quinta-feira, 10 de julho de 2014

A FILOSOFIA DE WITTGENSTEIN

Ludwig Josef Johann Wittgenstein


SOBRE AS CRENÇAS RELIGIOSAS

Para o filosofo Wittgenstein, crentes e descrentes estão em planos completamente distintos, e não divergem em opiniões, como pressupõe a visão factual, mas em formas de vida. Assim eles estariam não apenas contradizendo as palavras um do outro, mas estariam em mundos diferentes, interpretando a vida e comportando-se de diferentes maneiras, por partirem de regras diferentes.
A visão factual pode ser entendida como a visão que sustenta que as crenças religiosas dizem respeito a estados de coisas ou fatos do mundo e as asserções religiosas podem de alguma forma ser epistemicamente justificadas, bastando para isso que os fatos asseridos por elas sejam o caso.
Os defensores da religião adeptos da visão factual argumentarão que as crenças religiosas são, na medida do possível, racionais, de alguma forma correspondem com o mundo e que as sentenças são significativas; por outro lado os críticos da religião dirão que as crenças religiosas não são justificadas racionalmente e/ou as sentenças religiosas são piores que falsas, pois não fazem nem mesmo sentido.
Na história da filosofia três tipos de provas são recorrentes: físico-teológica, cosmológica e a ontológica.
1. Argumento físico-teológico
A prova físico-teológica é uma prova a posteriori, pois, parte de premissas baseadas na experiência que temos no mundo dos sentidos, neste caso, experiência de um mundo ordenado, complexo e harmonioso.
2. Argumento cosmológico
Kant definiu o argumento cosmológico como aquele que põe seu fundamento empiricamente, a partir de uma experiência indeterminada. Mais claramente, podemos definir este tipo de argumento como aquele que parte de alguns fatos contingentes do universo, concluindo que alguma coisa fora do universo é a causa, ou explicação, para existência deles. Esta explicação gera ideias como: as coisas só se movem se forem por um primeiro motor, logo Deus é este motor, que se encontra fora deste plano (universo) movido (funcionando) devido a sua existência.
A prova cosmológica se aproxima da físico-teológica, pois ambas partem de argumentações a posteriori.
3. Argumento ontológico
Outro tipo de argumentação, agora a priori, ou seja, partindo do mero conceito de Deus. Tradicionalmente a demonstração de Deus mediante simples conceitos, sob a abstração de toda experiência, é chamada prova ontológica. Um exemplo ontológico seria o argumento do filosofo Descartes, que considera Deus um ser soberanamente perfeito, então ele deve possuir todas as perfeições, inclusive a perfeição de existir. A ideia de Deus nos impõe a conclusão de sua existência, da mesma forma que a ideia de um triângulo impõe a conclusão de que a soma de seus ângulos seja 180°.

DEUS EXISTE OU NÃO?

No lado teísta da filosofia analítica contemporânea, o grande nome da visão factual é Richard Swinburne. Deveríamos acreditar naqueles que dizem que “Deus existe”? Swinburne responde: “para responder a esta pergunta temos de estudar os critérios utilizados pelos cientistas, historiadores e outros, quando apresentam suas teorias sobre as causas daquilo que observam”.
A pressuposição de que só é possível uma única descrição correta do mundo, “onde Deus ou existe ou não existe”, onde um juízo final ocorre ou não ocorre, em suma, onde se têm evidencias para as crenças religiosas ou não se têm - não pode ser aceita por Wittgenstein. Para isso, teríamos que ter a possibilidade de fundamentar universalmente todas as nossas crenças e, segundo Wittgenstein, isso não é possível. Não existe possibilidade de um fundamento último e universal para justificação de nossas crenças. O que existe é um sistema de referência, onde aceitamos algumas crenças fundamentais sem nenhum tipo de prova. Crescemos dentro de um enquadramento de crenças, aprendendo e absorvendo esse sistema, aceitando sem reflexão. Dentro desses sistemas de referência, existem regras que não são colocadas em dúvida, pois elas moldam nossa forma de pensar e agir. Partimos delas para agirmos no mundo, partimos delas para desenvolver argumentos.
Crentes religiosos e descrentes sustentam crenças diferentes sobre a ocorrência de estados de coisas, mas não estão disputando opiniões ou contradizendo um ao outro.
Contrapondo a visão factual, que este conceito não deve ser tratado em analogia com outros conceitos dos quais predicamos a existência, ou seja, Deus não é um objeto entre objetos. Depois disso verificaremos que a proposição “Deus existe” e a maioria das proposições religiosas, não são hipóteses ou asserções factuais, mas sim proposições que revelam as regras e as bases onde toda uma cosmovisão se fundamenta, não sendo elas mesmas fundamentadas em nada além dos próprios costumes dos participantes da comunidade linguística. Tais proposições, assim que formuladas, são aceitas prontamente pelos participantes da cosmovisão, sendo imunes aos ataques céticos, mesmo que não possuam evidências em seu favor. Tentar sustentá-las em evidências ou abandoná-las por falta de evidências é não compreender seu status lógico/gramatical.

