sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Princípio da ética em Rousseau


A diferença entre animalidade e humanidade segundo Rousseau: o nascimento da ética humanista

Para Rousseau, antes de tudo, é evidente que o animal, mesmo que se pareça com uma "máquina engenhosa", como diz Descartes, possui mesmo assim uma inteligência, uma sensibilidade, até mesmo uma faculdade de comunicar. Não são, portanto, a razão, a afetividade, nem mesmo a linguagem que distinguem, em última instância, os seres humanos, mesmo que, à primeira vista, esses diversos elementos possam parecer discriminatórios. Nesses dois aspectos, só diferimos dos animais pelo grau, do mais ao menos.

O critério de diferenciação entre o homem e o animal reside em outro ponto.

Rousseau vai situá-lo na liberdade, ou, como exprime por meio de uma palavra que vamos analisar, na "perfectibilidade". Digamos apenas, por ora, que essa "perfectibilidade" designa, numa primeira abordagem, a faculdade de se aperfeiçoar ao longo da vida, enquanto o animal, guiado desde a origem e de modo seguro pela natureza, como se dizia na época, pelo "instinto", é, por assim dizer, perfeito "de imediato", desde o nascimento.

Poderíamos fazer o seguinte comentário: no animal, a natureza fala o tempo todo e fortemente, tão fortemente que ele não tem a liberdade de fazer nada além de obedecer-lhe. No homem, ao contrário, domina certa indeterminação: a natureza está presente, de fato, e muito, como nos ensinam todos os biólogos. Nós também temos um corpo, um programa genético, o do nosso DNA, do genoma transmitido por nossos pais. Contudo, o homem pode afastar-se das regras naturais, e até mesmo criar uma cultura que se opõe a elas quase termo a termo — por exemplo, a cultura democrática que vai tentar resistir à lógica da seleção natural para garantir a proteção dos mais fracos.

Três consequências maiores da nova definição das diferenças entre animalidade e humanidade: os homens, únicos seres portadores de história, de igual dignidade e de inquietação moral

As consequências dessa constatação são profundíssimas. Eu lhe indicarei apenas as três que vão ter penetração considerável nos planos moral e político.

Primeira consequência: os humanos serão, diferentemente dos animais, dotados do que se poderia chamar de dupla historicidade. De um lado, haverá a história do indivíduo, da pessoa, e é o que chamamos habitualmente de educação; de outro, haverá também a história da espécie humana, ou, se você preferir, a história das sociedades humanas, o que habitualmente chamamos de cultura e política.

O que faz com que um bicho não possua nem história pessoal (educação) nem história política e cultural é que ele é desde o início e desde sempre guiado pelas regras da natureza, pelo instinto, e que lhe é impossível se afastar deles. O que, ao contrário, permite ao ser humano ter essa dupla historicidade é justamente o fato de que, estando em excesso em relação aos "programas" da natureza, pode evoluir indefinidamente, educar-se "ao longo da vida", e entrar numa história da qual ninguém pode dizer hoje quando e onde acabará. Em outras palavras, a perfectibilidade, a historicidade, como queira, é consequência direta de uma liberdade em si mesma definida como possibilidade de afastamento em relação à natureza.

Segunda consequência: como diz Sartre — que sem saber repetia Rousseau —, se o homem é livre, então não existe "natureza humana", "essência do homem", definição de humanidade, que precederia e determinaria sua existência. A existência do homem precede sua essência, como diz Sartre, temos uma magnífica crítica ao racismo e ao sexismo.

O racismo diz que "o africano é jogador", "o judeu, inteligente", "o árabe, preguiçoso" etc., e só com o emprego do artigo "o" sabe-se que estamos lidando com um racista, um ser convencido de que todos os indivíduos de um mesmo grupo partilham a mesma "essência". O mesmo vale para o sexista que facilmente pensa que está na "natureza" da mulher ser mais sensível do que inteligente, mais terna do que corajosa, para não dizer "feita para" ter filhos e ficar em casa, grudada no fogão...

Terceira consequência: é porque é livre, porque não é prisioneiro de nenhum código natural ou histórico determinante, que o ser humano é um ser moral. Como poderíamos, aliás, lhe imputar boas ou más ações se ele não fosse de algum modo livre para escolher? Em contrapartida, quem pensaria em condenar o tubarão que acaba de devorar um surfista?

A herança de Rousseau: uma definição do homem como “animal desnaturado”

Para se interrogar, é preciso dois, aquele que interroga e aquilo que é interrogado. Confundido com a natureza, o animal não pode se interrogar. Eis aí, me parece, o ponto que procuramos. O animal e a natureza são um só. O homem e a natureza são dois.

É por causa dessa distância que nos é possível entrar na história da cultura, não ficar preso à natureza, como lhe expliquei há pouco. Mas é também graças a ela que podemos interrogar o mundo, julgá-lo, transformá-lo e, como tão bem se diz, inventar "ideais", uma distinção entre o bem e o mal.

Referências Bibliográficas:
FERRY, Luc. Aprender a viver: Filosofia para os novos temposRio de Janeiro, Editora Objetiva, 2010.

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