Filosofia e religião:
dois modos opostos de abordar a questão da salvação
Como de fato operam as religiões em
face da ameaça suprema que elas dizem que podemos superar? Basicamente pela fé.
É ela, e somente ela, na verdade, que pode fazer derramar sobre nós a graça de
Deus: se você acredita em Deus, Ele o salvará, dizem elas. Santo Agostinho a Pascal se opõe à
arrogância e à vaidade da filosofia. Por que essa acusação lançada contra o
livre pensamento? Por que este também pretende nos salvar, se não da morte,
pelo menos das angústias que ela provoca, mas por nossas próprias forças e
em virtude apenas de nossa razão.
O
filósofo é antes de tudo aquele que pensa que, se conhecemos o mundo,
compreendendo a nós mesmos e compreendendo os outros, tanto quanto nossa
inteligência o permite, vamos conseguir, pela lucidez e não por uma fé cega,
vencer nossos medos.
Em outras palavras,
se as religiões se definem como "doutrinas da
salvação" por um Outro, pela
graça de Deus, as grandes filosofias poderiam ser definidas como doutrinas da
salvação por si mesmo, sem
a ajuda de Deus.
Os filósofos gregos pensavam no
passado e no futuro como dois males que pesam sobre a vida humana. O passado não existe
mais, e o futuro ainda não existe, insistiam eles; e, no entanto, vivemos quase
toda a nossa vida entre lembranças e projetos, entre nostalgia e esperança. De tanto lamentar o passado ou ter esperança no
futuro, acabamos por perder a única vida que vale ser vivida, a que depende do
aqui e do agora, e que não sabemos amar como ela certamente merece.
A filosofia deseja que encontremos uma saída por
nossas próprias forças, pela via da simples razão, se pelo menos conseguirmos
usá-la como necessário: com precisão, audácia e firmeza.
Se a religião acalma
as angústias, fazendo da morte uma ilusão, corre o risco de fazê-lo ao preço da
liberdade de pensamento. Porque, de certa forma, ela sempre exige em troca da
serenidade que pretende oferecer que, num momento ou noutro, a razão seja abandonada para dar lugar à fé, que se ponha termo ao espírito crítico para
que se aceite acreditar. Ela quer que sejamos, diante de Deus, como crianças,
não adultos em quem ela não vê, afinal, senão arrogantes raciocinadores.
Filosofar, mais que acreditar, é, no
fundo — pelo menos do ponto de vista dos filósofos, já que o dos crentes é, com
certeza, diferente —, preferir a lucidez ao conforto, a liberdade à fé.
Trata-se, em certo sentido, é verdade, de "salvar a pele", mas não a
qualquer preço.
Da interrogação
moral à questão da salvação: o ponto em que essas duas esferas jamais poderiam
se confundir
Se quiséssemos resumir as ideias
modernas, poderíamos simplesmente definir as morais laicas como um conjunto de valores expressos por
deveres ou imperativos que nos pedem um mínimo de
respeito pelo outro, sem o qual uma vida comum pacificada é impossível.
Inútil sermos santos,
apóstolos perfeitos dos direitos do homem e da ética republicana, por exemplo,
nada nos garantiria o sucesso da vida afetiva. A ética nunca impediu ninguém de
ser traído ou abandonado. Salvo engano, nenhuma das histórias de amor
representada nas grandes obras romanescas depende da ação humanitária... Se a
aplicação dos direitos do homem permite uma vida comum pacificada, eles não
oferecem por si mesmos nenhum sentido, nem mesmo nenhuma finalidade ou direção
à existência humana.
Eis por que, no mundo moderno assim como nos
tempos passados, foi preciso inventar, para além da
moral, algo que ocupasse o lugar de uma doutrina da salvação. O problema é que
sem cosmos e sem Deus a coisa parece particularmente difícil de se pensar. Como
enfrentar a fragilidade e a finitude da existência humana, a mortalidade de
todas as coisas neste mundo, na falta de qualquer princípio exterior e superior
à humanidade?
A emergência de uma espiritualidade moderna: como pensar a salvação se o mundo não é mais uma ordem
harmoniosa e está distante da fé?
Para alcançar tal objetivo, os
Modernos seguiram duas grandes linhas.
A primeira: é a das "religiões
de salvação terrestre", especialmente o cientificismo, o patriotismo e o
comunismo.
O que isso quer dizer?
