Ludwig Josef Johann Wittgenstein |
SOBRE AS CRENÇAS RELIGIOSAS
Para
o filosofo Wittgenstein, crentes e descrentes estão em planos completamente
distintos, e não divergem em opiniões, como pressupõe a visão factual, mas
em formas de vida. Assim eles estariam não apenas contradizendo as palavras um
do outro, mas estariam em mundos diferentes, interpretando a vida e
comportando-se de diferentes maneiras, por partirem de regras diferentes.
A
visão factual pode ser entendida
como a visão que sustenta que as crenças religiosas dizem respeito a estados de
coisas ou fatos do mundo e as asserções religiosas podem de alguma forma ser
epistemicamente justificadas, bastando para isso que os fatos asseridos por
elas sejam o caso.
Os
defensores da religião adeptos da visão
factual argumentarão que as crenças religiosas são, na medida do possível,
racionais, de alguma forma correspondem com o mundo e que as sentenças são significativas;
por outro lado os críticos da religião dirão que as crenças religiosas não são
justificadas racionalmente e/ou as sentenças religiosas são piores que falsas,
pois não fazem nem mesmo sentido.
Na
história da filosofia três tipos de provas são recorrentes: físico-teológica,
cosmológica e a ontológica.
1. Argumento físico-teológico
A
prova físico-teológica é uma prova a posteriori, pois, parte de
premissas baseadas na experiência que temos no mundo dos sentidos, neste caso,
experiência de um mundo ordenado, complexo e harmonioso.
2. Argumento cosmológico
Kant
definiu o argumento cosmológico como aquele que põe seu fundamento
empiricamente, a partir de uma experiência indeterminada. Mais claramente,
podemos definir este tipo de argumento como aquele que parte de alguns fatos
contingentes do universo, concluindo que alguma coisa fora do universo é a
causa, ou explicação, para existência deles. Esta explicação gera ideias como:
as coisas só se movem se forem por um primeiro motor, logo Deus é este motor, que
se encontra fora deste plano (universo) movido (funcionando) devido a sua
existência.
A
prova cosmológica se aproxima da físico-teológica, pois ambas partem de argumentações a posteriori.
3. Argumento ontológico
Outro tipo de argumentação, agora a
priori, ou seja, partindo do mero conceito de Deus. Tradicionalmente a
demonstração de Deus mediante simples conceitos, sob a abstração de toda
experiência, é chamada prova ontológica. Um exemplo ontológico seria o argumento do filosofo Descartes, que considera Deus um ser soberanamente
perfeito, então ele deve possuir todas as perfeições, inclusive a perfeição de
existir. A ideia de Deus nos impõe a conclusão de sua existência, da mesma
forma que a ideia de um triângulo impõe a conclusão de que a soma de seus ângulos
seja 180°.
DEUS EXISTE OU NÃO?
No
lado teísta da filosofia analítica contemporânea, o grande nome da visão factual é Richard Swinburne.
Deveríamos acreditar naqueles que dizem que “Deus existe”? Swinburne responde:
“para responder a esta pergunta temos de estudar os critérios utilizados pelos
cientistas, historiadores e outros, quando apresentam suas teorias sobre as
causas daquilo que observam”.
A
pressuposição de que só é possível uma única descrição correta do mundo, “onde
Deus ou existe ou não existe”, onde um juízo final ocorre ou não ocorre, em
suma, onde se têm evidencias para as crenças religiosas ou não se têm - não
pode ser aceita por Wittgenstein. Para isso, teríamos que ter a possibilidade
de fundamentar universalmente todas as nossas crenças e, segundo Wittgenstein,
isso não é possível. Não existe possibilidade de um fundamento último e
universal para justificação de nossas crenças. O que existe é um sistema de
referência, onde aceitamos algumas crenças fundamentais sem nenhum tipo de
prova. Crescemos dentro de um enquadramento de crenças, aprendendo e absorvendo
esse sistema, aceitando sem reflexão. Dentro desses sistemas de referência,
existem regras que não são colocadas em dúvida, pois elas moldam nossa forma de
pensar e agir. Partimos delas para agirmos no mundo, partimos delas para
desenvolver argumentos.
