TRECHOS DA OBRA DE NIETZSCHE –
SOBRE FELICIDADE
Sofrimento
(...) o estreito caminho do
nosso próprio céu passa sempre pela volúpia do nosso próprio inferno.
(...) felicidade e desgraça são duas irmãs gêmeas
que crescem ao mesmo tempo ou, como sucede convosco, que ao mesmo tempo ficam
pequenas! (NIETZSCHE, A Gaia Ciência, 2012, p.176)
371 — Nós, os
incompreensíveis — Reclamamos, alguma vez, de sermos mal compreendidos,
desconhecidos, confundidos, caluniados, mal ouvidos ou ignorados? Eis nosso
destino — e por muito tempo ainda!, digamos, a nossa modéstia, até o ano de
1901 — é também o nosso título de honra; não nos daríamos um respeito
considerável se desejássemos introduzir alguma modificação no caso.
Confundem-nos com outros: é que crescemos, é que não paramos de mudar, de fazer
estalar velhas cascas, de criar pele nova em todas as primaveras, de nos
tornarmos incessantemente mais novos, mais futuros, mais altos e mais fortes, e
de enterrar mais fortemente as nossas raízes nas profundezas — no mal — ao
mesmo tempo em que abraçamos o céu de uma forma mais apaixonada, mais vasta, e
aspiramos à sua luz — com todos os nossos ramos, com todas as nossas folhas —
mais avidamente. Crescemos como a árvore cresce — algo difícil de compreender,
como toda e qualquer vida! — não cresceremos apenas em um só lugar, mas por
todos os lados, não em um sentido, mas em todos ao mesmo tempo, em cima, em
baixo, dentro, fora, a nossa força cresce ao mesmo tempo no tronco, nos ramos e
nas raízes, já não temos liberdade de fazer nada separadamente, de ser nada
separadamente... Assim é o nosso destino, como já disse: crescemos até às
alturas e, mesmo admitindo que talvez seja para nossa desgraça — pois nos
aproximamos sempre mais dos raios! — nem assim deixamos de tirar a glória
disso; é apesar de tudo um destino que não partilhamos, que não queremos
partilhar, é o destino das alturas, nossa fatalidade... (NIETZSCHE, A Gaia
Ciência, 2012, p.219)
Amor fati
(...) vou dizer qual é o pensamento que
deve tornar-se a razão, a garantia e a doçura de toda a existência que ainda
terei! Desejo aprender cada vez mais a ver o belo na
necessidade das coisas: é assim que serei sempre daqueles que tornam as coisas belas. Amor
fati (amor ao destino): seja assim, de agora em diante, o meu amor. Não
pretendo fazer a guerra ao que é feio. Não pretendo acusar, nem mesmo os
acusadores. Desviarei o meu olhar, será essa, de agora em diante, a minha única
negação! E, em uma palavra, portanto: não quero, a partir de hoje, ser outra
coisa senão uma pessoa que diz Sim! (NIETZSCHE, A Gaia Ciência, 2012,
p.142-143)
A vida de todos os dias, de todas as horas, parece apenas que
procura nos provar sem cessar essa tese; seja como for, bom ou mau tempo, perda
de amigos, doença, calúnia, carta que não chega, esfoladela, simples olhar que se
lança a uma loja, argumento que outra pessoa vos opõe, livro que se abre,
sonho, duplicidade... tudo, tudo se revela a breve prazo ou imediatamente como
uma dessas coisas que "tinha de acontecer"... tudo está carregado de
um sentido, profundo, de uma profunda utilidade; e isso precisamente para nós!
(...) Não pensemos também muito
bem da destreza da nossa sabedoria se nos acontece, por momentos, ser
surpreendidos pela maravilhosa harmonia que nasce do toque do nosso
instrumento, demasiado bela para que ousemos atribuir-nos o seu mérito. Alguém vem, com efeito, às vezes, tocar conosco...é o nosso querido acaso: guia-nos as
mãos fortuitamente, e a mais sábia providência não poderia imaginar mais bela
música do que esta que nasce então sob a nossa louca mão. (NIETZSCHE, A Gaia
Ciência, 2012, p.143-144)
Eterno retorno
341 — O peso mais pesado —
E se um dia ou uma noite, um demônio se introduzisse na tua suprema solidão e
te dissesse: "Esta existência, tal como a levas e a levaste até aqui,
vai-te ser necessário recomeçá-la sem cessar, sem nada de novo, ao contrário, a
menor dor, o menor prazer, o menor pensamento, o menor suspiro, tudo o que
pertence à vida voltará ainda a repetir-se, tudo o que nela há de
indizivelmente grande ou pequeno, tudo voltará a acontecer, e voltará a
verificar-se na mesma ordem, seguindo a mesma impiedosa sucessão, esta aranha
também voltará a aparecer, este lugar entre as árvores, e este instante, e eu
também! A eterna ampulheta da vida será invertida sem descanso, e tu com ela,
ínfima poeira das poeiras!"... Não te lançarias por terra, rangendo os
dentes e amaldiçoando esse demônio? Ou já vivestes um instante prodigioso, e
então lhe responderias: "Tu és um deus; nunca ouvi palavras tão
divinas!". Caso este pensamento te dominasse, talvez te transformasse e
talvez te aniquilasse; perguntarias a propósito de tudo: "Queres isto
outra vez e por repetidas vezes, até o infinito?". E pesaria sobre tuas ações
