotados de instinto. Complexo programa que oferece respostas para todas as situações de existência. O instinto é tudo que o animal tem e tudo de que precisa para conduzir sua vida até o final. O que nos permite concluir que os animais já nascem prontos.

Assim, os animais serão rigorosamente fiéis a esse instinto. Não lhes é possível discrepar. De tal maneira que um gato, programado para comer carne, morrerá de fome do lado de um prato de alpiste. Não lhe ocorrerá arriscar matar a fome com aquilo de que circunstancialmente dispõe. Esse improviso lhe escapa. Da mesma maneira, um pombo, que também definhará sem arriscar comer um prato de filé que lhe está sendo oferecido.

O homem não nasce com todas as respostas de que precisa. Sua vida requer mais do que sua natureza oferece. Por isso, cabe a ele inventar, ponderar, tergiversar, criar, esculpir, instante a instante, a estátua da própria existência. Por isso, o homem excede. Transcende a própria natureza. Vai além dos instintos. Porque quando a natureza se cala, ainda resta a vontade. A deliberação que escapa à necessidade da sua natureza.

A noção kantiana de dever é correlata a essa concepção do humano que o filósofo empresta de Rousseau. De acordo com ela, o ser humano é, antes de tudo, um ser de razão e de liberdade. Ele tem inclinações e seu comportamento é fortemente influenciado pelas circunstâncias em que se encontra.

“(...) se num ser dotado de razão e de vontade a natureza tivesse por finalidade última sua conservação, seu bem-estar ou, em uma palavra, sua felicidade, ela teria se equivocado ao escolher a razão para alcançá-la. Isto porque, todas as ações que este ser deverá realizar nesse sentido, bem como a regra completa de sua conduta, ser-lhe-iam indicadas com muito maior precisão pelo instinto” (KANT. Fundamentação da metafísica dos costumes).

Essa "segunda natureza", essa coerência inventada e produzida pela vontade livre dos seres humanos em nome de valores comuns, Kant designa "reino dos fins". Por que essa formulação? Simplesmente porque nesse "novo mundo", mundo da vontade e não mais da natureza, os seres humanos serão, enfim, tratados como "fins" e não mais como meios; como seres de dignidade absoluta que não poderiam ser usados para a realização de objetivos pretensamente superiores.

Moral e liberdade

Nada na natureza tem moral. A não ser o homem. Por transcendê-la.

Porque a vida se define vivendo. Porque primeiro vivemos existimos no mundo — instante a instante e só depois podemos tentar identificar quem somos. E vivemos como vivemos porque somos senhores de nossas deliberações.

Estamos condenados à liberdade de definir a própria vida.

Moral e amor

Quem age por amor não age por moral. Porque amor é manifestação da natureza. E moral é o resto. É do que precisamos quando a natureza não responde. Para quando não há amor. E temos que admitir que, no mundo em que vivemos, amamos pouca coisa. Se tomarmos apenas as pessoas, amamos pouquíssimas: pais, filhos, alguns amigos, 15 pessoas no máximo, para os de coração dilatado. Pois só na China há alguns milhões que não amamos. Amássemos mais, moralizaríamos menos.

Assim, a mãe amamenta seu filho recém-nascido. Alguém, que contempla a cena, elogia o respeito ao dever materno de amamentar. Elogio que desperta a incompreensão da mãe. Jamais aceitaria agir por dever moral. Mas quando o amor falta, ainda nos resta uma valiosa boa vontade. Noção de amor prático em Kant.

Dever moral

As relações com as pessoas não podem contar com o amor. Por isso, a moral é tão importante. Deliberação autônoma. Que pressupõe alguma soberania da razão. Justamente quando não há amor. Um amor prático para Kant.

Moral não é ódio. Como também não é amor. Se o homem fosse simplesmente regido pelos instintos, seria bestial. Não transcenderia a mais estrita animalidade. Os animais, estes não têm moral. Falta-lhes, para tanto, justamente a condição de autonomia deliberativa.

Bem, já que a origem do mal não está nos apetites, onde mais poderia estar? Na razão talvez? Optaria o homem pelo mal, na hora de agir, por uma característica intrínseca ao próprio pensamento? Também não, dirá Kant.

Segundo Kant, o homem sempre faria o mal visando a algum tipo de bem ou vantagem para si próprio. Mas, se a origem do mal não está na sensibilidade, coisa de corpo e de animal, nem na razão prática, coisa de alma e de demônio, onde poderia estar? A sua origem estaria no encontro dos dois. Encontro da sensibilidade, apetites e pulsões com a consciência moral, com a razão prática. E qual seria o problema nesse encontro entre o que sentimos e o que pensamos? O mal estaria na inversão da hierarquia legítima entre ambos.

Segundo Kant, qual seria a relação hierárquica legítima entre a consciência moral e os apetites do corpo? A prevalência da primeira, é claro. De tal maneira que os últimos devem ser satisfeitos dentro dos limites e das condições definidos pela primeira. Em outras palavras, a satisfação deve ser buscada de acordo com a lei moral. Se preferirem, a busca da felicidade deve estar subjugada ao dever.

