A religiosidade
Podemos dizer que a religião é a atividade cultural mais antiga e que existe em todas as
culturas. Por quê?
Porque descobrimos que
somos humanos quando temos a experiência de que somos
conscientes das coisas, dos outros e de nós mesmos.
De fato, desde muito cedo
os seres humanos percebem regularidades na natureza e sabem que não são a causa delas; percebem também que há na natureza coisas
boas e ameaçadoras e reconhecem que também não são os criadores delas. A
percepção da realidade exterior como algo independente da ação
humana nos conduz à crença em poderes superes ao humano e à busca de meios para
nos comunicar com eles. Nasce, assim, a crença na(s) divindade(s).
O sagrado
O
sagrado é a experiência da presença
de uma potência sobrenatural que habita algum ser – planta, animal, humano,
coisas, ventos, águas, fogo.
A sacralidade introduz uma ruptura
entre natural e sobrenatural, mesmo que os seres sagrados sejam naturais: é sobrenatural a força ou potência para realizar aquilo que os
humanos julgam impossível contando apenas com as forças e capacidades humanas.
Assim, por exemplo, em quase todas as culturas, um guerreiro cuja força,
destreza e invencibilidade são espantosas é considerado habitado por uma
potência sagrada. Um animal feroz, astuto, veloz e invencível também é assim
considerado. Por sua forma e ação misteriosas, benévolas e malévolas, o fogo é
um dos principais entes sagrados. Em regiões desérticas, a sacralização
concentra-se nas águas, raras e necessárias.
Sagrado é, pois, a qualidade excepcional que um ser possui e que o separa
e distingue de todos os outros, embora, em muitas culturas, todos os seres possuam algo sagrado pelo que se diferenciam uns dos outros. O sagrado pode suscitar
devoção e amor, repulsa e ódio. Esses sentimentos suscitam um outro: o
respeito feito de temor. Nascem, aqui, o sentimento religioso e a experiência
da religião.
A religião
A religião é um vínculo. Quais as
partes vinculadas? O
mundo profano e o mundo sagrado, isto é, a natureza e as
divindades que habitam a natureza.
• religião: Palavra vinda do
latim religio, formada pelo prefixo ré ("outra vez, de novo") e o verbo Ligare
("ligar, unir, vincular").
A religião como narrativa da origem
A narrativa sagrada é a história sagrada, que os gregos chamavam de mito. Este não é uma fabulação ilusória,
uma fantasia sem consciência, mas a maneira pela qual uma sociedade narra para
si mesma o seu começo e o de toda a realidade. Só tardiamente, quando surgiu a
filosofia e, depois dela, a teologia, a razão exigiria que os deuses não
fossem apenas imortais, mas também eternos, sem começo e sem fim. Antes, porém,
da filosofia e da teologia, a religião narrava teogonias (do grego theos, "deus";
gonia, "geração"), isto é, a geração ou o nascimento dos
deuses, semideuses e heróis.
A história sagrada ou mito narra como e por que a ordem do mundo existe
e como e por que foi doada aos humanos pelos deuses. Assim, além de ser uma
teogonia, a história sagrada é uma cosmogonia (do grego kósmos, "mundo",
e gonia, "geração"): narra o nascimento, a finalidade e o
perecimento de todos os seres sob a ação dos deuses.
Embora a narrativa sagrada
seja uma explicação para a ordem natural e
humana, ela não se dirige ao intelecto dos crentes, mas ao coração deles.
Desperta emoções e sentimentos – admiração, espanto, medo, esperança, amor,
ódio.
Porque se dirige às paixões do crente, a religião lhe pede uma só coisa: fé, ou
seja, a confiança, adesão plena ao que lhe é manifestado como ação da divindade.
A tentativa para transformar a religião em saber racional chama-se teologia.
Ritos
O rito é o conjunto de cerimônias em que gestos, palavras, objetos,
pessoas e emoções determinados adquirem o poder misterioso de presentificar o
laço entre os humanos e a divindade. Para agradecer dons e benefícios,
suplicar novos dons e benefícios, lembrar a bondade dos deuses ou exorcizar sua
cólera, as cerimônias ritualísticas são de grande variedade.
Atos, gestos, palavras, objetos devem ser sempre os mesmos, porque
foram, na primeira vez, consagrados pelo próprio deus. O rito é a rememoração perene do que aconteceu numa primeira vez e
que volta a acontecer, graças ao ritual que abole a distância entre o passado e
o presente.
