quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

PERSEU


Com Perseu, temos mais uma vez pela frente um desses heróis gregos motivados pela justiça e preocupados em expulsar do mundo dos vivos seres passíveis de destruir a bela ordem cósmica instaurada por Zeus.

Era uma vez dois irmãos gémeos que se chamavam Acrísio e Proitos e dos quais se diz que se davam tão mal que já brigavam dentro da barriga da mãe! Para evitar que continuassem a brigar já adultos, eles resolveram dividir o poder. Proitos se tornou rei de uma cidade chamada Tirinto, e Acrísio, que é quem vai nos interessar, passa a reinar na bela cidade de Argos.

Ele tem uma linda filha, Dânae, mas nenhum filho, e nessa época longínqua um rei precisa ter um filho que assuma sua sucessão no trono. Seguindo a tradição, Acrísio se dirige então a Delfos para consultar o oráculo e saber se um dia, sim ou não, ele terá um herdeiro. Também seguindo a tradição, o oráculo responde à questão de forma enviesada. Diz apenas que ele vai ter um neto e esse neto, quando for adulto, vai matá-lo. Acrísio fica assustado e, para dizer a verdade, apavorado: o oráculo de Delfos nunca se engana e é uma condenação à morte que acaba de sair de sua boca. Nada se pode fazer contra o destino, mas, mesmo assim, os humanos não conseguem deixar de tentar. Mesmo gostando muito da filha, Acrísio resolve trancá-la com uma dama de companhia, uma servente, numa espécie de prisão de bronze que ele manda construir no subsolo do pátio do seu palácio. Ele, porém, pede ao arquiteto que deixe uma pequena fenda no teto para que um pouco de ar possa entrar, para Dânae não morrer asfixiada. Terminado o trabalho, ele tranca a filha com a servente e se sente um pouco menos angustiado.

Não contava com a concupiscência de Zeus, que, do alto do Olimpo, havia percebido a linda Dânae. E, como de costume, uma vez mais ele resolve se deitar com ela. Tendo isso em mente, se metamorfoseia em chuva de ouro que cai do céu e sutilmente se infiltra na prisão pela abertura deixada no alto. A chuva dourada cai no corpo de Dânae e desse contato único nasce um menino, Perseu. Cresce bem direitinho naquela gaiola, até o dia em que chama a atenção de Acrísio o tatibitate da criança. Horrori­zado, manda que imediatamente abram a prisão e descobre com terror a realidade: ele pura e simplesmente, apesar de tantas precauções, tem um neto. O que fazer? Para começar, mata a infeliz servente que, no entanto, não tem culpa alguma. Interroga a filha: o que fez para arrumar o bebé? Quem é o pai? Dânae conta a verdade. Zeus é o pai e tinha descido do céu transformado em chuva de ouro etc. Ele não acredita numa só palavra dessa história e acha que a filha está contando lorotas. Mas não pode, afinal de contas, fazer com ela o que fez com a servente. Nem com Perseu: trata-se de sua filha e de seu neto — as Erínias, que sempre punem os assassinatos em família, viriam atormentá-lo.

