quinta-feira, 10 de julho de 2014

Em defesa de Nietzsche


Em entrevista exclusiva, o filósofo francês Yannick Souladié elucida questões acerca do pensamento de Nietzsche. Entre as temáticas abordadas, destaca-se a concepção de inversão dos valores nietzscheanos e as críticas do filósofo alemão a Sócrates e ao cristianismo

O que teria ocorrido com Nietzsche se não fosse o colapso mental em 1889? Nietzsche pretendia aniquilar os valo­res cristãos? O que significa a sua ex­pressão "Umwertung aller Werte" traduzida entre os franceses como "inversão de todos os valores"? A revista Filosofia Ciência &Vida entrevistou o francês Yannick Souladié, especialis­ta em Nietzsche, que, para explicar a inversão dos valores no pensamento do filósofo alemão, afirma que é necessário entender inicialmente que "os valores não existem em si. Subjacente a tais valores sempre existe a vida, existem vidas. O homem é o único ser criador de valores". Nesta entrevista, podemos perceber a importância, o ângulo de visão que o pesquisador oferece, em se tratando do cristianismo como adversário do filó­sofo alemão no ano de 1888. Yannick Souladié é docente do Departamento de Filosofia da Universidade de Toulouse-Le-Mirail, Toulouse, França, também membro do Grupo Internacional de Investigações sobre Nietzsche - GIRN/GIIN, com artigos sobre Nietzsche em relevantes publica­ções científicas.

Nietzsche não foi, como muitos o entendem, obcecado pelo cristianismo. Antes de 1888, o cristianismo sequer se apresentava como tema central em suas preocupações

FILOSOFIA - Explique-nos como foi sua trajetória acadêmica e quais foram os temas que lhe foram relevantes na pesquisa internacional a respeito de Nietzsche?

Souladié - Inscrevi-me na Universidade de Toulouse-Le-Mirail em 1997, defendi no mestrado o tema: A feiura de Sócrates, em 2001; em meu master recherche (que consiste em um pré-requisito para quem aspira ao doutorado) discuti Übermensch, em 2002, e a tese de doutorado: Nietzsche, uma filosofia do anticristo, em janeiro de 2009. Dediquei-me ao magistério, em período integral, no Departamento de Filosofia da Universidade de Toulouse-Le-Mirail, de 2007 a 2011. Após outubro de 2002, tornei-me pesquisador associado ao laboratório EA 5031 Erraphis. Sou também membro da Nietzsche Gesellschaft Ev. e do Groupe de Recherches sur Nietzsche - Grupo Internacional de Investigações sobre Nietzsche (GIRN/GIIN). Publiquei mais ou menos quinze artigos sobre Nietzsche e Filosofia contemporânea, em vários idiomas, bem como três livros: uma obra coletiva, Nietzsche, a inversão dos valores, (Hildescheim, Olms), 2007, uma edição dos Escritos autobiográficos, de Nietzsche, ( Paris, Manucius), 2011, e uma tradução de suas Últimas cartas inéditas, (Paris, Manucius), 2011.

Meus trabalhos a respeito de O anticristo, A inversão dos valores, A vontade de poder e as Últimas cartas receberam certa repercussão, do mesmo modo que aqueles abordando a influência de Nietzsche sobre Pasolini e sobre Deleuze. Em um artigo, A feiura de Sócrates, (em Nietzsche-Studien), 2006, igualmente abordei o mesmo assunto. Assumi para mim mesmo o compromisso não apenas de pesquisar, mas, sobretudo, de dirimir as sérias dúvidas que pairam sobre os textos em que Nietzsche acusa Sócrates de ser feio, a fim de demonstrar que Nietzsche não tecia tais acusações sem o devido fundamento, gratuitamente. Em retrospectiva, aquele pequeno texto da juventude me parece emblemático na maneira como abordo Nietzsche. Sempre despertou minha atenção o que a maioria considerava "excentricidade" (maldades, ataques mediante injúrias e invectivas, conceitos inabituais), pressupondo que elementos fundamentais do pensamento do filósofo ali buscassem refúgio propício. Nietzsche inventou um novo estilo filosófico, não por fantasia, mas porque, sem dúvida, seu pensamento só tenha encontrado condições ideais para manifestar-se em plenitude recorrendo àquela peculiar forma de expressão. De início, quase sempre as leituras de Nietzsche não despertam muita atenção, parecem pobres; é que o compromisso com a expressividade, de que se vale o filósofo, constrói-se à medida que ele descobre o adequado modelo conceitual, estilístico, que, aos poucos, nos brinda com a eclosão de sua originalidade e de sua força.