Só deveríamos aceitar o gozo e a felicidade na medida em que estivessem conforme a lei moral. Perceba que, nesta reflexão kantiana, a busca da felicidade pode ser o próprio mal.

Ética tem mais a ver com problematização da nossa convivência do que com um gabarito de respostas certas que o professor apresenta.

A moral kantiana e os fundamentos da ideia republicana: a "boa vontade", a ação desinteressada e a universalidade dos valores

Liberdade, virtude da ação desinteressada ("boa vontade"), preocupação com o interesse geral: eis as três palavras-chave que definem as modernas morais do dever — do "dever", justamente, porque elas nos ordenam uma resistência, até mesmo um combate contra a naturalidade ou animalidade em nós.

Por isso a definição moderna da moralidade vai, segundo Kant, se expressar daí em diante sob forma de ordens indiscutíveis ou, para empregar seu vocabulário, de imperativos categóricos. Dado que não se trata mais de imitar a natureza, de toma-la como modelo, mas quase sempre de combatê-la e especialmente de lutar contra o egoísmo natural em nós.

Os dois momentos da ética moderna — a intenção desinteressada e a universalidade do fim escolhido — se reúnem, assim, na definição do homem como "perfectibilidade". Pois a liberdade significa, antes de tudo, a capacidade de agir além da determinação dos interesses "naturais", quer dizer, particulares. Distanciando-nos do particular, é na direção do universal.

Kant em oposição as sabedorias cosmológicas e o fundamento da boa vontade

Assim, a inteligência, a faculdade de comparar, de discernir o particular podem ser faculdades apreciáveis. Mas não são qualidades morais. E por que não? Porque todas estas faculdades, e todos os talentos naturais em geral, podem ser colocados tanto a serviço do bem quanto do mal. Nunca são, por eles mesmos, bons ou maus.

Assim, podemos usar a inteligência para curar, alegrar, ensinar saberes que trarão alegrias e muito mais. Em contrapartida, também podemos usar as mesmas faculdades do espírito para enganar, entristecer, iludir, mentir e também muito mais. Perceba que nenhuma destas faculdades pode ser boa em si mesma, porque tudo dependerá do uso que delas fizermos. Da vontade. Da livre deliberação sobre um fim em detrimento de outros.

As sabedorias cosmológicas definiam de bom grado a virtude ou a excelência como um prolongamento da natureza, como a realização tão perfeita quanto possível para cada ser daquilo que constitui a naturezae indica, assim, sua "função" ou sua finalidade. Numa perspectiva aristocrática o ser "virtuoso" não é aquele que atinge um certo nível graças a esforços livremente consentidos, mas aquele que funciona bem, e até excelentemente, segundo a natureza e as finalidades que lhe são próprias. E isso vale tanto para as coisas e animais quanto para os seres humanos cuja felicidade está associada a essa realização de si. Na moral aristocrática dos gregos, só há superioridade e inferioridade. Hierarquia, em suma. Natural, moral e política. O poder exercido pelos melhores. Senhores e soberanos. E os piores, escravos. Mas já sabemos que, quando o assunto é moral, isso não tem muita importância. que importa mesmo é a liberdade para decidir bem. Somos, portanto, igualmente livres para uma boa vontade. Para além da nossa natureza. A primeira consequência desta reflexão sobre a boa vontade é a igualdade.

A segunda consequência desta liberdade como boa vontade é o desinteresse. A ação virtuosa se confunde com a ação desinteressada. A liberdade, como vimos, é a capacidade de descolar da natureza. Assim, descolar dela, ou resistir a ela, implica levar em conta os interesses dos outros. Dar lugar aos outros. Para isto, é preciso colocar-se entre parênteses. Considerar outros desejos além dos próprios. E esta autolimitação supõe que não sejamos cem por cento egoístas.

A terceira consequência desta liberdade é o universalismo. A vontade, para ser uma boa vontade, deve se justificar universalmente. O dever, que resulta de uma atividade intelectiva, deve valer para qualquer um. Faça de tal maneira que a máxima que preside a sua ação possa ser universalizada. Possa ser transformada em lei. Eis a fórmula do imperativo categórico. Perceba a tangência entre esse universalismo e o desinteresse. A resistência frente aos próprios interesses. Ao egoísmo. Para levar em conta o interesse geral, o bem comum, é preciso considerar o interesse dos outros.

Desta forma, enquanto para os gregos a virtude corresponde à atualização dos talentos naturais, à realização da natureza em nós, para o pensamento moderno de Kant, a virtude é uma resistência ou oposição a essa mesma natureza. A luta contra a natureza em nós.

Igualdade, desinteresse e universalidade. Consequências da liberdade, fundamento da boa vontade e de todo edifício moral de Kant.

Referências Bibliográficas:
FERRY, Luc. Aprender a viver: Filosofia para os novos temposRio de Janeiro, Editora Objetiva, 2010.

DE BARROS FILHO, Clóvis. POMPEU, Júlio. A Filosofia Explica as Grandes Questões da Humanidade. Casa do Saber, 2014.


DE BARROS FILHO, Clóvis. A vida que vale a pena ser vivida. Editora Vozes, 2010.

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