sábado, 8 de fevereiro de 2014

Todo conhecimento cientifico visa constituir-se em senso comum


Sabemos hoje que a ciência moderna nos ensina pouco sobre a nossa maneira de estar no mundo e que esse pouco, por mais que se amplie, será sempre exíguo porque a exiguidade está inscrita na forma de conhecimento que ele constitui. A ciência moderna produz conhecimentos e desconhecimentos. Se faz do cientista um ignorante especializado faz do cidadão comum um ignorante generalizado.
Ao contrário, a ciência pós-moderna sabe que nenhuma forma de conhecimento ê, em si mesma, racional; só a configuração de todas elas é racional. Tenta, pois, dialogar com outras formas de conhecimento deixando-se penetrar por elas. A mais importante de todas é o conhecimento do senso comum, o conhecimento vulgar e prático com que no cotidiano orientamos as nossas ações e damos sentido à nossa vida. A ciência moderna construiu-se contra o senso comum que considerou superficial, ilusório e falso. A ciência pós-moderna procura reabilitar o senso comum por reconhecer nessa forma de conhecimento algumas virtualidades para enriquecer a nossa relação com o mundo. É certo que o conhecimento do senso comum tende a ser um conhecimento mistificado e mistificador mas, apesar disso e apesar de ser conservador, tem uma dimensão utópica e libertadora que pode ser ampliada por meio do dialogo com o conhecimento cientifico. Essa dimensão aflora em algumas das características do conhecimento do senso comum.
O senso comum faz coincidir causa e intenção; subjaz-lhe uma visão do mundo assente na ação e no princípio da criatividade e da responsabilidade individuais. O senso comum é prático e pragmático; reproduz-se colado às trajetórias e às experiências de vida de um dado grupo social e nessa correspondência se afirma fiável e securizante. O senso comum é transparente e evidente; desconfia da opacidade dos objetivos tecnológicos e do esoterismo do conhecimento em nome do principio da igualdade do acesso ao discurso, a competência cognitiva e a competência linguística. O senso comum é indisciplinar e imetódico; não resulta de uma prática especificamente orientada para o produzir, reproduz-se espontaneamente no suceder cotidiano da vida. O senso comum aceita o que existe tal como existe; privilegia a ação que não produza rupturas significativas no real. Por último, o senso comum é retorico e metafórico; não ensina, persuade. [...]

SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. 7. ed. Porto, Edições Afrontamento, 1995.

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