FILOSOFIA - Sabe-se que Nietzsche alimentava o projeto de escrever uma obra intitulada Umwertung aller Werte, e suas últimas cartas parecem indicar que O anticristo constituiria a totalidade dessa obra. Qual é a sua interpretação?

Souladié - Comecemos por uma pequena revisão cronológica dos fatos: concluída a quarta parte de Assim falava Zaratustra, Nietzsche foi dominado pelo impulso, pela necessidade de escrever uma grande obra em que pudesse expor a sua filosofia. Durante três anos, trabalhou em um projeto que distribuiu em quatro livros. Intitulou: A vontade de poder. Tendo em vista o projeto em referência, ele acumulou uma expressiva quantidade de anotações em seus cadernos. Em agosto de 1888, no entanto, após várias tentativas infrutíferas de organizar tais anotações, decidiu abandonar definitivamente o referido projeto. Em setembro, formulou um novo projeto em quatro livros intitulado: A inversão de todos os valores. Redigiu o primeiro: O anticristo. Ele escreveu várias cartas em que afirmava considerar essa inversão como sua "obra principal"; mas, em meados de novembro, decidiu que O anticristo constituiria, por si só, A inversão de todos os valores, em sua totalidade. Comprovam essa derradeira decisão as suas últimas cartas e os seus últimos escritos. Ecce Homo surge com o objetivo de introduzir o anticristo - a inversão de todos os valores, que ele considerava concluído.

Meu trabalho consistiu em assumir o compromisso de explorar a alegada excentricidade do filósofo (fazer de O anticristo a sua grande obra filosófica) e determinar o que tal excentricidade poderia implicar. Nietzsche não foi, como muitos o entendem, obcecado pelo cristianismo. Antes de 1888, o cristianismo sequer se apresentava como tema central em suas preocupações. O filósofo empenhava-se muito mais em estudos que privilegiavam a moral e a Metafísica. O cristianismo manifestou-se como seu grande adversário apenas em 1888. Nietzsche deu-se conta de que seus embates contra a Moral, contra a Metafísica, contra o Romantismo, contra a Política alemã subsumiam-se na luta feroz que o movia contra o cristianismo. O anticristo não representa, assim, a expressão do ressentimento do indivíduo Friedrich Nietzsche contra o cristianismo, destaca-se, na verdade, como uma obra filosófica; apresenta-se como o resultado de sua oposição à Metafísica, à Moral e à Filosofia ocidental. A filosofia de Nietzsche tornou-se uma "filosofia do anticristo".

FILOSOFIA - Um dos temas de sua pesquisa é a inversão dos valores nietzscheanos. Poderia precisar o significado da temática para o filósofo? 