Os objetos simbólicos
A religião não sacraliza apenas o espaço e o tempo, mas também seres e
objetos do mundo, que se tornam símbolos de algum fato religioso.
Os seres e objetos simbólicos são retirados de seu lugar costumeiro, assumindo um sentido
novo para toda a comunidade – protetor, perseguidor, benfeitor, ameaçador.
Sobre esse ser ou objeto recai a noção de tabu.
• tabu: Palavra polinésia que significa
"intocável": algo que não pode ser tocado
nem manipulado por ninguém que não esteja religiosamente autorizado para isso.
Manifestação e revelação
Há religiões em que os deuses se manifestam: surgem diante dos
humanos em beleza, esplendor, perfeição e poder e os levam a ver uma outra
realidade, escondida sob a realidade cotidiana, levando um humano ao seu mundo, desvenda-lhe a
verdade e o ilumina com sua luz.
Há religiões em que o deus revela verdades aos humanos sem fazê-los
sair de seu mundo. Podem ter sonhos e visões, mas o fundamental é ouvir o que a
divindade lhes diz.
A lei divina
A vontade divina pode
tornar-se parcialmente conhecida dos humanos na forma de leis: decretos,
mandamentos, ordenamentos, comandos emanados da divindade.
Há religiões, porém, em que os deuses manifestam sua lei
diretamente, sem recorrer a intermediários. São religiões da iluminação
individual e do êxtase místico, como é o caso da maioria das
religiões orientais, que exigem, para a iluminação e o êxtase, uma educação
especial do intelecto e da vontade dos adeptos.
Frequentemente, profetas e videntes entram em transe para receber a
revelação, mas a recebem não porque tenham sido educados para isso, e sim
porque a divindade os escolheu para manifestar-se neles.
A vida apôs a morte
O sentimento religioso e a
experiência da religião são inseparáveis da percepção de nossa
mortalidade e da crença em nossa imortalidade. Toda religião, portanto, explica
não só a origem da ordem do mundo natural, mas também a dos seres humanos e
lhes ensina por que são mortais e o que podem ou devem esperar após a morte.
O bem e o mal
As religiões ordenam a realidade segundo dois princípios fundamentais: o
bem e o mal (ou a luz e a treva, o puro e o impuro).
Nesse aspecto, há três tipos de religiões: as politeístas, nas quais há
inúmeros deuses, alguns bons, outros maus, ou até mesmo deuses que podem ser
ora bons, ora maus; as dualistas, em que a dualidade do bem e do mal
está encarnada e figurada em duas divindades antagônicas que não cessam de
combater-se; e as monoteístas, em que o mesmo deus é tanto bom quanto
mau, ou, como no caso do judaísmo, do cristianismo e do islamismo, a divindade
é o bem, e o mal provém de entidades demoníacas, inferiores à divindade e em
luta contra ela.
Religião no dicionário filosófico
As diferentes definições até hoje
feitas de religião podem ser classificadas com base nos dois problemas
fundamentais a que correspondem, a saber: I. Com base no problema da origem da
religião, que na realidade é o problema do tipo de validade da religião; II.
Com base no problema da função atribuída à religião, ou seja, o caráter
específico da garantia que ela oferece à salvação do homem.
Como acontece também em outros casos, o
problema da origem consiste na realidade em saber que tipo de validade se
pretende atribuir à religião. É possível distinguir três soluções para este problema, a saber: I. a doutrina da origem divina da religião; II. a doutrina da
origem política; III. a doutrina da origem humana da religião.
I. A doutrina da origem divina expressa o
reconhecimento do valor absoluto (ou infinito) da religião. É
óbvio que a pretensão de ter origem divina ou sobrenatural é intrínseca em
qualquer religião, já que todas elas afirmam ter como fundamento uma revelação
originária que garante sua verdade ou consideram as crenças e as instituições
com que se identificam continuamente confirmadas por testemunhos sobrenaturais,
o que é o mesmo. Portanto, do ponto de vista da filosofia, o reconhecimento da
origem divina ou do valor absoluto da religião concretizasse na tese de que a
religião é revelação.
