Filósofo humanista e teólogo,
o holandês Erasmo era filho ilegítimo de um padre, tendo sido forçado à vida
religiosa por seus tutores. Sua eterna paixão pelo latim começou no monastério,
e Erasmo rapidamente ultrapassou a capacidade intelectual de seus tutores. Ele
fugiu da vida monástica com quase 30 anos, passando a viajar e estudar
intensamente. Por fim, foi para a Inglaterra e iniciou uma amizade com Thomas
More, que perdurou
até a morte deste, nas mãos de Henrique VIII. Foi durante o percurso
da viagem de retorno à Inglaterra, depois de uma visita à Itália, que concebeu
sua obra mais famosa, Elogio da loucura. Chegando à casa de More em
Londres, rapidamente a passou para o papel e publicou-a, com o apoio de More,
em 1509.
O Elogio da Loucura, tratado escrito por Erasmo em 1509, reflete as
ideias humanistas que começavam a se espalhar pela Europa nos primeiros anos da Renascença,
desempenhando um papel importante na Reforma. É uma sátira espirituosa sobre a
corrupção e as disputas doutrinárias da Igreja católica. No entanto, tem também
uma mensagem séria, afirmando que a loucura – como Erasmo chamou a ignorância ingênua – é parte essencial do ser humano, sendo o que essencialmente nos traz
a maior felicidade e contentamento. Ele foi adiante para afirmar que o
conhecimento, por outro lado, pode ser um fardo e levar a complicações passíveis
de contribuir para uma vida opressiva.
Fé e
loucura
A religião também é uma forma de
loucura, afirmou Erasmo, pois a crença verdadeira só pode se basear na fé,
nunca na razão. Ele rejeitou a mistura de racionalismo grego com teologia
cristã feita por filósofos medievais como Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino, consideradas
intelectualização teológica – segundo ele, a causa fundamental
da corrupção da fé religiosa. Em vez disso, defendeu um retorno às crenças
sinceras, com indivíduos construindo uma relação pessoal com Deus, e não uma
conexão prescrita pela doutrina católica.
Erasmo nos aconselhou a abraçar o que ele considerava o
verdadeiro espírito das Escrituras: simplicidade, ingenuidade e humildade.
Estas, ele disse, são as características humanas decisivas para uma vida feliz.
Contra a supervalorização da razão
Erasmo escreve seu livro O Elogio da loucura como
se fosse a própria Loucura personificada, ambicionando ser ouvida pelos que a
não reconhecem. Observe alguns trechos da obra:
“(...)
me preocupo muito pouco com
esses sábios que, porque um homem faz louvores a si próprio, tratam-no
imediatamente de presunçoso e impertinente. Se o tratassem de louco, seria
melhor; mas que admitam ao menos que, agindo assim, ele se conduz de uma maneira
inteiramente conforme a essa qualidade. Com efeito, há algo de mais natural do
que ver a Loucura exaltar seu próprio mérito e cantar ela própria seus louvores?
Vede esses homens magros, tristes e rabugentos que se dedicam ao
estudo da filosofia, ou a alguma outra coisa difícil e
séria; a alma deles, constantemente agitada por uma multidão de pensamentos
diversos, influi sobre seu temperamento; os espíritos vitais dissipam-se em
grande abundância, o úmido fica seco, e geralmente eles se tornam velhos antes
de terem sido jovens.
Por que essa juventude encantadora que brilha sem cessar no rosto
de Baco? (...) Longe de querer ser visto como sábio, é,
ao contrário, pelos jogos e os prazeres da loucura que se pode prestar-lhe um
culto que lhe seja agradável (...). No entanto, há alguém que não preferisse
assemelhar-se a esse deus extravagante e ridículo, ser como ele sempre alegre,
sempre jovem, sempre divertido, levando a toda parte a alegria e os prazeres,
do que ser como Júpiter, cujo aspecto sombrio e severo faz tremer o céu e a
terra?
Segundo os estoicos, ser sábio é tomar a
razão como guia; ser louco é deixar-se levar ao sabor das paixões. Ora,
Júpiter, para suavizar um pouco as agruras e os desgostos da vida, não deu aos
homens mais paixões do que razão? (...) E essa razão, ele a relegou a um
pequeno canto da cabeça, enquanto entregou o resto do corpo às agitações
contínuas das paixões.
Estar contente com o que se é, com o que se tem, não é
a maior parte da felicidade? Pois bem, é meu caro Amor-próprio que vos
proporciona essa vantagem; ele é que faz cada um ficar contente com seu rosto,
seu espírito, sua origem, sua condição, seus costumes, sua pátria; é por ele
que o irlandês julga-se mais feliz que o italiano, o trácio que o ateniense, o
cita que um habitante das Ilhas Afortunadas.