Grosso modo, o seguinte: não
podendo sustentar-se numa ordem cósmica, não podendo mais acreditar em Deus, os Modernos inventaram religiões de substituição, espiritualidades sem Deus ou, para ser direto, ideologias que,
professando com frequência um ateísmo radical, agarraram-se, apesar
de tudo, a ideais capazes de dar um sentido à existência humana, ou de
justificar que se morra por eles.
Mesmo que nos dedicássemos a
uma causa sublime, com a convicção de que o ideal é infinitamente superior à
própria vida, no final, é sempre o indivíduo que sofre e morre enquanto
ser particular, não outro em seu lugar. Em face da morte pessoal, o comunismo,
o cientificismo, o nacionalismo e todos os outros "ismos" que se
queira pôr no lugar correm o grande risco de revelarem-se, qualquer dia desses,
apenas como abstrações desesperadamente vazias.
Em segundo lugar: na falta de princípios
cósmicos ou religiosos, é a própria humanidade que se sacraliza, a ponto de ascender, por sua vez, ao estatuto de princípio transcendente. A execução,
aliás, é possível: afinal, ninguém pode negar que a humanidade em sua
totalidade seja, em certo sentido, superior a cada um dos indivíduos que a
compõem, da mesma forma que o interesse geral deve, em princípio, prevalecer
sobre os interesses particulares.
Digo-lhe apenas uma palavra, para que você não
tenha a impressão de que o pensamento moderno se reduz às banalidades mortíferas do
comunismo, do cientificismo ou do nacionalismo.
E Kant, na linha de Rousseau, quem lança pela
primeira vez a ideia crucial de "pensamento alargado" como sentido da
vida humana. O pensamento alargado, para ele, é o contrário do espírito
limitado, é o pensamento que consegue se libertar da situação particular de
origem para se elevar até a compreensão do outro.
Para lhe dar um exemplo simples, quando você aprende
uma língua estrangeira, é preciso que ao mesmo tempo você se afaste de si e de
sua condição particular de partida, o francês, por exemplo, para entrar numa
esfera mais larga, mais universal, onde vive uma outra cultura e, se não uma
outra humanidade, ao menos uma outra comunidade humana diferente daquela a que
você pertence e da qual, de algum modo, você começa a se desprender, sem,
contudo, renegar.
Desprendendo-se das particularidades iniciais,
entra-se, pois, em mais humanidade. Ao aprender uma outra língua,
você pode não apenas comunicar-se com um número maior de seres humanos, mas
ainda descobre, por meio da linguagem, outras ideias, outras formas de humor,
outras modalidades de relação com o outro e com o mundo. Você alarga a
visão e afasta os limites naturais do espírito atado à sua própria comunidade —
que é o arquétipo do espírito limitado.
Além do exemplo específico
das línguas, é todo o sentido da experiência humana que está em jogo. Se
conhecer e amar são uma só coisa, você entra, alargando o horizonte, cultivando-se,
numa dimensão da existência humana que a "justifica" e lhe dá um
sentido — simultaneamente uma significação e uma direção.
A exigência do
pensamento alargado
Para que se tome consciência de
si, é preciso situar-se a distância de si mesmo. Onde o espírito
limitado permanece envisgado em sua comunidade de origem a ponto de julgar que
ela é a única possível ou,
pelo menos, a única boa e legítima, o espírito alargado consegue, assumindo
tanto quanto possível o ponto de vista de outrem, contemplar o mundo como
espectador interessado e benevolente. Aceitando descentrar sua perspectiva inicial e arrancar-se ao círculo do egocentrismo, ele pode penetrar nos
costumes e nos valores diferentes dos seus; em seguida, ao se voltar para si
mesmo, tomar consciência de si de modo distanciado, menos dogmático, e com isso
enriquecer suas próprias ideias. É através desse pensamento alargado são
possíveis grandes obras, que se tornam proveitosas para a humanidade e não
apenas para um região ou cultura isolada.
Na Bíblia, conhecer significa
amar. Falando mais rudemente: quando se diz que alguém "a conheceu
biblicamente", significa que "ele fez amor com ela". A
problemática do sentido é uma secularização dessa equivalência bíblica: se
conhecer e amar são uma só coisa, então, o que acima de tudo dá sentido a
nossas vidas, ao mesmo tempo orientação e significado, é exatamente o ideal do
pensamento alargado. Só ele, de fato, nos permite, ao nos convidar, em todos os
sentidos do termo, para a viagem, ao nos exortar a sair de nós mesmos para
melhor nos encontrar — e é o que Hegel chamava de "experiência" —,
conhecer melhor e amar mais os outros.