II. A doutrina da origem política reduz
a religião a um estratagema político: portanto, anula seu valor intrínseco. O primeiro a
defender essa teoria foi Crítias, um dos trinta tiranos de Atenas. Segundo ele,
"os antigos legisladores inventaram a divindade como uma espécie de
inspetor das ações humanas, boas ou más, a fim de que ninguém ofendesse ou
traísse seu próximo, por medo da vingança dos deuses".
III. A doutrina da origem humana
considera a religião como formação humana, cujas raízes estão na
situação do homem no mundo. Hobbes foi o primeiro a atribuir-lhe origem
prática; Hobbes afirmava que a principal causa do aparecimento da religião é o
temor que nasce da incerteza do futuro: "Por ser inegável que existem
causas para todas as coisas que existem ou existirão, é impossível, para o
homem que tenta prevenir-se contra os males que teme e obter os bens que
deseja, deixar de viver em contínua preocupação com o porvir, de tal maneira
que todos os homens, sobretudo os mais previdentes, vivem num estado semelhante
ao de Prometeu." É desse estado de temor, bem como da esperança de
garantir os bens de que necessita e do desejo de atingir um conhecimento
completo do mundo, que, segundo Hobbes, nasce a religião. Doutrina análoga, mas
exposta de maneira mais pormenorizada, foi reapresentada por Hume. A religião
não surge da contemplação, mas do interesse do homem pelos acontecimentos da
vida e, portanto, das esperanças e dos temores incessantes que o agitam.
Suspenso entre a vida e morte, entre a saúde e a doença, entre a abundância e a
privação, o homem atribui a causas secretas e desconhecidas, os bens de que
frui e os males pelos quais é continuamente ameaçado. Voltaire expunha da
seguinte maneira esse mesmo conceito: "É natural que um povo, assustado
com o trovão, afligido pela perda de suas colheitas, maltratado pelo povo
vizinho, sentindo todos os dias a sua fraqueza, sentindo por todos os lados um
poder invisível, tenha finalmente dito: 'Há algum ser superior a nós que nos
faz bem e mal'".
Algumas Filosofias orientais se tornaram religiões
Pensadores era toda a Ásia também questionavam a sabedoria convencional. A revolução
política na China de 771 a 481 a.C. levou a um conjunto de filosofias que estavam menos
preocupadas com a natureza do universo do que com a melhor forma de organizar
uma sociedade justa, fornecendo diretrizes morais para os indivíduos – e, durante o processo, investigando o que constitui uma
vida "virtuosa". As chamadas "Cem Escolas de Pensamento"
floresceram nesse período, e as mais significativas entre elas foram o
confucionismo e o taoísmo – ambas continuaram a dominar a filosofia chinesa até
o século XX.
No sul da China, surgiu um
filósofo igualmente influente; Sidarta Gautama, conhecido depois como
Buda. A partir de seus ensinamentos na índia setentrional, por volta de 500
a.C., sua filosofia espalhou-se pelo subcontinente e por grande parte da Ásia
meridional, onde ainda hoje é amplamente praticada.
LAO – TSÉ
No século VI a.C., a China
avançou para um estado de guerra
interna quando o governo da dinastia Chou desintegrou-se. Essa mudança criou,
dentro das cortes, uma nova classe social de administradores e magistrados,
encarregados de planejar estratégias para governar de maneira mais eficaz. O
amplo conjunto de ideias criadas por esses
funcionários tornou-se conhecido como as Cem Escolas de Pensamento.
Isso coincidiu com o surgimento da filosofia na Grécia, com a qual se partilhou de algumas preocupações, como buscar
estabilidade num mundo em constante mudança e alternativas ao que anteriormente
fora determinado pela religião. Mas a filosofia chinesa evoluiu a partir da prática política e, portanto, estava preocupada com moralidade e
ética, em vez da natureza do cosmos.
Uma
das ideias mais importantes dessa época veio do Tão
Te Ching (O livro do caminho e
da virtude), atribuído a Lao-Tsé. Foi uma das primeiras tentativas de propor
uma teoria de governo justo, baseada no te
(virtude), que poderia ser encontrado ao seguir o tao (caminho).
É a base da filosofia conhecida como taoismo.