GRAMÁTICA DO CONCEITO “DEUS”

As regras de um jogo constituem o jogo e possibilitam os movimentos que ocorrem dentro dele, também a gramática constitui uma área da linguagem e torna possíveis os movimentos linguísticos que ocorrem dentro dela. Nesse sentido, Wittgenstein diz: Palavras e peças de xadrez são análogos; saber como usar uma palavra é como saber movimentar uma peça de xadrez. [...] “Como a palavra é usada?” e “Qual a gramática da palavra?” Eu tomo-as como sendo a mesma questão.

Assim, também a gramática prescreve/permite ou proíbe certos movimentos linguísticos, e também revela parte essencial dos conceitos linguísticos, definindo-os ao estabelecer as regras de uso dos mesmos.
Como nos jogos existem, por um lado às regras, e por outro os lances conforme as regras, nas nossas práticas linguísticas existem também regras (proposições gramaticais) e lances (proposições empíricas), que, para serem “verdadeiros” precisam se fundamentar na gramática. As proposições gramaticais não são candidatas à verdade e falsidade, então não podemos dizer delas que são “verdadeiras”. Por isso Wittgenstein nos diz: “Como ocorre com todo o metafísico, a harmonia entre o pensamento e a realidade encontra-se na gramática da linguagem”.
Tomar a existência de Deus em analogia com a existência de outras entidades e objetos é o primeiro erro que deve ser dissipado. Na visão factual, a existência de Deus é tratada como uma hipótese a ser verificada, onde a justificação da crença se dará pelas evidências apresentadas em seu favor. Assim, em jargão wittgensteiniano, podemos dizer que a gramática superficial da palavra “Deus” sugere que nos referimos a ele de maneira análoga a que nos referimos a alguma pessoa, ou a algum tipo particular de objeto físico, mas a gramática profunda revela grande diferença.
O crente religioso não está preparado para dizer que Deus talvez não exista. Não faz sentido dentro do discurso religioso essa possibilidade. Dessa forma, a proposição “Deus não é um objeto equivalente aos objetos do mundo”, é uma proposição gramatical, ou seja, uma proposição que orienta o que faz sentido os adeptos do jogo religioso dizer e fazer em relação com o conceito “Deus”.
Não é possível uma validação total de nossas praticas e crenças, nossos jogos-de-linguagem não são teorias ontológicas ou metafísicas que explicam de forma exata o mundo real. Nós não temos uma relação epistemológica com nossa visão de mundo, mas, como diz Wittgenstein, ela é um “quadro de referências herdado” e pode ser aprendida “puramente pela prática, sem aprender regras explícitas”. Dessa forma toda a verificação, toda confirmação e não confirmação de uma hipótese acontece já dentro de um sistema de referência. Tais sistemas fornecem os limites dentro dos quais fazemos perguntas, tiramos conclusões, investigamos as hipóteses, etc.

RECONHECENDO A REALIDADE

Se pensarmos que a questão de Deus é uma hipótese empírica, como faz a visão factual, pressupomos que a discussão do assunto deve partir de um quadro conceitual similar ao dos objetos físicos particulares. Mas questionar a realidade de Deus, não é como questionar se este ou aquele objeto é real, mas é questionar um tipo de realidade como um todo. Crer em Deus não é só colocar um ente a mais no caderno de seres existentes, mas é configurar toda a realidade de forma religiosa.
A cosmovisão é herdada de uma prática estabelecida, é o eixo em torno do qual gira um corpo. Este eixo não está fixo no sentido de haver alguma coisa a segurá-lo, mas o movimento em torno dele determina a sua mobilidade.
Desde que nascemos somos ensinados e submetidos em várias atividades. Aprendemos a nos comportar de certas maneiras, investigar, inquirir, etc. São essas ações e práticas que são o fundamento ou justificação da visão de mundo. Tais atividades, no entanto, não são fundamentadas, “não são racionais ou (irracionais). Apenas estão aí. Tal como nossa vida”. Assim, existe inicialmente uma prática estabelecida, e somente depois, talvez quando filosofamos, é que descobrimos as regras básicas dessa prática na qual estamos imersos. Crer, do ponto de vista religioso, não é só um comprometimento ontológico com um estado de coisas, mas um comprometimento com um viver de certa maneira.