Souladié - Os valores não existem em si. Subjacente a tais valores sempre existe a vida, existem vidas. O homem é o único ser criador de valores. A inversão de todos os valores nietzscheanos não deve ser entendida como um processo puramente intelectual; pressupõe essencialmente o apelo do corpo. É alguma coisa assim que passa pela carne, como nos diz Ecce Homo. Isso significa, por um lado, que essa inversão é eminentemente política: ela deve atuar como um evento que separa drasticamente um período do outro da História, deve "quebrar a história da humanidade em duas", conforme as próprias palavras de Nietzsche, pôr fim ao reinado dos valores cristãos. Por outro lado, porém, essa inversão não poderia, concretamente, consistir em um movimento impulsionado pelo objetivo de colocar novos valores no lugar dos antigos. É todo o processo de avaliação em si mesmo que deve mudar. É o ato de avaliar que necessita ser radicalmente modificado. Impõe-se uma mudança de paradigmas. É preciso aprender a avaliar de um ponto de vista totalmente diverso, implica, também, não aceitar, sem protestar, que novos valores sejam impostos de cima para baixo, como se encontravam colocados os valores antigos; impõe-se predisposição, impõe-se um engajamento nesse processo de mudança. Para Nietzsche, os valores não caem do céu, eles se constituem como produtos de um corpo. É o corpo que avalia, que entende e se propõe a mudar, e mudar o modo de avaliar significa modificar os corpos. É o projeto do Übermensch, em Zaratustra, o do corpo dionisíaco dos últimos textos.

Os valores se constituem como produtos de um corpo que avalia, que entende e se propõe a mudar, e mudar o modo de avaliar significa modificar os corpos

FILOSOFIA - Nietzsche tece severas críticas ao cristianismo. Ele acreditava no fim dessa corrente religiosa?
 
Souladié - Considerando-se os precedentes, sim. Responder com um não significaria não levar Nietzsche a sério. De fato, em seus últimos textos, ele não cessa de pedir o fim do cristianismo. O anticristo é concluído com um novo calendário a anunciar uma nova era. A luta contra o cristianismo constitui o pivô de sua última luta filosófica. Afirmar que Nietzsche não desejava realmente o fim a que se propunha é o mesmo que negar as afirmações que sustentava; e, contrariamente ao entendimento de alguns leitores, não creio que a filosofia de Nietzsche se apoie em "contradições". Todavia, responder categoricamente sim, como eu o faço, não me exime de duvidar um pouco da lucidez do filósofo no final do ano de 1888. Relembremos, antes de tudo, que Nietzsche não estava louco quando escreveu O anticristo e Ecce Homo. A debilidade o atinge em janeiro de 1989; golpeou-o súbita, repentinamente. Ao se questionar a percepção que o filósofo manifestava em relação à importância histórica que o distinguia, esclareçamos que tal ostentação de falta de modéstia não se constata apenas em entendimento, no final do ano de 1888, restrito ao próprio Nietzsche; em época anterior, seu antigo amigo, o grande compositor alemão, Richard Wagner, acreditava convictamente que Nietzsche reconstruiria as bases para uma nova civilização, particularmente no domínio político, graças à sua "arte total", e, realmente, reconheça-se, Nietzsche se apresenta como um grande pensador, colocado entre os mais destacados filósofos da História.

Após observação que merecia digno registro, impõe-se, como sempre, em se tratando de Nietzsche, atentar para o aparente exagero do propósito em referência. Por que um Nietzsche perfeitamente lúcido escreveria que pessoalmente poria fim ao cristianismo? Tal proposição atinge o grotesco. Nietzsche colocava-se, na realidade, como o último bastião de uma luta. Ele concebe a si mesmo como o ponto para o qual convergem todas as forças acumuladas e nele, em Nietzsche, eclodem ("eu sou todos os nomes da história"). O "eu" utilizado pelo último Nietzsche, particularmente em Ecce Homo, afigura-se alguma coisa mais que pessoal. Nele há uma luta milenar entre o que é dionisíaco e o que é cristão que se exalta. Além disso, Nietzsche se movia imbuído da convicção de que o reconhecimento de seu trabalho levaria tempo. Ele aspirava ao reconhecimento de sua contribuição filosófica, alimentava a expectativa de que o futuro o glorificasse, que seu trabalho fosse compreendido em tempos a vir, como cem anos após.

FILOSOFIA - Na sua visão de filósofo, vive-se atual mente uma crise de valores?
 
