domingo, 16 de fevereiro de 2014

A filosofia moral – Parte 1

Ética ou filosofia moral

Culturas e sociedades fortemente hierarquizadas e com diferenças de castas ou de classes muito profundas podem até mesmo possuir várias morais. No entanto, a simples existência da moral não significa a presença explícita de uma ética, entendida como filosofia moral, isto é, uma reflexão que discuta, problematize e interprete o significado dos valores morais.

De fato, como vimos anteriormente, isso se dá porque os costumes são anteriores ao nosso nascimento e formam o tecido da sociedade em que vivemos, de modo que acabam sendo considerados inquestionáveis e as sociedades tendem a tomá-los como fatos naturais existentes por si mesmos.
·  costume
A palavra costume origina-se do grego éthos (donde éti­ca) e do latim mos, moris (donde moral). Ética e moral referem-se ao conjunto de costumes tradicionais de uma sociedade e, como tais, são considerados valores e obri­gações para a conduta de seus membros.
A filosofia moral ou ética nasce quando se a indagar o que são, de onde vêm e o que valem costumes.
A filosofia moral ou ética nasce quando, além das questões sobre os costumes, também busca compreender caráter de cada pessoa, referindo-se, portanto, ao senso moral e à consciência moral individuais.

A ética ou filosofia moral inicia-se com Sócrates.

Sócrates, o incansável perguntador

Percorrendo praças e ruas de Atenas — contam Platão e Aristóteles —, Sócrates perguntava aos atenienses, fossem jovens ou velhos, o que eram os valores nos quais acreditavam e que respeitavam ao agir.
Ao indagar o que são a virtude e o bem, Sócrates realiza, na verdade, duas interrogações. Por um lado, interroga a sociedade para saber se o que ela costuma considerar virtuoso e bom corresponde efetivamente à virtude e ao bem; e, por outro, interroga os indiví­duos para saber se, ao agirem, possuem efetivamente consciência do significado e da finalidade de suas ações, se seu caráter ou sua índole são virtuosos e bons realmente. A indagação ética socrática dirige -se, portanto, à sociedade e ao indivíduo.

As questões socráticas inauguram a ética ou filosofia moral porque definem o campo no qual valores e obrigações morais podem ser estabelecidos pela determinação de seu ponto de partida: a consciência do agente moral. É sujeito ético ou moral somente aquele que sabe o que faz, conhece as causas e os fins de sua ação, o significado de suas intenções e de suas atitudes e a essência dos valores morais. Sócrates afirma que apenas o ignorante é vicioso ou incapaz de virtude, pois quem sabe o que é bem não poderá deixar de agir virtuosamente.

Aristóteles e a práxis

·  Práxis
no aristotelismo, conjunto de atividades humanas autotélicas, cuja manifestação mais representativa é a política, e caracterizadas esp. por sua natureza concreta, em oposição à reflexão teórica.

Se devemos a Sócrates o início da filosofia moral, devemos a Aristóteles a distinção entre saber teorético ou contemplativo e saber prático. O saber teorético ou contemplativo é o conhecimento de seres e fatos que existem e agem independentemente de nós e sem nossa intervenção ou interferência, isto é, de seres e fatos naturais e divinos. O saber prático é o conhecimento daquilo que só existe como consequência de nossa ação e, portanto, depende de nós. A ética e a política são um saber prático. O saber prático pode ser de dois tipos: práxis ou técnica.


Na práxis, o agente, a ação e a finalidade do agir são inseparáveis ou idênticos, pois o agente, o que ele faz e a finalidade de sua ação são o mesmo.
Ao contrário, na técnica, diz Aristóteles, o agente, a ação e a finalidade da ação são diferentes e estão separados, sendo independentes uns dos outros.

Um carpinteiro, por exemplo, ao fazer uma mesa, realiza uma ação técnica, mas ele próprio não é essa ação nem é a mesa produzida por ela. A técnica tem como finalidade a fabricação de alguma coisa diferente do agente e da ação fabricadora (a ação técnica de fabricar a mesa implica o trabalho sobre a madeira com instrumentos apropriados, mas isso nada tem a ver com a finalidade da mesa, uma vez que o fim é determinado pelo uso e pelo usuário).

Deliberação e decisão

Também devemos a Aristóteles a definição do campo das ações éticas.
Aristóteles acrescenta à consciência moral, trazida por Sócrates, a vontade guiada pela razão como o outro elemento fundamental da vida ética.