com um peso decisivo e terrível! Ou então, como seria necessário que amasse a
ti mesmo e que amasse a vida para nunca mais desejar nada além dessa suprema
confirmação! (NIETZSCHE, A Gaia Ciência, 2012, p.179)
Quem,
semelhante a mim, com algum desejo enigmático, se esforçou longamente por
pensar a fundo o pessimismo e salvá-lo da estreiteza e da simplicidade meio
cristã (...); quem realmente olhou ao menos uma vez um olho asiático e mais que
asiático para o interior e para o fundo desse modo de pensar que, dentre todos
os modos de pensar possíveis, é o que mais nega o mundo – além do bem e do mal,
e não mais, como Buda e Schopenhauer, sob o encanto e na ilusão da moral –,
essa talvez tenha, precisamente com isso, sem que propriamente o quisesse,
aberto os olhos para o ideal contrário: para o ideal do homem mais pleno de alegria,
mais vivo mais afirmador do mundo, que não somente aprendeu a contentar-se e
suportar aquilo que foi e que é, mas que o quer novamente tal como foi e é, por toda a eternidade, exclamando insaciavelmente
da capo [do início], não apenas para si, mas para a peça e o espetáculo inteiros, e não
somente para um espetáculo, mas no fundo para aquele que justamente precisa
desse espetáculo – e faz com que ele seja preciso: pois ele sempre
precisa de si outra vez – e faz com que seja
preciso — O quê? E isto não seria – circulus vitiosus [círculo vicioso] deus? (NIETZSCHE,
Além do bem e do mal, 2010, p. 81)
Felicidade
Algumas teses. — Ao indivíduo, enquanto
busca sua felicidade, não se deve dar prescrições sobre o caminho para a
felicidade: pois a felicidade individual brota de leis próprias, desconhecidas
de todos, e preceitos externos podem apenas inibi-la, impedi-la. — Os preceitos
chamados de "morais" são, na verdade, dirigidos contra os indivíduos,
e não querem absolutamente a sua felicidade. Tampouco referem-se eles à
"felicidade e bem-estar da humanidade" — palavras a que não é
possível ligar conceitos rigorosos, e menos ainda usar como estrelas-guia no
escuro oceano dos empenhos morais. — Não é verdade que a moralidade, como quer
o preconceito, seja mais propícia ao desenvolvimento da razão que a
imoralidade. — Não é verdade que o objetivo inconsciente, no
desenvolvimento de todo ser consciente (bicho, homem, humanidade, etc.), seja
sua "felicidade suprema": trata-se antes de alcançar, em todos os
estágios do desenvolvimento, uma felicidade particular e incomparável, nem
superior nem inferior, mas simplesmente peculiar. Desenvolvimento não busca
felicidade, mas desenvolvimento e nada mais. — Apenas se a humanidade tivesse
um objetivo geralmente reconhecido poderia alguém propor: "De tal e
tal modo deve-se agir"; atualmente não há esse objetivo. Logo, não
se deve relacionar as exigências da moral à humanidade, o que é insensatez e
diversão. — Recomendar à humanidade um objetivo é algo bem diferente:
então ele é concebido como algo que está ao nosso bel-prazer; supondo
que agradasse à humanidade a proposta, ela poderia então dar-se uma lei
moral, igualmente a partir de seu bel-prazer. Mas até agora a lei moral devia
estar acima do bel-prazer: não queríamos propriamente dar-nos essa
lei, e sim toma-la de alguma parte, ou achá-la em algum lugar, ou
deixá-la impor-se de alguma parte. (NIETZSCHE,
Aurora, 2016, p.73)
Louvor e censura. — Se uma guerra tem
desenlace infeliz, pergunta-se pelo "culpado" da guerra; se termina
com vitória, elogia-se quem a instigou. Sempre é buscada a culpa quando há um
fracasso, pois este traz consigo um mau humor a que se aplica automaticamente um
único remédio: uma nova excitação do sentimento de poder — e esta se
acha na condenação do "culpado". Esse culpado não é um bode
expiatório da culpa de outros: é a vítima dos fracos, humilhados, abatidos, que
de algum modo querem provar a si mesmos que ainda têm força. Também condenar a
si próprio pode ser um meio de readquirir o sentimento de força após a derrota.
— Já a glorificação do instigador é, com frequência, o resultado
igualmente cego de outro impulso que procura sua vítima — e desta vez o
sacrifício é doce e convidativo até para a vítima —: quando o sentimento de
poder de um povo, uma sociedade, está saturado em virtude de um grande,
fascinante êxito, e sobrevêm um cansaço do triunfo, uma parte do
orgulho é abandonada; avulta o sentimento da devoção, que busca seu
objeto. — Ao sermos louvados ou censurados, nisto somos
geralmente oportunidades, e com frequência oportunidades agarradas
arbitrariamente, para nossos próximos descarregarem o impulso de louvor ou
censura neles acumulado: nos dois casos lhes prestamos um benefício, no qual
não temos mérito e pelo qual não têm gratidão. (NIETZSCHE,
Aurora, 2016, p.101-102)
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