Para que serve envelhecer? Para isso, e talvez
para mais nada. Para alargar a visão, aprender a amar a
singularidade dos seres assim como a das obras e às vezes, quando esse amor é
intenso, viver a supressão do tempo que sua presença nos dá. Com isso conseguimos, mas apenas em alguns
momentos, como nos sugeriam os gregos, nos libertar da tirania do passado e do
futuro para habitar esse presente por fim sem culpa e sereno.
A sabedoria do amor
A grande obra, diferentemente das outras, fala a
todos os seres humanos, não importando nem o tempo
nem o lugar onde eles vivem. O amor dá sentido, é que entre as duas realidades, o
particular e esse universal que se confunde, a rigor, com a própria humanidade,
existe lugar para o meio-termo: o singular ou o individual. Ora, é este, só
este, o objeto de nosso amor e o portador de sentido.
Se a lógica clássica, desde a
Antiguidade grega, designa pelo nome de "individualidade" uma
particularidade que não se prendeu apenas ao particular, mas se fundiu num
horizonte superior para aceder ao universal, então você pode avaliar que nesse
ponto a grande obra de arte oferece-nos seu mais perfeito modelo.
A obra de arte digna do nome não é nem
o artesanato local nem o universal descarnado e insosso que o resultado de uma
pesquisa científica pura representa. E é isso, essa singularidade, essa
individualidade nem apenas particular, nem inteiramente universal, que amamos
nela.
Com isso você também
vê por qual viés a noção de singularidade pode se ligar diretamente ao ideal
do pensamento alargado: afastando-me de mim mesmo para compreender o outro,
alargando o campo de minhas experiências, eu me singularizo, já que ultrapasso
ao mesmo tempo o particular de minha condição de origem para aceder, se não à
universalidade, pelo menos ao reconhecimento cada vez maior e mais rico das
possibilidades que são da humanidade inteira.
A singularidade não é
somente a característica primeira dessa “coisa” exterior a mini que é a obra de
arte, mas também uma dimensão subjetiva, pessoal, do ser humano. E é essa
dimensão, e não as outras, que é o objeto de nosso amor. Nunca amamos o
particular enquanto tal, tampouco o universal abstrato e vazio. Quem se
apaixonaria por um recém-nascido ou por uma fórmula algébrica?
Como tal, o alargamento é o
resultado de uma soteriologia [salvação do Homem] humanista, a única resposta
plausível à questão do sentido da vida — e, nesse aspecto, uma vez mais o
humanismo não metafísico pode aparecer como uma secularização do cristianismo.
Só a singularidade, que
ultrapassa ao mesmo tempo o particular e o universal, pode ser objeto de amor.
O que faz com que um ser seja amável, o
que dá a impressão de que poderíamos continuar a amá-lo mesmo que a doença o
tivesse desfigurado, não é redutível a uma qualidade, por mais importante que
seja. O que amamos nele (e que ele ama em nós, eventualmente) e que,
consequentemente, devemos alimentar tanto em relação ao outro quanto em nós
mesmos, não é nem a particularidade nem as qualidades abstraías (o universal),
mas a singularidade que o distingue e o torna sem igual.
E essa singularidade, você deve
imaginar, não é dada no nascimento. Ela se forja ao longo da existência, da
experiência, e é exatamente por isso que é insubstituível. O fio condutor do pensamento alargado e da singularidade,
reinvestir o ideal grego desse "instante eterno", esse presente que,
por sua singularidade, justamente porque o consideramos insubstituível e
cuja espessura medimos, em vez de anulá-lo em nome da nostalgia do que o
precede ou da esperança do que poderia suceder a ele, liberta-se das angústias
de morte ligadas à finitude e ao tempo.
Essa sabedoria do amor deve ser elaborada por
cada um de nós e, sobretudo, em silêncio. Mas acredito que devemos, à margem
do budismo e do cristianismo, aprender, enfim, a viver e a amar como adultos,
pensando, se necessário, todos os dias na morte. Não por fascinação mórbida.
Ao contrário, para procurar o que convém fazer aqui e agora, na alegria, com
aqueles que amamos e que vamos perder, a menos que eles nos percam antes. Essa
sabedoria existe e constitui o coroamento de um humanismo, enfim, desembaraçado
das ilusões da metafísica e da religião.
Referência Bibliográfica:
FERRY, Luc. Aprender a viver: Filosofia para os novos tempos. Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 2010.
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