Devemos a Aristóteles uma distinção que será central em todas as formulações ocidentais da ética, qual seja, a diferença entre o que é por natureza (ou conforme à physis) e o que é por vontade (ou conforme à liberdade). O necessário é por natureza; o possível por vontade.

A importância dada por Aristóteles à vontade racional, à deliberação e à escolha o levou a considerar entre todas as virtudes, uma delas como condição de todas as outras e presente em todas elas: a prudência ou sabedoria prática.

Aristóteles distingue vícios e virtudes pelo critério do excesso, da falta e da moderação: um vício é um sentimento ou uma conduta excessivos ou, ao contrário, deficientes; uma virtude é um sentimento ou uma conduta moderados.

Explicação teleológica
Outro fato que se tornou óbvio para Aristóteles enquanto ele classificava o mundo natural é que a "forma" de uma criatura não se limita a características físicas (tais como pele, pelo, pena ou escamas), mas inclui uma questão acerca do que essa criatura faz e como ela se comporta – o que, para Aristóteles, tem implicações éticas.

Para entender a ligação com a ética, precisamos primeiro ter em conta que, para Aristóteles, tudo no mundo era explicado por quatro causas inteiramente responsáveis pela existência de algo. Quais sejam: a causa material, ou de que algo é feito; a causa formal, ou a disposição ou forma de algo; a causa eficaz, ou como algo é levado a existir; e a causa final, ou a função ou o objetivo de algo. E é esse último tipo de causa, a "causa final", que se relaciona à ética, um tópico que, para Aristóteles, não está separado da ciência, mas é essencialmente uma extensão lógica da biologia.

Aristóteles forneceu o exemplo de um olho: a causa final do olho (sua função) é ver. Essa função é a finalidade, ou tetos, do olho (telos é a palavra grega da qual deriva "teleologia", ou o estudo da finalidade na natureza). Uma explicação teleológica sobre algo é, portanto, uma explanação sobre a finalidade de algo. E conhecer a finalidade de algo implica, também, saber o que é uma versão "boa" ou "má" de algo: o olho bom, por exemplo, enxerga bem.


No nosso caso, uma vida "de bem" é, portanto, uma vida na qual cumprimos nosso objetivo ou usamos ao máximo todas as características que nos tornam humanos. Uma pessoa pode ser considerada "virtuosa" ou "de bem" se usa as características com as quais nasceu, e só pode ser feliz ao usar toda a sua capacidade na busca da virtude – a forma mais elevada do que, para Aristóteles, é a sabedoria.

Compreendemos a natureza da "vida virtuosa" ao vê-la nas pessoas à nossa volta.

O legado dos filósofos gregos

Se examinarmos o pensamento filosófico dos antigos, veremos que nele a ética afirma três grandes princípios da vida moral:

1. por natureza, os seres humanos aspiram ao bem e à felicidade, que só podem ser alcançados pela conduta virtuosa;

2. a virtude é uma excelência alcançada pelo caráter, tanto assim que a palavra grega que a designa é aretê, que quer dizer "excelência". É a força interior do caráter que consiste na consciência do bem e na conduta definida pela vontade guiada pela razão,-pois cabe a esta última o controle sobre instintos e impulsos irracionais descomedidos que existem na natureza de todo ser humano;

3. a conduta ética é aquela na qual o agente sabe o que está e o que não está em seu poder realizar, referindo-se, portanto, ao que é possível e desejável para um ser humano. Saber o que está em nosso poder significa, principalmente, não se deixar arrastar pelas circunstâncias nem pelos instintos, nem por uma vontade alheia, mas afirmar nossa independência e nossa capacidade de autodeterminação.

Epicuro
O sujeito ético ou moral não se submete aos acasos da sorte, à vontade e aos desejos de um outro, à tirania das paixões, mas obedece apenas à sua consciência e à sua vontade racional. A busca do bem e da felicidade são a essência da vida ética.

Fundamental à filosofia desenvolvida por Epicuro é a visão da paz de espírito, ou tranquilidade, como objetivo da vida. Ele argumentou que o prazer e a dor são as raízes do bem e do mal, e que qualidades como virtude e justiça derivam dessas raízes, porque "é impossível viver uma vida agradável sem viver de maneira sábia, honrada e justa, e é impossível viver de maneira sábia, honrada e justa sem viver de maneira agradável". Para Epicuro, o maior prazer só é alcançável por meio do conhecimento, da amizade e de uma vida moderada, livre do medo e da dor.