E apela então para um hábil marceneiro. Pede que construa um grande baú, tão benfeito que possa vagar pelos mares. Coloca lá dentro a filha e o neto. Fecha bem hermeticamente e pronto, tudo isso dentro d'água! Seguem abandonados ao sabor das ondas, entregues à própria sorte. O baú, como é de imaginar, acaba chegando a algum lugar. No caso, uma ilha, a ilha de Sérifo, onde os dois náufragos são encontrados por um pescador chamado Dictis. É um bom sujeito, com real generosidade, e trata Dânae com o devido respeito que se deve a uma princesa, criando ainda o pequeno Perseu como se fosse seu próprio filho. Mas Dictis tem um irmão, Polidectes, bem menos delicado e respeitoso. Polidectes é rei de Sérifo e se apaixona por Dânae assim que a vê. Resumindo os fatos, ele daria tudo para dormir com ela. O único problema é que Dânae não quer e que Perseu cresceu: já é um rapaz. Ele protege a mãe e não é tão fácil assim se livrar dele. Polidectes tem uma ideia, sem dúvida para desviar a atenção de Perseu ou talvez para fazê-lo cair numa armadilha, não se sabe muito bem. Em todo caso, trata-se de afastá-lo, e ele anuncia com grande alarde que vai dar uma festa para a qual todos os jovens da ilha estão convidados. Pretende anunciar, nessa ocasião, que quer se casar com uma moça, Hipodâmia, que adora cavalos. É costume que todos os jovens ofereçam um presente. Cada um traz um cavalo, o mais bonito possível, para agradar ao rei. Perseu, entretanto, nada tem. É claro, ele é pobre como, literalmente, um náufrago. Em compensação, ou talvez por pura bravata, se dispõe a presentear Polidectes com qualquer outra coisa, até mesmo a cabeça de Medusa, a terrível Górgona! Talvez tenha dito isso só para chamar a atenção, ou pode ser também que já sentisse em si mesmo uma vocação heróica.

De um jeito ou de outro, o rei evidentemente o toma ao pé da letra, todo contente com a oportunidade de definitivamente se livrar daquele desmancha-prazeres que nunca sai de perto da mãe. Já da Górgona, ninguém jamais se aproximara que voltasse vivo. O caminho estaria livre para se casar (ou tomar à força...) Dânae.

As três Górgonas tinham anteriormente sido muito bonitas, mas cometeram a impudência de pretender que eram mais belas do que Atena. E o tipo de hybris, como você já sabe, que não se perdoa. Para se vingar ou, mais exatamente, para colocá-las de volta no devido lugar, Atena literalmente as desfigurou. Passaram a ter pavorosos olhos exorbitados; uma língua semelhante à de um porco ou de um carneiro sai o tempo todo das suas bocas, além dos dentes de javali que as obriga a uma espécie de cacoete medonho. Têm braços e mãos de bronze e asas de ouro nas costas. Mas o pior é que os seus olhos globulosos transformam qualquer ser vivo, animais, plantas ou seres humanos em pedra assim que se cruza o olhar: o dom mágico que permite transformar o orgânico em inorgânico, o vivo em pedra ou em metal, representa uma ameaça direta à harmonia e à preservação da ordem cósmica inteira. Na verdade, se assim quiserem ou lhes permitirem, semelhantes seres podem aniquilar o trabalho de Zeus. É então vital para o cosmos que, quando necessário, eles sejam enviados de volta a seus lugares. Acontece porém que, das três Górgonas, duas são imortais e apenas uma mortal. Já era tempo de se liquidar pelo menos esta que pode ser liquidada, e é Perseu quem vai se encarregar disso.

A primeira etapa para Perseu consiste em procurar as assim chamadas "Greias". Três irmãs que são também irmãs das Górgonas. Todas têm os mesmos pais, igualmente apavorantes, dois gigantescos monstros marinhos, Fôreis e Ceto. As Greias têm como missão guardar o caminho que leva às Górgonas e, mesmo que pessoalmente ignorem a moradia exata delas, pelo menos sabem de ninfas que, com certeza, têm a informação. Caso Perseu consiga fazer as Greias falarem, poderá em seguida consultar as tais ninfas, numa segunda etapa do périplo. Mas as Greias não são fáceis. A sua maneira, são verdadeiros monstros, e é preciso ter cuidado: são famosas por devorarem rapazes quando bem entendem.

Como prova disso, as Greias têm duas características assustadoras. A primeira é que já nasceram velhas. A segunda característica é que as três têm só um olho e só um dente! Imagine só a cena: o tempo todo, sem parar, elas passam de uma para a outra o olho e o dente, que giram incessantemente nesse revezamento infernal.