Ciclos
de mudança
A fim
de entender o conceito de tao é
necessário saber como os antigos chineses viam o mundo em mutação. Para eles,
as mudanças são cíclicas, movendo-se continuamente de um estado para outro – da noite para o dia, do
verão para o inverno, e assim por diante. Os diferentes estados não eram
considerados opostos, mas relacionados, um surgindo do outro. Tais estados
também possuiriam propriedades complementares que juntas compõem um todo.
Com isso, Lao-Tsé
não prega o "não fazer" mas, sim, o agir de acordo com a natureza –
espontânea e intuitivamente. Isso acarreta agir sem desejo, ambição ou
submissão às convenções sociais.
SIDARTA GAUTAMA
Sidarta Gautama, que
ficaria conhecido como Buda, "o iluminado", viveu na índia num período em que os relatos religiosos e mitológicos
acerca do mundo sofriam questionamentos. Na Grécia, pensadores como Pitágoras
investigavam o cosmos utilizando a razão; na China, Lao-Tsé e Confúcio
desvinculavam a ótica do dogma religioso. O bramanismo, religião que evoluíra
do vedismo – a antiga crença baseada nos textos sagrados dos Vedas –, era a fé
dominante no subcontinente indiano no século VI a.C. Sidarta Gautama foi o
primeiro a desafiar tal sistema com seu raciocínio filosófico.
Embora reverenciado pelos
budistas por sua sabedoria, Gautama não era um messias nem um profeta. Não
atuava como ponte entre Deus e o homem.
Chegou a suas ideias por meio da reflexão, e não da revelação
divina, e é isso que marca o budismo como filosofia tanto quanto (ou talvez
mais que) uma religião. Sua busca foi filosófica – para descobrir verdades – e
ele sustentava que as verdades que
propunha estavam disponíveis para todos pelo poder da razão. Como a maioria dos filósofos orientais,
não se interessou pelas questões irrespondíveis da metafísica que tanto preocupavam
os gregos. Por lidar com entidades além da nossa experiência, esse tipo de
investigação lhe parecia especulação sem sentido. Em vez
disso, ele se envolveu com a questão do objetivo da vida – o que, por sua vez,
envolvia investigar os conceitos de felicidade,
virtude e vida "correta".
O caminho do meio
No começo da vida. Gautama desfrutou da luxúria e, dizem, de todos os
prazeres sensuais. No entanto, compreendeu que isso não lhe bastava para trazer
a verdadeira felicidade. Consciente acerca ao sofrimento no mundo, percebeu que
isso se devia em grande parte à doença, à velhice e à morte – e ao fato de que
faltava às pessoas aquilo de que elas precisavam.
Gautama considerava a
experiência do ascetismo extremo (austeridade e abstinência) igualmente
insatisfatória, incapaz de aproximá-lo do entendimento sobre como alcançar a
felicidade.
Chegou à conclusão, então, de que devia haver um "caminho do
meio" entre a autoindulgência (disposição para se perdoar dos erros cometidos) e a automortificação (de se fazer cair e se abater). Esse caminho do meio, ele
acreditava, levaria à felicidade verdadeira, ou "iluminação" Para
encontrá-la, Gautama aplicou a razão às próprias experiências.
O sofrimento, ele percebeu é universal. Parte integral da existência, é causado pela
frustração dos nossos desejos e expectativas. Tais desejos ele chamou de
"apegos", os quais incluem não apenas os desejos sensuais e as
ambições mundanas, mas o nosso mais básico instinto pela autopreservação.
Satisfazei tais apegos, ele concluiu, poderia trazei gratificação a curto prazo, mas não a felicidade no sentido de contentamento e paz de espírito.
O "não eu"
Para Gautama, egoísmo é autocentrismo e auto-apego – o domínio do
que hoje chamaríamos de "ego" Para nos livrar dos apegos que causam
dor, portanto, não basta apenas renunciar às coisas que desejamos. Devemos
superar nosso vínculo com aquilo que deseja: o "eu". Mas como isso pode ser
conseguido? A resposta, para Gautama, é que o mundo do ego é
ilusório. Ele argumentou que nada no universo origina a si mesmo, porque tudo
resulta de alguma ação prévia. Cada um de nós seria apenas uma parte
transitória desse processo eterno. Então, na realidade, não há "eu"
que não seja parte de um todo maior – o "não eu". O sofrimento
resulta de nosso fracasso em reconhecer isso. O que não significa que devemos rejeitar
nossa existência ou identidade pessoal. Ao contrário, devemos entendê-las como
são, ou seja, transitórias e sem substância. Entender o significado de ser uma
parte constituinte de um "não eu" eterno, em vez de apegar-se à noção
de ser um "eu" único, é a chave para abandonar aquele apego e para encontrar um alívio ao sofrimento.
