domingo, 24 de maio de 2015

BARUCH SPINOZA


Vida potente

A vida tem a ver com a potência. Com a energia que, a cada instante, podemos disponibilizar para viver. Nada nos é mais essencial. Se nos amputarem uma perna, continuaremos sendo o que somos. Da mesma forma, um braço. Ou outras partes de nós. E que parte de nós não podemos amputar? Sob pena de deixar de ser. Qualquer uma que, se amputada, aniquilasse nossa potência. Porque sem potência para agir, deixamos de ser.

Sua potência oscila, segundo a segundo. Afinal, as coisas que nos acontecem, os fragmentos de mundo que desfilam diante de nós, acabam interagindo conosco e nos transformando.

Potência e essência

A potência — que é a nossa nesse determinado instante — permite que sejamos o que somos. E só nossa. Não é a potência de mais ninguém. É também incomunicável. Intransferível. Inalienável. Incompartilhável. Daí nossa solidão. Condição de nossa existência.

Cada um na sua. Porque nossas sensações são nossas. Estritamente. Porque ninguém sente o que sentimos. Nunca sentimos mesmo o que sentem os demais. Por mais que se esforcem para nos contar. Suas tristezas são suas.

Esta nossa potência é só nossa, nosso diferencial, nosso casulo. Mas, ao mesmo tempo, está à mercê do resto do mundo onde nos encontramos.

Potência na imanência

O real é o todo. Podemos chamá-lo de mundo ou de universo. Esse mundo, por ser o todo, não tem lado de fora. Se tivesse, não seria o todo.

Espinosa não atribuía ao real nem beleza, nem feiura; nem ordem, nem confusão. Por falta de referência externa. Por ausência de gabarito. Porque o real é o que é. Tão somente. Conclui-se que qualquer ordem, caos, beleza, feiura, justiça, crueldade que atribuamos ao mundo advém apenas dos afetos de nosso corpo. Ou de nossas expectativas. De como gostaríamos que fosse.

Este mundo que só tem adjetivos para nós — é constituído por partes. E estas partes, por sua vez, também são constituídas por outras partes. E assim por diante.

Potência e relação

Essas partes só constituem o mundo quando se encontram em relação.

A rigor, o que estamos chamando de mundo é o todo das relações entre todas as partes.

Quando dois corpos A e B se relacionam, isto, antes de tudo, quer dizer que A age sobre B e B age sobre A. Ora, se um age sobre o outro, significa que produz sobre ele efeitos. Transformando-o. Determinando-o.

O homem que é todo constituído de partes — também é parte. Somos, todos, partes do mesmo todo. Imanentes ao mundo ou à natureza como tudo mais. Sem com ela rivalizar ou a ela transcender.

Desta forma, nem nós  nem qualquer outra entidade — olha e julga o mundo de fora. Por falta de poderes divinos. Assim, quando qualquer corpo se manifesta, está agindo enquanto parte. Porque a ninguém — nem a nada — é possível ir além desta condição. E todo discurso com pretensão universal ou imparcial é pura ingenuidade, ilusão, falácia. Ignorância da própria condição.

A vida do homem enquanto parte também se materializa em relações. Viver é relacionar-se. É estar em relação. Por isso a vida de qualquer um de nós não pode ser analisada pelo que supostamente somos, mas pelo que acontece conosco no mundo. Na medida em que somos efeito do mundo com o qual nos relacionamos. Como, a cada instante, o mundo se relaciona com o nosso corpo, age sobre ele ininterruptamente. Produzindo sobre ele efeitos. Por isso, também para nós, viver em relação é viver em transformação contínua.

Inferimos daí duas coisas: a primeira é que o mundo não para de nos afetar. A segunda é que não paramos de afetar o mundo.

Potência e afetos

“Postulados: 1. O corpo humano pode ser afetado de muitas maneiras, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, enquanto outras tantas não tornam sua potência de agir nem maior nem menor” (ESPINOSA. Ética).

Potência não percebida

Muitas vezes não percebemos a oscilação de potência de agir que o mundo determina sobre nosso corpo ao se relacionar com ele.

Portanto, muita coisa que acontece com você vai passar despercebida. E isso explica o fato de você ir se convertendo no que é sem entender muito bem por quê.

Tentamos, em função de experiências anteriores, prever encontros desagradáveis. Para evitá-los.

Potência e livre-arbítrio

Dentre as crenças judaico-cristãs, a mais consagrada no discurso moral, já nos tempos de Espinosa, é a do livre-arbítrio. A liberdade da vontade de escolher entre várias opções. É o que permitiria ao homem ser o responsável por sua própria salvação ou perdição. Não fossemos livres, não poderíamos pecar. Não poderíamos ser julgados e condenados.

O livre-arbítrio pressupõe o poder da razão para controlar os afetos. Para Espinosa, apenas uma ilusão. Que decorre da ignorância das causas verdadeiras, eficientes, materiais que determinam certa ação. Uma construção que coloca o homem acima da necessidade dos fluxos causais da natureza. Um equívoco da imaginação.