Se quiserdes vos convencer de quanto esses pobres filósofos são ineptos a todos os afazeres deste mundo, pensai em
Sócrates, esse filósofo que o oráculo de Delfos chamou tão estupidamente o mais
sábio de todos os homens. Obrigado um dia a tratar de não sei qual assunto público,
saiu-se tão mal que todos zombaram dele. É preciso admitir, porém, que ele
tinha às vezes ideias que não eram tão tolas; por exemplo, quando recusou o
título de sábio, dizendo que este pertencia apenas à divindade, ou quando disse
que o filósofo não devia se ocupar do governo. Teria feito melhor, no entanto,
se tivesse ensinado que, para ser homem, é preciso renunciar
absolutamente à sabedoria.
Em primeiro lugar, é claro que todas as
paixões desregradas são produzidas pela loucura. Pois toda a diferença entre
um louco e um sábio é que o primeiro obedece a suas paixões e o segundo à sua
razão. Eis por que os estoicos proibiram ao sábio as paixões como se fossem
doenças. No entanto, são essas paixões que servem de guia aos que seguem com
ardor o caminho da sabedoria; são elas que os estimulam a cumprir os deveres da
virtude, inspirando-lhes o pensamento e o desejo de fazer o bem. Em vão disse
Sêneca, esse estoico arrebatado, que o sábio deve ser absolutamente sem
paixões. Um sábio dessa espécie não seria mais um homem, seria uma espécie de
deus, ou melhor, um ser imaginário que jamais existiu e jamais existirá; ou
enfim, para falar mais claramente, seria um ídolo estúpido, desprovido de todo
sentimento humano e tão insensível quanto o mármore mais duro.
Como não abominar como um monstro
terrível, como não evitar como um espectro medonho um homem dessa espécie, se é
possível que alguma vez tenha existido? Surdo à voz da natureza, os sentimentos
de ternura, piedade e beneficência não impressionam mais seu coração, como se
ele fosse feito da rocha mais dura. Nada lhe escapa, nada o engana; a visão de
um lince não é tão penetrante quanto a sua; ele examina, pesa tudo com o maior
rigor. Sem indulgência pelos semelhantes, só está contente consigo mesmo.
Acredita-se o único rico, o único saudável, o único livre; acredita, enfim, que
possui tudo o que se pode possuir no mundo, mas é o único que pensa assim. Sem
se preocupar em ter amigos, ele próprio não é o amigo de ninguém.
Uma pedra cair sobre a cabeça, eis o
que se chama um mal! Mas a vergonha, a infâmia, a desonra, as injúrias só
prejudicam os que as admitem. Um mal não é um mal para quem não o sente. Todo o
povo te vaia; que te importa, se tu mesmo te aplaudes? Ora, é somente a Loucura
que faz aplaudir-se a si mesmo.
Ouço já os filósofos protestarem: "É uma infelicidade ser louco, viver no erro e na ignorância". – Mas isso é ser homem, meus
amigos! Pois, em verdade, não vejo por que chamaríeis infeliz um ser que vive
de acordo com seu nascimento, sua educação, sua natureza. Não é esse o destino
de tudo o que existe? O que permanece em seu estado natural não poderia ser
infeliz; caso contrário, poder-se-ia dizer que o homem deve queixar-se de não
voar como as aves, de não andar com quatro patas como os quadrúpedes, de não
ter a cabeça armada de chifres como os touros. Do mesmo modo, poder-se-ia dizer
que um belo cavalo é infeliz por não saber gramática, por não comer pastéis, e
que o destino de um touro é deplorável porque ele não pode aprender nenhum dos
exercícios da Academia. Ora, o homem não é mais infeliz por ser louco do que o
cavalo por não saber gramática, pois a loucura está ligada à sua natureza.
(...) o homem é o mais infeliz de todos
os animais, porque é o único que não está contente com seu destino e busca sair
do círculo no qual a natureza circunscreveu suas faculdades.
Sim, quanto mais os homens se entregam à sabedoria, mais se distanciam da felicidade. Mais loucos que os próprios loucos, eles esquecem então que são apenas homens e querem ser vistos
como deuses; amontoam, a exemplo dos Titãs, ciências sobre ciências, artes
sobre artes, e servem-se delas como outras tantas máquinas para fazer guerra à natureza.”
Referências Bibliográficas:
BUCKINGHAM, Will; BURNHAM, Douglas. O livro da Filosofia. São Paulo: Globo, 2011.
ROTTERDAM, Erasmo. Elogio da loucura. Coleção
L&PM POCKET, vol. 278, 2003.
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