O raciocínio de Gautama das causas do sofrimento até o caminho para
conseguir a felicidade - é codificado nos ensinamentos budistas das Quatro
Nobres Verdades: o sofrimento é universal; o desejo é a causa do sofrimento; o
sofrimento pode ser evitado ao eliminar-se o desejo, seguir o Caminho Óctuplo
elimina o desejo.
Nirvana
Gautama considerava, como o
objetivo final da vida na Terra, o fim do ciclo de sofrimento (nascimento,
morte e renascimento) no qual nascemos. Ao seguir o Caminho Óctuplo, o homem poderia superar seu ego, viver uma vida livre do
sofrimento e, por meio da iluminação, evitar a dor do renascimento em outra
vida de sofrimento. Ele compreenderia seu lugar no "não eu" e se tornaria uno com o eterno. Atingiria o estado do nirvana –
termo traduzido diversamente como "não apego”, “não ser", ou
literalmente "apagar-se" (como uma vela).
No bramanismo da época de Gautama – e na religião hindu que o sucedeu –, o nirvana
era entendido como tornar-se uno com Deus. Mas Gautama cuidadosamente evitou
qualquer menção a uma deidade ou a um propósito final para a vida. Ele descreveu
o nirvana apenas como “não nascido, não originado, não criado e não
formado", transcendendo qualquer experiência sensorial. E o estado
eterno e imutável de não ser e, assim, a libertação final do sofrimento da existência.
O pensamento budista também encontrou ecos nas ideias de filósofos ocidentais posteriores, como
no conceito do "eu" de Hume e na concepção da condição humana de
Schopenhauer. Apenas no século XX o budismo exerceu influência direta no
pensamento ocidental Desde então, mais e mais ocidentais voltam-se para tal
legado como um guia de como viver.
CONFÚCIO
De 770 a 220 a. C., a China
viveu uma era de grande desenvolvimento cultural. As filosofias surgidas nessa época ficaram conhecidas como as Cem Escolas de Pensamento. Por
volta do século VI a.C. a dinastia Chou entrou em declínio, saindo da
estabilidade do Período da Primavera e Outono para o chamado Período dos Reinos
Combatentes. Foi nesse contexto que nasceu Kong Fuzi, o mestre Kong, ou
Confúcio. Como outros filósofos da época, como os gregos Tales, Pitágoras e
Heráclito, Confúcio buscou o que poderia haver de constante num mundo de
mudanças. Para ele, isso equivalia a valores morais que capacitassem os
governantes a atuar de forma justa.
Os Analectos
Confúcio fazia parte de uma nova classe de eruditos que atuavam corno
conselheiros nas cortes. Essa elite de servidores públicos alcançara seu status
não por herança, mas por mérito.
A grande fonte disponível para os ensinamentos de Confúcio está nos Analectos, coleção
de fragmentos de seus textos e frases compilada por discípulos. Muitas passagens dos Analectos
se assemelham a um livro de etiqueta. Mas considerar a obra um mero tratado social ou político é não perceber seu ponto central: no
cerne, trata-se de um amplo sistema ético.
A vida virtuosa
Confúcio manteve silêncio em relação aos deuses, mas frequentemente se
referiu ao tian, ou Céu, como a fonte da ordem moral. De acordo com
os Analectos, nós, humanos, somos agentes escolhidos pelo Céu para
personificar sua vontade e para unir o mundo com a ordem moral – uma ideia em
sintonia com o pensamento tradicional chinês. No entanto, o que rompe com a
tradição é a crença de Confúcio de que a virtude (de) não é um presente do Céu para as classes governantes, mas pode
ser cultivada – por qualquer indivíduo. Tendo ele mesmo sido elevado a ministro
da corte Chou, Confúcio acreditava que era dever das classes médias, e dos
governantes, empenhar-se para agir com virtude e benevolência (ren) a fim de
alcançar uma sociedade justa e estável.