Souladié - Não me agrada a expressão "crise de valores", entendo-a como expressão que colide com a concepção que Nietzsche defendia; coloca-se tal expressão como frontalmente contrária aos valores que o filósofo colocava. Não se instala verdadeiramente uma "crise de valores" se não existe uma ideologia dominante; e nenhuma religião, nenhuma moral, nenhuma ideologia política pode manifestar-se desse modo atualmente. Hoje a crise é bem mais política que axiológica. Por que se quer então uma crise de valores? O que se escamoteia com essa perspectiva? Em meu entendimento, o problema da "crise de valores" coloca-se como um pretexto destinado a drenar angústias, a suscitar neuroses, a tornar o homem um ser triste. Em vez de se formular um verdadeiro diagnóstico, procura-se persuadir o homem saudável a imaginar que esteja doente. Sugerem-se perdas, cria se uma situação muito confusa. Esse ardil, esse estratagema que objetiva disseminar uma sensação de insegurança corresponde àquilo que Nietzsche denomina uma "metafísica de carrasco", que premedita e sugere condições predisponentes a necessidades que requeiram a interveniência de salvadores, de deuses e de líderes providenciais. Cria-se uma situação contrária a tudo o que a Filosofia sustenta.

Impõe-se, assim, uma releitura dos primeiros filósofos gregos; eles nos lembram que a Filosofia é o fruto da felicidade.

Quanto a Nietzsche, entrevejo uma tendência em exagerar o caráter apocalíptico da morte de Deus. Nietzsche não é nem Kierkegaard nem Dostoiévski, menos ainda Heidegger. Associar a morte de Deus a uma angústia existencial é um tema heideggeriano, não nietzscheano. Por muito tempo, Nietzsche foi lido apenas de um prisma heideggeriano. A morte de Deus, segundo Nietzsche, não é uma catástrofe, é ein Glück, isto é, ao mesmo tempo diz-se que é uma sorte e uma felicidade. Nietzsche escreve que as consequências imediatas da morte de Deus não são "de modo nenhum aflitivas nem entristecedoras, ao contrário, representam uma luz, uma felicidade, um alívio, uma alegria, um reconforto, uma aurora de uma nova espécie".

Qualquer interpretação que pretenda estabelecer liames entre Nietzsche e uma ideologia, quer de "direita", quer de "esquerda", soará ilegítima

FILOSOFIA - Qual é a visão do filósofo de Sils Maria sobre o apóstolo Paulo e sobre Lutero? 

Souladié - A concepção que Nietzsche oferece de Paulo e de Lutero evoluiu significativamente entre O nascimento da tragédia e Ecce Homo. Ao longo de todo o trabalho que Nietzsche apresenta a respeito do cristianismo, imperioso se faz separar os textos de 1888 daqueles que os precederam, ou exporemo-nos ao risco de cometer danosos contrassensos.

Sem dúvida, Aurora constitui uma expressiva reviravolta no entendimento que Nietzsche concebia a respeito do personagem de Paulo. Nietzsche, que acabava de ler A antropologia do apóstolo Paulo, de Hermann Lüdemann, apresenta, naquela obra, Aurora, pela primeira vez, Paulo, e não Jesus, como fundador do cristianismo. No entanto, será necessário esperar O anticristo para comprovar, para constatar a lógica da intuição que o impele a tal mudança. Em 1888, Nietzsche não considera mais o personagem Jesus segundo o histórico que se consagra; ele separa Jesus da figura mítica do Cristo, aquele entendido como um idiota apolítico. Tal desconstrução, que separa o ser Jesus do ser Cristo, Jesus-Cristo, destaca- se como essencial para se compreender, para se admitir a concepção do cristianismo como o último Nietzsche propõe: São Paulo e os primeiros apóstolos fundaram o cristianismo, não Jesus. Eu declaro com toda convicção: "... e os primeiros apóstolos", porque se consagra a tendência de se transformar Paulo no "diabo" de Nietzsche, seu grande e único adversário. Paulo realmente desempenha o papel principal na construção da figura do Cristo, mas ele não estava só, os primeiros apóstolos contribuíram na fundação do cristianismo. Paulo não é senão um grande adversário, um adversário nobre. O cristianismo não foi fundado por um homem forte, um criador nobre. Tampouco se pode afirmar que o cristianismo seja fruto da vontade de um gênio político ou de um artista. É, sim, "um agregado constituído de formas em decadência originadas de toda parte", como diz Nietzsche em O anticristo, nenhum grande fundador pertence à sua origem. Paulo soube canalizar essas forças valendo-se da figura do "Deus na cruz" que ele manipulou e dirigiu contra o Império Romano.