Perseu é um herói, e, como você pode imaginar, nessa primeira façanha ele se sai bem. Rápido como o relâmpago, consegue subtrair os dois órgãos, e são as três velhas que passam a ficar aterrorizadas, pondo-se a berrar: elas são imortais, mas, sem o olho e o dente, a vida delas vai se tornar um inferno. Se não lhe disserem onde encontrar as ninfas que sabem onde se encontram as Górgonas, ele não lhes devolve os seus bens. E se assim escolherem, vão passar todo o restante da eternidade sem enxergar nem comer. Reclamando muito, as velhas aceitam. Indicam o caminho das ninfas, que elas deviam guardar. Muito honesto, Perseu lhes devolve o olho e o dente e sai rápido dali.

Ao contrário das três bruxas, as ninfas são tão bonitas quanto acolhedoras. Recebem Perseu com todo carinho. Não colocam a menor dificuldade para dizer onde encontrar as Górgonas. Mais ainda, chegam a oferecer presentes de valor inestimável, dotados de poderes mágicos sem os quais Perseu na verdade não teria a menor chance de alcançar o seu objeto. Para começar, oferecem sandálias aladas iguais às de Hermes, calçados que permitem que se voe no céu a toda velocidade, como um pássaro ou até mais rápido. Em seguida, dão o famoso capacete de Ha­des, um chapéu de pele de cachorro que torna invisível quem o usa — o que faz com que Perseu possa escapar da perseguição das duas Górgonas imortais, que vão querer vingar a irmã. Por último oferecem uma espécie de bornal, esse saco em que os caçadores colocam a caça já morta, para que Perseu possa guardar com segurança a cabeça da Górgona, depois de cortada. É preciso que saiba que seus olhos, mesmo com ela já morta, eternamente continuam a petrificar tudo aquilo por que passarem: é então extremamente prudente, para não dizer vital, mante-los sob controle. Aos três presentes, Hermes acrescenta uma faca. Em todo caso, um instrumento afiado que também é mágico: por mais duro e resistente que seja o que cair sob a sua lâmina, ele corta.

Mais uma vez, a tarefa não é fácil e ele precisa da ajuda de Atena. De fato, como cortar a cabeça da horrível Medusa sem correr o risco de cruzar o olhar com ela? Para executar semelhante trabalho, é preciso enxergar o que se faz. E é o que inexoravelmente o exporia à morte certa! Felizmente Atena pensou em tudo. Trouxe seu famoso escudo. Sendo lustroso e brilhante, ele vai servir de espelho. Ela se coloca atrás de Medusa, que está dormindo, enquanto Perseu se aproxima, silencioso como um gato. Ele vê no espelho o reflexo do rosto de Medusa: mesmo que ela o olhe, não há perigo, pois é apenas uma imagem e não a realidade. A partir daí, nada mais fácil do que cortar a horrível cabeça e colocá-la no bornal. Mas as duas outras Górgonas acordam. Imediatamente Perseu veste o chapéu de Hades que o torna invisível e os calçados de Hermes que lhe permitem fugir como o vento.

No caminho de volta para Sérifo, onde vai encontrar a mãe, Dânae, e entregar a cabeça de Medusa a Polidectes, estando nos ares, em pleno céu, ele vê aquela que vai se tornar sua mulher: a bela Andrômeda, que está numa péssima situação. No momento em que Perseu passa lá por cima, Andrômeda na verdade está acorrentada na encosta de um penhasco, num abismo acima do mar, onde a espera um monstro abominável! Qual pior situação se pode imaginar? Por quê? Sua mãe, Cassiopeia, que é mulher de Cefeu, rei da Etiópia, teve a péssima ideia, assim como Medusa com Atena, de desafiar divindades nada desprezíveis, no caso as Nereidas, filhas de Nereu, um dos mais antigos deuses do mar, inclusive anterior a Poseidon. Ela de fato as tinha insultado, pretendendo ultrapassá-las muito facilmente em matéria de beleza — algo que significa, como você já sabe, cometer por excelência o pecado de hybris. As Nereidas têm como melhor amigo Poseidon, que também se irrita com a estúpida pretensão. Para punir a insolente, ele envia um maremoto e, junto, um monstro marinho que passa a aterrorizar a região. Existe um único meio que pode acalmá-lo: entregar-lhe para comer a filha do rei, a bela Andrômeda. E Cefeu, com a alma em frangalhos, acaba aceitando. Por isso Andrômeda está amarrada naquele rochedo, aguardando um fim medonho, assim que o monstro resolver vir buscá-la. Perseu não hesita um segundo. Promete a Cefeu libertar a bela. Em troca, pede apenas que ela se torne sua mulher. Negócio feito. Com seu podão, sandálias aladas e capacete da invisibilidade, ele não tem a menor dificuldade para matar a fera, libertar a bela e levá-la de volta à terra. Todos ficam encantados, exceto um certo Fineu, tio de Andrômeda, que devia justamente se casar com ela. Tenta então se livrar de Perseu, que saca a cabeça da Górgona do bornal e imediatamente o transforma em pedra.