Crentes
religiosos e descrentes sustentam crenças diferentes sobre a ocorrência de
estados de coisas, mas não estão disputando opiniões ou contradizendo um ao outro.
Contrapondo
a visão factual, que este conceito
não deve ser tratado em analogia com outros conceitos dos quais predicamos a
existência, ou seja, Deus não é um objeto entre objetos. Depois disso
verificaremos que a proposição “Deus existe” e a maioria das proposições
religiosas, não são hipóteses ou asserções factuais, mas sim proposições que revelam as regras e as bases onde toda uma cosmovisão se fundamenta, não sendo
elas mesmas fundamentadas em nada além dos próprios costumes dos participantes
da comunidade linguística. Tais proposições, assim que formuladas, são aceitas
prontamente pelos participantes da cosmovisão, sendo imunes aos ataques
céticos, mesmo que não possuam evidências em seu favor. Tentar sustentá-las em
evidências ou abandoná-las por falta de evidências é não compreender seu status
lógico/gramatical.
A GRAMÁTICA DO CONCEITO “DEUS”
As regras de um jogo constituem o jogo
e possibilitam os movimentos que ocorrem dentro dele, também a gramática
constitui uma área da linguagem e torna possíveis os movimentos linguísticos
que ocorrem dentro dela. Nesse sentido, Wittgenstein diz: Palavras e peças de
xadrez são análogos; saber como usar uma palavra é como saber movimentar uma
peça de xadrez. [...] “Como a palavra é usada?” e “Qual a gramática da
palavra?” Eu tomo-as como sendo a mesma questão.
Assim,
também a gramática prescreve/permite ou proíbe certos movimentos
linguísticos, e também revela parte essencial dos conceitos linguísticos,
definindo-os ao estabelecer as regras de uso dos mesmos.
Como
nos jogos existem, por um lado às regras, e por outro os lances conforme as
regras, nas nossas práticas linguísticas existem também regras (proposições
gramaticais) e lances (proposições empíricas), que, para serem
“verdadeiros” precisam se fundamentar na gramática. As proposições gramaticais
não são candidatas à verdade e falsidade, então não podemos dizer delas que são
“verdadeiras”. Por isso Wittgenstein nos diz: “Como ocorre com todo o
metafísico, a harmonia entre o pensamento e a realidade encontra-se na
gramática da linguagem”.
Tomar
a existência de Deus em analogia com a existência de outras entidades e objetos
é o primeiro erro que deve ser dissipado. Na visão factual, a existência de
Deus é tratada como uma hipótese a ser verificada, onde a justificação da
crença se dará pelas evidências apresentadas em seu favor. Assim, em jargão
wittgensteiniano, podemos dizer que a gramática superficial da palavra
“Deus” sugere que nos referimos a ele de maneira análoga a que nos referimos a
alguma pessoa, ou a algum tipo particular de objeto físico, mas a gramática
profunda revela grande diferença.
O
crente religioso não está preparado para dizer que Deus talvez não exista. Não
faz sentido dentro do discurso religioso essa possibilidade. Dessa forma, a
proposição “Deus não é um objeto equivalente aos objetos do mundo”, é uma proposição gramatical, ou seja, uma proposição que orienta o que faz sentido os
adeptos do jogo religioso dizer e fazer em relação com o conceito “Deus”.
