A diferença entre animalidade e humanidade segundo Rousseau:
o nascimento da ética humanista
Para Rousseau, antes de
tudo, é evidente que o animal, mesmo que se pareça
com uma "máquina engenhosa", como diz Descartes, possui mesmo assim
uma inteligência, uma sensibilidade, até mesmo uma faculdade de comunicar. Não
são, portanto, a razão, a afetividade, nem mesmo a linguagem que distinguem, em
última instância, os seres humanos, mesmo que, à primeira vista, esses diversos
elementos possam parecer discriminatórios. Nesses dois aspectos, só diferimos dos animais pelo grau, do mais ao menos.
O critério de diferenciação entre o homem e o animal reside em
outro ponto.
Rousseau vai situá-lo na liberdade, ou, como exprime por meio de uma
palavra que vamos analisar, na "perfectibilidade". Digamos apenas, por ora,
que essa "perfectibilidade" designa, numa primeira abordagem, a
faculdade de se aperfeiçoar ao longo da vida, enquanto o animal, guiado desde a origem e de
modo seguro pela natureza, como se dizia na época, pelo "instinto", é, por assim dizer,
perfeito "de imediato", desde o nascimento.
Poderíamos fazer o seguinte comentário: no animal, a natureza
fala o tempo todo e fortemente, tão fortemente que ele não tem a liberdade de
fazer nada além de obedecer-lhe. No homem, ao contrário, domina certa
indeterminação: a natureza está presente, de fato, e muito, como nos ensinam
todos os biólogos. Nós também temos um corpo, um programa genético, o do nosso
DNA, do genoma transmitido por nossos pais. Contudo, o homem pode afastar-se
das regras naturais, e até mesmo criar uma cultura que se opõe a elas quase
termo a termo — por exemplo, a cultura democrática que vai tentar resistir à
lógica da seleção natural para garantir a proteção dos mais fracos.
Três consequências maiores da nova definição das
diferenças entre animalidade
e humanidade: os homens, únicos seres portadores de história, de igual dignidade e de inquietação moral
As
consequências dessa constatação são profundíssimas.
Eu lhe indicarei apenas as três que vão ter penetração considerável nos planos
moral e político.
Primeira consequência: os
humanos serão, diferentemente dos animais, dotados do que se poderia chamar de
dupla historicidade. De um lado, haverá a história do indivíduo, da
pessoa, e é o que chamamos habitualmente de educação; de outro, haverá
também a história da espécie humana, ou, se você preferir, a história das sociedades humanas, o que habitualmente chamamos de cultura e política.
O que
faz com que um bicho não
possua nem história pessoal (educação) nem história política e cultural é que
ele é desde o início e desde sempre guiado pelas regras da natureza, pelo
instinto, e que lhe é impossível se afastar deles. O que, ao contrário, permite
ao ser humano ter essa dupla historicidade é justamente o fato de que, estando
em excesso em relação aos "programas" da natureza, pode evoluir
indefinidamente, educar-se "ao longo da vida", e entrar numa história da qual ninguém pode dizer hoje quando e onde acabará. Em outras palavras, a perfectibilidade, a historicidade,
como queira, é consequência direta de uma liberdade em si mesma definida como
possibilidade de afastamento em relação à natureza.
Segunda consequência: como
diz Sartre — que sem saber repetia Rousseau —, se o homem é livre, então não
existe "natureza humana", "essência do homem", definição de
humanidade, que precederia e determinaria sua existência. A existência do homem precede sua essência, como diz Sartre,
temos uma magnífica crítica ao racismo e ao sexismo.
O racismo diz que "o
africano é jogador", "o judeu,
inteligente", "o árabe, preguiçoso" etc., e só com o emprego do
artigo "o" sabe-se que estamos lidando com um racista, um ser
convencido de que todos os indivíduos
de um mesmo grupo partilham a mesma "essência". O mesmo vale para o
sexista que facilmente pensa que está na "natureza" da mulher ser
mais sensível do que inteligente, mais terna do que corajosa, para não dizer
"feita para" ter filhos e ficar em casa, grudada no fogão...
Terceira consequência: é porque
é livre, porque não é prisioneiro de nenhum código natural ou histórico
determinante, que o ser humano é um ser moral. Como poderíamos, aliás, lhe
imputar boas ou más ações se ele não fosse de algum modo livre para escolher?
Em contrapartida, quem pensaria em condenar o tubarão que acaba de devorar um
surfista?
A
herança de Rousseau: uma definição do homem como “animal desnaturado”
Para se interrogar, é preciso dois, aquele que interroga e aquilo que é
interrogado. Confundido com a natureza, o animal não pode se interrogar. Eis
aí, me parece, o ponto que procuramos. O animal e a natureza são um só. O
homem e a natureza são dois.
É por causa dessa distância que nos é possível entrar na
história da cultura, não ficar preso à natureza, como lhe expliquei há pouco.
Mas é também graças a ela que podemos interrogar o mundo, julgá-lo,
transformá-lo e, como tão bem se diz, inventar "ideais", uma
distinção entre o bem e o mal.
Referências Bibliográficas:
FERRY, Luc. Aprender a viver: Filosofia para os novos tempos. Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 2010.
mermao de matéria chata eu ein
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