Confúcio argumentou que o homem virtuoso não é o que está no topo da
hierarquia social, mas, sim, aquele que compreende seu lugar dentro dessa
hierarquia e o aceita. Para definir os vários meios de atuação em conformidade
com de, ele se volta para valores
tradicionais chineses: zhong (fidelidade), xiao (piedade filial),
li (rituais apropriados) e shu (reciprocidade). A pessoa que
observasse sinceramente esses valores era chamada por Confúcio de junzi – o cavalheiro, no sentido de homem de
virtude, estudioso e praticante das boas maneiras.
Ele também pregava o poder da benevolência, argumentando que governar pelo
exemplo, e não pelo medo, inspiraria as pessoas a seguir uma vida virtuosa. O
mesmo princípio, ele acreditava, deveria governar os relacionamentos pessoais.
Fidelidade e ritual
Em sua análise sobre os relacionamentos, Confúcio se valeu de zhong – a virtude da fidelidade – como
princípio-guia. Inicialmente, ele ressalta a importância da fidelidade de um
ministro a seu soberano. Então, mostra que uma relação similar existe entre pai
e filho, marido e esposa, irmão mais velho e irmão mais novo e entre amigos. A
ordem na qual ele dispõe isso é significante: primeiro, a fidelidade política,
depois, à família e ao clã; e, por último, a amigos e estranhos.
O aspecto de "saber o
seu lugar" é exemplificado pelo xiao,
a piedade filial, que para Confúcio era muito mais do que apenas respeito
aos pais e aos mais velhos. Trata-se do que há de mais próximo de ideias
religiosas dentro dos Analectos, porque xiao está conectado com a
tradição chinesa do culto aos ancestrais. Acima de tudo, xiao reforça a
relação entre inferior e superior, ponto central do pensamento confucionista.
É na insistência no li,
os rituais, que Confúcio se revelou mais conservador. Li não se refere simplesmente a ritos como o culto aos ancestrais,
mas também às normas que sustentam cada aspecto da vida chinesa contemporânea.
Estas envolvem desde cerimônias como casamentos, funerais e sacrifícios até a
etiqueta para receber
convidados e oferecei presentes, além de simples gestos
cotidianos de cortesia.
Sinceridade
Para Confúcio, a sociedade podia ser modificada pelo exemplo. Ele escreveu:
"A sinceridade torna-se visível. Sendo visível, ela se torna manifesta.
Sendo manifesta, torna-se brilhante. Afetando outros, eles são modificados por
ela. Modificados por ela, eles são transformados. Apenas aquele que é possuído
pela mais completa sinceridade existente sob o Céu pode transformar".
Ele assume a perspectiva de que se pode aprender a se tornar um homem
superior; primeiramente, reconhecendo o que não se
sabe (uma ideia que teve eco um século depois com o filósofo grego Sócrates,
que afirmava que sua sabedoria estava em aceitar que nada sabia); depois,
observando outras pessoas: se elas mostram virtude, tente ser igual;
se são inferiores, seja um guia para elas.
Reflexo
A noção de zhong como consideração pelos outros também está
ligada ao último dos valores confucionistas ligados a de: shu, reciprocidade, ou “reflexo de si", que deve governar nossas ações em relação aos outros. A
chamada Regra de Ouro, "faça como desejaria que fizessem a
você", parece no confucionismo como negativa: "o que você não deseja
para si mesmo, não faça aos
outros". A diferença é sutil, mas crucial: Confúcio não prescreve o que
fazer, apenas o que não fazer, enfatizando a abstenção, em vez da ação. Isso
implica modéstia e humildade, valores mantidos em alta consideração na
sociedade chinesa e que, para Confúcio, expressam nossa verdadeira natureza.
Confucionismo
Apesar da queda da China
imperial em 1911, as ideias de Confúcio
continuaram como base de muitas das convenções morais e sociais chinesas, ainda
que desaprovadas oficialmente. Em anos recentes, a República Popular da China
tem demonstrado renovado interesse em Confúcio, integrando suas ideias com o
pensamento moderno chinês e a filosofia ocidental num híbrido conhecido corno
"novo confucionismo".
Referências:
CHAUI, Marilena. Filosofia: Novo Ensino Médio, Volume único. São Paulo: Ática, 2010, p. 172-183.
BUCKINGHAM, Will; BURNHAM, Douglas. O livro da Filosofia. São Paulo: Globo, 2011, p. 24-25 e p. 30-39.
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