De volta a Sérifo, Perseu encontra sua mãe que havia fugido com Dictis para um templo, tentando escapar da violência de Polidec-tes. Ele penetrou no palácio num momento em que Polidectes havia convidado seus amigos e, desviando os olhos (para não ser ele próprio petrificado), mostrou a todos a cabeça da Górgona. Os convivas (inclusive, é claro, Polidectes) foram logo transformados em pedra, cada um na exata postura em que se encontrava (imagine só o quadro: uns bebendo vinho, outros no espanto de ver a entrada de Perseu, Polidectes certamente cheio de curiosidade e apreensão etc.). Depois de tornar Dictis rei de Sérifo (Polidectes, que virou estátua, está morto e seu irmão justo e bom o sucede no trono), Perseu devolve as sandálias, o bornal e o capacete a Hermes e dá a Atena a cabeça da Górgona. Hermes devolve os objetos em questão às ninfas e Atena coloca a cabeça da Górgona no centro do seu escudo (não esqueça que ela é também a deusa da guerra e que com a cabeça de Medusa ela pode literalmente "petrificar" de medo todos os inimigos).

Última sequência, inevitável: é preciso que o oráculo se cumpra e que Acrísio seja punido por sua maldade e egoísmo. Acompanhado por Andrômeda, que passa a ser sua mulher, e a mãe, Perseu decide voltar a Argos. Bom príncipe que ele é, já havia perdoado o avô. Não lhe quer mal, pois sabe que no fundo Acrísio fez tudo aquilo por medo de o oráculo se realizar. Quer lhe dar o seu perdão. Mas Acrísio, ao saber que Perseu está a caminho, fica aterrorizado com a ideia do cumprimento do oráculo. E rapidamente foge para outra cidade, Larissa, onde pede proteção ao rei, um certo Teutâmides. Este último está em plena organização de jogos atléticos, espécie de competição pelas quais os gregos eram loucos naquela época, com jovens disputando em todo tipo de modalidade esportiva. Acrísio é convidado pelo amigo para assistir ao espetáculo da tribuna. Ao saber que jogos se realizavam nas proximidades de Argos, justamente no seu caminho, Perseu não resiste à tentação de participar. Ele é excelente lançador de disco. Por falta de sorte, o primeiro disco que ele lança cai com toda força no pé de Acrísio, que morre na mesma hora.

N
ão me pergunte como um disco que cai no pé de alguém pode causar assim a sua morte. Isso não importa. O que conta é que a justiça se faz e o destino — que não passa de outra maneira de se chamar a ordem cósmica — reassume seus direitos. Tudo entra em sua ordem, e Perseu vai poder seguir tranquilamente o curso da sua vida, entre a mãe e a esposa, assim como os filhos que esta última não deixará de gerar. Ao morrer, Zeus, seu pai, concede o insigne favor para um mortal. Recompensando sua coragem e contribuição para a sustentação da ordem cósmica, Per­seu é inscrito por toda a eternidade na abóbada celeste, sob a forma de constelação que, ao que dizem, traça o desenho do seu rosto.

Referência Bibliográfica:
FERRY, Luc. Aprender a viver II: A sabedoria dos mitos gregos. Rio de Janeiro. Editora Objetiva, 2009.

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