Não
é possível uma validação total de nossas praticas e crenças, nossos
jogos-de-linguagem não são teorias ontológicas ou metafísicas que explicam de
forma exata o mundo real. Nós não temos uma relação epistemológica com nossa
visão de mundo, mas, como diz Wittgenstein, ela é um “quadro de referências
herdado” e pode ser aprendida “puramente pela prática, sem aprender regras
explícitas”. Dessa forma toda a verificação, toda confirmação e não confirmação
de uma hipótese acontece já dentro de um sistema de referência. Tais
sistemas fornecem os limites dentro dos quais fazemos perguntas, tiramos
conclusões, investigamos as hipóteses, etc.
RECONHECENDO A REALIDADE
Se
pensarmos que a questão de Deus é uma hipótese empírica, como faz a visão
factual, pressupomos que a discussão do assunto deve partir de um quadro
conceitual similar ao dos objetos físicos particulares. Mas questionar a
realidade de Deus, não é como questionar se este ou aquele objeto é real, mas é
questionar um tipo de realidade como um todo. Crer em Deus não é só colocar um
ente a mais no caderno de seres existentes, mas é configurar toda a realidade
de forma religiosa.
A
cosmovisão é herdada de uma prática estabelecida, é o eixo em torno do qual
gira um corpo. Este eixo não está fixo no sentido de haver alguma coisa a
segurá-lo, mas o movimento em torno dele determina a sua mobilidade.
Desde
que nascemos somos ensinados e submetidos em várias atividades. Aprendemos a
nos comportar de certas maneiras, investigar, inquirir, etc. São essas ações e
práticas que são o fundamento ou justificação da visão de mundo.
Tais atividades, no entanto, não são fundamentadas, “não são racionais ou
(irracionais). Apenas estão aí. Tal como nossa vida”. Assim, existe
inicialmente uma prática estabelecida, e somente depois, talvez quando
filosofamos, é que descobrimos as regras básicas dessa prática na qual estamos
imersos. Crer, do ponto de vista religioso, não é só um comprometimento
ontológico com um estado de coisas, mas um comprometimento com um viver de
certa maneira.
SOLUCIONANDO OS ENGANOS SOBRE O CONCEITO “DEUS”
Grande parte das conclusões que chegamos relativas à filosofia da religião de
Wittgenstein deriva-se da analogia que fizemos entre os conceitos “Deus” e
“objeto”. A partir dessa analogia, argumentamos que as proposições religiosas
são proposições fulcrais, isto é, proposições que aparentam ser
empíricas, mas na verdade sua função é estabelecer as regras e as bases onde
todo sistema-de-referência se fundamenta, não sendo elas mesmas fundamentadas
em evidências, mas aceitas na vida prática de uma comunidade linguística. A visão factual revelaria assim certa confusão,
ao tratar as proposições religiosas como factuais, empíricas, quando na verdade
são proposições assumidas que revelam os fulcros onde toda uma
cosmovisão gira. Como Wittgenstein sugere, obtivemos e mantemos essas crenças
reveladas pelas proposições fulcrais não por que nos convencemos que são
epistemicamente justificadas, mas apenas por ser um quadro de referências.
É
impossível saber quais evidências comprovariam a existência ou inexistência de
Deus ou de objetos físicos em geral. Afirmar “objetos não existem”, causa muito
mais estranheza do que dizer “Deus não existe”. Quem pronuncia a última, no
máximo pode ser acusado de impiedade ou ateísmo, mas, quem pronuncia a
primeira de forma consciente, pode ser acusado de loucura. Além disso,
alguém que perca a crença na existência de Deus não terá sua habilidade de agir
e pensar sobre o mundo completamente alterada, diferente daquele que perder a
crença na existência de objetos.
No
caso de abandonarmos o pressuposto “objetos existem”, nossa maneira de pensar e
atuar sobre o mundo seria alterada de forma mais radical do que se abandonarmos
o pressuposto “Deus existe”, e assim concedemos uma significante desanalogia
entre os conceitos “Deus” e “objeto”. Enquanto a proposição “existem objetos
físicos” tem o potencial de sustentar um número maior de crenças e práticas,
independente de crermos em Deus ou não, a proposição “Deus existe” sustenta um
número significante de crenças, mas somente no contexto religioso. Podemos
concluir, seguindo Wittgenstein, que aceitamos que “objetos físicos” existem ou
que “Deus existe” somente depois que a vida forçou estes conceitos sobre nós, sendo que a vida força
sobre nós muito mais o conceito de “objetos físicos”, do que o conceito
“Deus”.