A ligação de Nietzsche com Lutero mereceria um estudo mais amplo. Os alemães poderiam alimentar uma ligação afetiva com Lutero, em razão não somente de ser este mesmo Lutero um reformador religioso, mas também um dos pais espirituais da nação e da língua alemã. Essa dimensão particular merece destaque, não pode jamais permanecer oculta. Assim, Nietzsche, que despreza, por natureza, o Novo Testamento e execra o fato de o ligarem ao Antigo Testamento para forjar a Bíblia, apesar de tudo, elogia a Bíblia de Lutero, reconhecendo este último como livre fundador da língua alemã. Esclarecido tal reconhecimento, Nietzsche se põe a tecer severas críticas contra Lutero e não considera a Reforma um avanço. Segundo o filósofo, o alvo de Lutero não foram os abusos do catolicismo, mas o Renascimento. Lutero encarna, no entendimento de Nietzsche, o "padre fracassado", corroído pelo ressentimento e mergulhado no ascetismo. Lutero não tolera o triunfo da arte e da vida que ocorria então até na hierarquia católica, ele não tolera a exuberância do Renascimento e dirige o seu ódio contra esse movimento.

Para o último Nietzsche, Paulo e Lutero aparecem como os responsáveis pelos dois últimos grandes atentados contra uma cultura nobre e distinta; respectivamente, contra o Império Romano e contra o Renascimento.

FILOSOFIA - Em sua opinião, qual é a importância de Nietzsche na História da Filosofia? 

Souladié - Nietzsche dialogava constantemente com eminentes filósofos do Ocidente. Ele próprio inscreveu-se na História da Filosofia, e nela ocupa posição de destaque. Nietzsche, assim, será, inescapavelmente e para sempre, reconhecido entre os filósofos como figura de destaque nos anais da Filosofia. Nietzsche integra essa plêiade de filósofos sobre cujas obras inevitavelmente se debruça o leitor amante da Filosofia. Ele marcou profundamente o pensamento do século XX e continuará a marcar também o do século XXI.


FILOSOFIA - Nietzsche alimentaria tendências ideo lógicas diversas? Em sua opinião, quais as recuperações, quais as ideias resgatadas por Nietzsche que podem soar como mais ilegítimas em relação ao que ele pensava?