Para que o livre-arbítrio seja possível, seria necessário que o mundo, todo ele, fosse indeterminado, contingente, acidental. Que as ocorrências não tivessem nada a ver umas com as outras. Seria preciso que o vento pudesse não erodir. Que a pera pudesse não cair, mesmo madura.

Outra possibilidade seria estabelecer uma fronteira de difícil fundamentação — entre toda a natureza e o homem. Assim, de um lado, tudo na natureza seria necessário. Determinado. Como só poderia ser. Vítima de suas causas materiais. Sem liberdade e sem arbítrio. E, de outro lado, só o homem, apenas ele — talvez por ser filho de Deus, parecer com ele e, por isso, estar meio fora, ou acima, dos nexos de causalidade — ser indeterminado. Flutuante. E, por isso tudo, de arbítrio livre. Indeterminado. Autodeterminado. Criador de si mesmo.

Porque, na sua perspectiva, a ação do homem é tão determinada pela natureza quanto a do leopardo. E se, porventura, ele não mata, não é porque livremente deliberou assim. Mas porque no enfrentamento entre a satisfação e a insatisfação trazidas pela cogitação da morte do outro, triunfou a segunda.

Mas quem decidiu não tem como saber o que aconteceu. O que o levou a decidir. As causas afetivas da decisão. As variáveis emocionais que participaram daquele momento decisório.

Até aqui, o mundo não parou de nos afetar. Mas você leitor, tanto quanto tudo que existe, não deixa barato. E também age sobre o mundo. Afeta o mundo. Faz com que seja como é. Porque o mundo não seria como é se você não fosse, e o transformasse ininterruptamente.

Impossível seria não afetá-lo. Isso implicaria não entrar em relação.

Como não impactar? Mesmo que você fique parado num descampado, o vento que normalmente passaria por onde você está tem que desviar. Por sua causa. E o mundo, por isso, foi diferente do que teria sido se você não fosse, se lá não estivesse. O ar, que por sua vez encontrou você, fez de você outro. Erodido pelo atrito. Resfriado pelo contraste de temperatura. Refrescado pelo calor que sentia.

Em toda essa fugacidade, o que mais importa para a vida é que, pelo fato de sermos afetados no todo, também não permanece a nossa própria essência. Aquilo sem o que não viveríamos. Nossa potência de agir.

Potência de agir

Nossa essência, nossa potência de agir. Algumas passagens são boas, outras más. São boas quando passamos de um corpo menos potente para outro mais potente. Será má, ou ruim, a passagem no sentido contrário. Quando o resultado final da relação determinar perda de potência em nosso corpo.

E essas passagens têm nome. Quando são boas, e com elas ganhamos potência, denominam-se alegria. Quando são ruins e implicam perda de potência, denominam-se tristeza. Assim, o mundo é bom quando alegra. E ruim, quando entristece. E mais: como a potência é nossa essência, a alegria nos aproxima de nossa essência, portanto, de nossa perfeição. Enquanto que a tristeza nos rouba potência. E, portanto, o que nos é essencial. Distanciando-nos de nós. De nossa perfeição.

Potência e resistência

Alegria tem a ver com vida boa. Tristeza, com o seu contrário. Podemos dizer que somos orientados por um movimento natural de insistência na própria existência.

Por isso, existir é insistir. Nada fazemos sem afirmar-nos no mundo. Tudo o que é, todo o ser, esforça-se, na medida em que pode, para continuar a ser. Esforço que Espinosa vai nomear conatus. Todos os seres são dotados necessariamente dessa força interna de autopreservação. Eis a sua essência.

Potência de pensar

Quando seu corpo a encontra, sua potência de agir aumenta. E, na solidão da alcova, a alma que nela pensa se alegra também. Aumenta a sua potência de pensar.

No entanto, nossa alma tem limites. Não consegue perceber nada no mundo senão por intermédio de um afeto sofrido pelo próprio corpo. Não percebe outro corpo em ato, na sua própria potência. Por isso, todo contato com o mundo é sempre mediado pelo nosso corpo. Pela maneira como é afetado.

Apesar de todas essas limitações, continuaremos nos esforçando ao máximo para pensar em coisas que aumentem a potência de agir do nosso corpo.

Porque o que passa pela nossa cabeça pode nos entristecer mesmo. Às vezes estamos bem, nada aconteceu diante de nós, e por conta de algum pensamento, nossa potência míngua.

O que nos ensina Espinosa é que toda vez que algum pensamento deste tipo nos acomete, nossa alma se esforça o máximo que pode para pensar em outra coisa.

E, assim vamos: em luta pelos encontros alegres de nosso corpo com o mundo; por evitar os tristes; por imaginar coisas que aumentam a potência de agir do corpo e a potência de pensar da alma; bem como por evitar as imaginações que enfraquecem, que refreiam a ambos. A vida que vale a pena ser vivida aqui é quando isso tudo dá certo. Quando ganhamos potência. Quando nos aperfeiçoamos. E você continuará lutando por ela.


Referência Bibliográfica:


DE BARROS FILHO, Clóvis. A vida que vale a pena ser vivida. Editora Vozes, 2010.

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