Ser
percebido pelos sentidos é uma regra que não se aplica à existência de Deus, e,
pela análise gramatical que fizemos isso deve ser assim, ao menos no que diz respeito ao uso mais comum da palavra Deus.
SOBRE OS MILAGRES
Pode-se
definir o milagre, de maneira geral, como fenômenos extraordinários e
singulares, perturbações da ordem natural, causados pela intervenção de Deus e
cujo propósito é provar e confirmar sua palavra.
De
acordo com Wittgenstein, o milagroso é relacionado com fenômenos
extraordinários, mas o fenômeno não interessa muito em si mesmo tanto quanto a
reação dos observadores. Ao olhar um fato, os cientistas, grosso modo,
buscam agrupá-lo junto com outros fatos em um sistema explicativo científico.
Desse ponto de vista, não importa o que aconteça, por mais maravilhoso e
extraordinário que seja, segundo Wittgenstein não será um milagre. A pessoa que
observa o milagre (ou ouve o relato de algum) deve ser impressionada de uma
forma que a faça viver religiosamente, ou seja, que a faça, a partir da
contemplação do evento, adotar novas regras para condução da vida.
Não
ter explicação científica não
deve ser a essência do milagroso, pois pode ser que isso seja falso - o
experimento foi mal feito - ou provisório - nossas teorias ainda não
explicam, mas não existe absolutamente nada que impeça uma possível explicação
científica no futuro. A essência do milagre é a maneira como ele me impressiona.
Ver o evento como um gesto feito por Deus é uma possibilidade que se
manifesta na forma como o evento impressiona as pessoas e na posterior adoção
de novas regras para conduzir a vida. Vemos assim que o milagre não é uma prova
da legitimidade da religião, mas o reconhecimento de um milagre já faz parte de
uma visão religiosa do mundo. O milagre não prova a existência de Deus, mas é
produto de uma cosmovisão anterior que influencia a interpretação dos fatos.
Concluindo,
poderíamos dizer que a religião não pode provar a ocorrência de um
milagre, pois ela não tem condições de dizer que existem coisas que a ciência
não pode explicar; por outro lado, como diz Wittgenstein “é absurdo dizer que a
ciência provou que não há milagres". A verdade é que o modo científico de
ver um fato não é vê-lo como um milagre. O crente e o descrente têm diferentes
visões de mundo. Eles não possuem um sistema conceitual comum contra o qual a
verdade e a falsidade possam ser distinguidas e critérios de prova
estabelecidos, por isso não se contradizem. Dessa forma ateus e crentes não
divergem em opiniões, mas em formas de vida. Eles estariam não
apenas pronunciando palavras diferentes, mas estariam em mundos diferentes:
o crente olha para a vida de uma maneira diferente, usa diferentes imagens, tem
certos comportamentos diferentes; tudo isso é algo muito mais profundo que uma
mera opinião divergente. Tanto no caso de fatos considerados milagrosos quanto
no caso dos relatos históricos narrados na bíblia, a interpretação religiosa
não é a única possível. Para que tais fatos sejam considerados divinos, é
necessária uma cosmovisão religiosa anterior que oriente esta interpretação.
Glossário:
Factual: da ordem do fato.
Cosmovisão: maneira subjetiva de ver e entender o mundo.
Fulcro: ponto de apoio;
sustentáculo, base.
Referência:
VANDER MANDELI, Alison. WITTGENSTEIN SOBRE AS CRENÇAS RELIGIOSAS. Universidade
Estadual de Londrina, 2012.
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