SOLUCIONANDO OS ENGANOS SOBRE O CONCEITO “DEUS”

Grande parte das conclusões que chegamos relativas à filosofia da religião de Wittgenstein deriva-se da analogia que fizemos entre os conceitos “Deus” e “objeto”. A partir dessa analogia, argumentamos que as proposições religiosas são proposições fulcrais, isto é, proposições que aparentam ser empíricas, mas na verdade sua função é estabelecer as regras e as bases onde todo sistema-de-referência se fundamenta, não sendo elas mesmas fundamentadas em evidências, mas aceitas na vida prática de uma comunidade linguística. A visão factual revelaria assim certa confusão, ao tratar as proposições religiosas como factuais, empíricas, quando na verdade são proposições assumidas que revelam os fulcros onde toda uma cosmovisão gira. Como Wittgenstein sugere, obtivemos e mantemos essas crenças reveladas pelas proposições fulcrais não por que nos convencemos que são epistemicamente justificadas, mas apenas por ser um quadro de referências.
É impossível saber quais evidências comprovariam a existência ou inexistência de Deus ou de objetos físicos em geral. Afirmar “objetos não existem”, causa muito mais estranheza do que dizer “Deus não existe”. Quem pronuncia a última, no máximo pode ser acusado de impiedade ou ateísmo, mas, quem pronuncia a primeira de forma consciente, pode ser acusado de loucura. Além disso, alguém que perca a crença na existência de Deus não terá sua habilidade de agir e pensar sobre o mundo completamente alterada, diferente daquele que perder a crença na existência de objetos.
No caso de abandonarmos o pressuposto “objetos existem”, nossa maneira de pensar e atuar sobre o mundo seria alterada de forma mais radical do que se abandonarmos o pressuposto “Deus existe”, e assim concedemos uma significante desanalogia entre os conceitos “Deus” e “objeto”. Enquanto a proposição “existem objetos físicos” tem o potencial de sustentar um número maior de crenças e práticas, independente de crermos em Deus ou não, a proposição “Deus existe” sustenta um número significante de crenças, mas somente no contexto religioso. Podemos concluir, seguindo Wittgenstein, que aceitamos que “objetos físicos” existem ou que “Deus existe” somente depois que a vida forçou estes conceitos sobre nós, sendo que a vida força sobre nós muito mais o conceito de “objetos físicos”, do que o conceito “Deus”.
Ser percebido pelos sentidos é uma regra que não se aplica à existência de Deus, e, pela análise gramatical que fizemos isso deve ser assim, ao menos no que diz respeito ao uso mais comum da palavra Deus.

SOBRE OS MILAGRES

Pode-se definir o milagre, de maneira geral, como fenômenos extraordinários e singulares, perturbações da ordem natural, causados pela intervenção de Deus e cujo propósito é provar e confirmar sua palavra.
De acordo com Wittgenstein, o milagroso é relacionado com fenômenos extraordinários, mas o fenômeno não interessa muito em si mesmo tanto quanto a reação dos observadores. Ao olhar um fato, os cientistas, grosso modo, buscam agrupá-lo junto com outros fatos em um sistema explicativo científico. Desse ponto de vista, não importa o que aconteça, por mais maravilhoso e extraordinário que seja, segundo Wittgenstein não será um milagre. A pessoa que observa o milagre (ou ouve o relato de algum) deve ser impressionada de uma forma que a faça viver religiosamente, ou seja, que a faça, a partir da contemplação do evento, adotar novas regras para condução da vida.
Não ter explicação científica não deve ser a essência do milagroso, pois pode ser que isso seja falso - o experimento foi mal feito - ou provisório - nossas teorias ainda não explicam, mas não existe absolutamente nada que impeça uma possível explicação científica no futuro. A essência do milagre é a maneira como ele me impressiona. Ver o evento como um gesto feito por Deus é uma possibilidade que se manifesta na forma como o evento impressiona as pessoas e na posterior adoção de novas regras para conduzir a vida. Vemos assim que o milagre não é uma prova da legitimidade da religião, mas o reconhecimento de um milagre já faz parte de uma visão religiosa do mundo. O milagre não prova a existência de Deus, mas é produto de uma cosmovisão anterior que influencia a interpretação dos fatos.
Concluindo, poderíamos dizer que a religião não pode provar a ocorrência de um milagre, pois ela não tem condições de dizer que existem coisas que a ciência não pode explicar; por outro lado, como diz Wittgenstein “é absurdo dizer que a ciência provou que não há milagres". A verdade é que o modo científico de ver um fato não é vê-lo como um milagre. O crente e o descrente têm diferentes visões de mundo. Eles não possuem um sistema conceitual comum contra o qual a verdade e a falsidade possam ser distinguidas e critérios de prova estabelecidos, por isso não se contradizem. Dessa forma ateus e crentes não divergem em opiniões, mas em formas de vida. Eles estariam não apenas pronunciando palavras diferentes, mas estariam em mundos diferentes: o crente olha para a vida de uma maneira diferente, usa diferentes imagens, tem certos comportamentos diferentes; tudo isso é algo muito mais profundo que uma mera opinião divergente. Tanto no caso de fatos considerados milagrosos quanto no caso dos relatos históricos narrados na bíblia, a interpretação religiosa não é a única possível. Para que tais fatos sejam considerados divinos, é necessária uma cosmovisão religiosa anterior que oriente esta interpretação.

Glossário:

Factual: da ordem do fato.
Cosmovisão: maneira subjetiva de ver e entender o mundo.
Fulcro: ponto de apoio; sustentáculo, base.

Referência:

VANDER MANDELI, Alison. WITTGENSTEIN SOBRE AS CRENÇAS RELIGIOSAS. Universidade Estadual de Londrina, 2012.

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