Souladié - Qualquer interpretação que pretenda estabelecer liames entre Nietzsche e uma ideologia, quer de "direita", quer de "esquerda", soará ilegítima. Seja como for, esses entendimentos ideológicos que Nietzsche resgata não são equivalentes em se tratando de traição ou de abjeção. Admitamos que as numerosas referências cristãs, resgatadas por Nietzsche, que se definia como "o anticristo", fossem entendidas como as mais ilegítimas; mas tais referências, no meu ponto de vista, são resgates fascistas, e, mais particularmente, nazistas, que vão mais ao encontro do pensamento de Nietzsche. A frase "o vigésimo século foi nietzscheano" é um disparate. Bataille, Foucault e Deleuze, entre outros, entenderam Nietzsche como uma força capaz de se opor ao totalitarismo, e se eu de vesse caracterizar o pensamento de Nietzsche, eu o definiria como fundamentalmente antifascista, uma vez que nenhuma ideologia antifascista poderia prevalecer em Nietzsche. O filósofo detestava qualquer forma de idealismo. O que ele nos legou foi uma filosofia de intransigência no modo de ser e de pensar, uma recusa vigilante, permanente, a todo comprometimento com forças vingativas, bárbaras e calcadas no ressentimento. Nietzsche opôs-se ferrenha, intransigentemente ao antissemitismo, desde o nascimento desse movimento. Foi um dos primeiros a tomar consciência da periculosidade do antissemitismo em uma época em que esse movimento ainda não era levado a sério. A vida e a obra de Nietzsche constituem um exemplo de recusa ao comprometimento com o dúbio, com a pusilanimidade. Nunca se deixou surpreender por fórmulas retumbantes, quer se tratasse de democracia, quer de guerra, que de guerra, ou de escravatura; pouco importando o contexto em que estivessem inseridas. A filosofia de Nietzsche é uma filosofia que privilegia a diferença, a independência, a liberdade do espírito. Uma das mais expressivas homenagens que puderam prestar-lhe vem do seu antigo colega, Jacob Burckhardt, que, embora não apreciasse os seus últimos livros, admirava Nietzsche e assim afirmou: "Ele tornou o mundo mais independente".

Os sistemas totalitários querem transformar os homens em pequenos soldados, querem abolir as diferenças para conseguir um rebanho obediente, um rebanho dócil em que nenhuma cabeça ouse sobressair- se. Nietzsche nunca cessou de denunciar o gregarismo do homem, o rebanho, a submissão interesseira, a comodidade e a covardia das autoridades indignas e ilegítimas.

Nietzsche rejeita toda moral que ele entenda como hostil à vida; toda moral que se fundamente em um referencial "não vida"

FILOSOFIA - Segundo seu entendimento, Nietzsche recusa todo e qualquer tipo de moral ou sua crítica é precisa em relação à moral socrático-platônica?
 
Souladié - Nietzsche integra o grupo daqueles que melhor souberam eleger e exaltar a importância, a profundidade e a complexidade do fenômeno moral. Seria um equívoco destacar em Nietzsche um posicionamento de recusa intransigente e sem discernimento contra todo tipo de moral. Impõe-se uma correção. É relativo o posicionamento do filósofo de Sils Maria em se tratando de moral. Nietzsche rejeita toda moral que ele entenda como hostil à vida; hostil à vida. Nenhuma moral pode pretender a universalidade, todas devem ser avaliadas de um parâmetro que privilegie a vida. Nietzsche não se apresenta como o imoralista, senão para senão para opor-se à moral entendida como valor universal dominante no Ocidente há milênios. Ele não exclui. Ele não exclui o recurso das formas mais nobres nem daquelas formas menos pretensiosas da moral.

Se Nietzsche, em sua juventude, se debruça sobre a moral socrática, ao aproximar-se da maturidade, pouco a pouco muda seu entendimento e concentra suas certezas na moral judaico-cristã. Segundo o último Nietzsche, Sócrates e Platão se destacam como os principais responsáveis pela decadência da moral. A genealogia da moral preocupa- se, também, em esclarecer que a primeira inversão dos valores em moral registrou-se na fase final do judaísmo (3º período), e essa inversão foi concluída pelo cristianismo. O último Nietzsche vai assim concentrar-se na moral cristã, como nos indica a última parte de Ecce Homo.

FILOSOFIA - Quais são os seus futuros projetos de pesquisa e de publicação?

Souladié - Ainda não terminei minha pesquisa sobre Nietzsche. Atualmente estou aguardando a publicação da minha nova tradução e edição de O anticristo. Meu primeiro objetivo é, antes de tudo, publicar a minha tese, Nietzsche - uma filosofia do anticristo. Estou preparando muitas outras pesquisas sobre Nietzsche, bem como sobre Dostoiévski e sobre os primeiros filósofos gregos.

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