Medo da morte

Um dos obstáculos para desfrutar da paz de uma mente tranquila, Epicuro raciocinou, é o medo da morte, intensificado pela crença religiosa de que, se incorrer na ira dos deuses, você será severamente punido na vida após a morte. Em vez de agir contra esse medo, propondo um estado alternativo de imortalidade. Epicuro tentou explicar a natureza da própria morte. Ele começou propondo que, quando morremos, não estamos cientes da morte, já que nossa consciência (nossa alma) para de existir quando a vida cessa.
Epicuro ponderou que a alma não pode ser um espaço vazio porque ela opera dinamicamente com o corpo e, então, deve ser composta de átomos. Ele descreveu esses átomos da alma distribuídos ao redor do corpo, mas tão frágeis que se dissolvem quando morremos, e então não somos mais capazes de sentir nada. Se quando morremos perdemos a capacidade de sentir as coisas, mental ou fisicamente, é tolice deixar o medo da morte causar-nos dor enquanto ainda vivemos.


Zenão de Cítio

Duas escolas importantes de pensamento filosófico surgiram depois da morte de Aristóteles: a ética hedonista e agnóstica de Epicuro, que teve apelo limitado, e o mais popular e duradouro estoicismo de Zenão de Cítio.

Ele tinha pouca paciência com especulações metafísicas e chegou a acreditar que o cosmos era governado por leis naturais estabelecidas por um legislador supremo. O homem, ele declarou, é completamente impotente para mudar essa realidade – e, além de desfrutar de seus muitos benefícios, o homem também tem de aceitar sua crueldade e injustiça.

Livre-arbítrio

No entanto, Zenão também declarava que o homem recebeu uma alma racional com a qual exerce o livre-arbítrio. Ninguém é forçado a perseguir uma vida "de bem". Cabe ao indivíduo escolher pôr de lado as coisas sobre as quais tem pouco ou nenhum controle e tornar-se indiferente à dor e ao prazer, à pobreza e à riqueza. Mas a pessoa que fizesse isso, segundo Zenão, alcançaria uma vida em harmonia com a natureza em todos os aspectos, bons ou ruins, vivendo de acordo com as decisões do supremo legislador.
O estoicismo conquistou apoio em grande parte da Grécia helenista, mas atraiu ainda mais seguidores no Império Romano, que estava em expansão, onde floresceu como uma base para a ética pessoal e política, até ser suplantado pelo cristianismo no século VI.



Michel de Montaigne

Montaigne não salientou a importância da solidão física, mas, mais exatamente, o desenvolvimento da capacidade de resistir à tentação de aquiescer indiferentemente às opiniões e ações da massa. Ele relacionou nosso desejo pela aprovação de colega com o de estar demasiadamente ligado à riqueza e à posse. Ambas as paixões nos diminuem, devemos cultivar o desprendimento. Ao fazer isso, não nos tornaremos emocionalmente escravizados por elas ou ficaremos devastados se as perdermos.

Nosso desejo de aprovação pela massa está ligado à busca pela glória ou fama. Ao contrário de pensadores como Nicolau Maquiavel, que via a glória como um objetivo digno, Montaigne acreditava que o empenho constante pela fama é a maior barreira à paz de espírito – ou tranquilidade.

Montaigne foi além ao recomendar que, em vez de procurar a aprovação daqueles à nossa volta, devemos imaginar que algum ser verdadeiramente notável e nobre está sempre conosco, observando nossos pensamentos mais íntimos: um ser em cuja presença até os loucos esconderiam seus defeitos. Ao fazer isso, aprenderemos a pensar clara e objetivamente, nos comportando de maneira mais séria e racional.

Montaigne afirmava que preocupar-se demasiadamente com a opinião dos outros pode nos corromper, porque acabamos imitando aqueles que são maus ou ficando tão consumidos pelo ódio contra eles que perdemos a razão.

Referências:
CHAUI, Marilena. Filosofia: Novo Ensino Médio, Volume único. São Paulo: Ática, 2010, p. 212-215.
BUCKINGHAM, Will; BURNHAM, Douglas. O livro da Filosofia. São Paulo: Globo, 2011, p. 61, 64-65, 67, 108-109.

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