segunda-feira, 15 de maio de 2017

NIETZSCHE – SOBRE A MORAL





TRECHOS DAS OBRAS DE NIETZSCHE – SOBRE A MORAL

Não há quaisquer fenômenos morais, mas apenas uma interpretação moral de fenômenos..... (NIETZSCHE, Além do bem e do mal, 2010, p. 97)

“(..) a história da luta da moral contra os instintos fundamentais da vida é a maior imoralidade que até hoje existiu sobre a terra...” (NIETZSCHE, Vontade potência, 2011, p.274)

Chamo um animal, uma espécie, um indivíduo de corrompidos quando eles perdem os seus instintos, quan­do escolhem, quando preferem o que lhes é prejudicial. Uma história dos "sentimentos superiores", dos "ideais da humanidade" – e é possível que eu tenha de narrá-la – também seria quase a explicação de por que o homem está tão corrompido.

Considero a própria vida como instinto de cresci­mento, de duração, de acumulação de forças, como ins­tinto para o poder, onde falta a vontade de poder, ocorre declínio. Minha tese é a de que todos os valores supremos da humanidade carecem dessa vontade – que sob os no­mes mais sagrados há valores de declínio, valores niilistas no comando. (NIETZSCHE, O Anticristo, 2016, p.18)

Os animais e a moral — As práticas que são requeridas na sociedade refinada: evitar cuidadosamente o ridículo, o chamativo, o pretensioso, relegar tanto suas virtudes como suas veementes cobiças, mostrar-se como igual, inserir-se, dimi­nuir-se — tudo isso que é a moral social encontra-se, grosso modo, em toda parte, até na profundeza do mundo animal, — e apenas nessa profundeza enxergamos a intenção por trás dessas gentis precauções: quer-se escapar aos perseguidores e ser favo­recido na busca da presa. Por isso os animais aprendem a se dominar e a dissimular de tal modo que alguns, por exemplo, adéquam suas cores à cor do ambiente (mediante a chamada "função cromática"), fazem-se de mortos ou assumem as formas e cores de outro animal ou de areia, folhas, liquens, fungos (aquilo que os pesquisadores ingleses designam por mimicry [mimetismo]). Dessa maneira o indivíduo se esconde na genera­lidade do conceito "homem" ou na sociedade, ou se adéqua a governantes, classes, partidos, opiniões da época ou do ambiente: e para todas as sutis maneiras de nos pormos felizes, gra­tos, fortes, enamorados, encontra-se facilmente o símile animal. Também o sentido para a verdade, que é, no fundo, o sentido para a segurança, o homem tem em comum com os animais: não queremos nos deixar enganar, não queremos induzir a nós próprios em erro, ouvimos desconfiados a conversa de nossas próprias paixões, contemo-nos e ficamos à espreita de nós mesmos; tudo isso o animal entende como o homem, também nele o autodomínio nasce do sentido para o real (da pru­dência). E igualmente observa os efeitos que produz na noção que têm os outros animais, aprende a olhar de volta para si a partir dela, a apreender-se "objetivamente", tem seu grau de autoconhecimento. O animal julga os movimentos de seus rivais e amigos, memoriza as peculiaridades deles, orienta-se por elas: no tocante a indivíduos de determinada espécie renuncia definitivamente à luta, e também percebe, na aproximação de algumas variedades de animais, a intenção de paz e de acordo. Os primórdios da justiça, assim como da prudência, da modera­ção, da valentia — em suma, tudo aquilo que designamos pelo nome de virtudes socráticas é animal: uma consequência dos im­pulsos que ensinam a procurar alimento e escapar aos inimigos. Se considerarmos que também o homem superior apenas se elevou e refinou no tipo da alimentação e na ideia do que lhe é hostil, será lícito caracterizar todo o fenômeno da moral como animal. (NIETZSCHE, Aurora, 2016, p.28-29)

Durante a mais longa época da história humana – a chamada época pré-histórica –, o valor ou o desvalor de uma ação era derivado de suas consequências (...) Chamamos esse período de período pré-moral da humanidade: o imperativo ‘conhece-te a ti mesmo!’ ainda era desconhecido naquele tempo. Nos dez últimos milênios, entretanto, em algumas grandes regiões da Terra se chegou passo a passo ao pon­to de deixar a origem da ação, e não mais as consequên­cias, decidir acerca de seu valor (...) a origem de uma ação foi interpretada no mais preciso sentido de origem a partir de uma intenção; chegou-se à crença unânime de que o va­lor de uma ação reside no valor de sua intenção. A intenção como a inteira origem e pré-história de uma ação: sob este preconceito se louvou, repreendeu, condenou e também se filosofou moralmente sobre a Terra quase até a época mo­derna. – Não teríamos hoje, porém, chegado à necessidade de mais uma vez nos decidirmos acerca de uma inversão e de um deslocamento radical dos valores, graças a uma repetida autorreflexão e aprofundamento do homem – não es­taríamos no limiar de um período que, negativamente, po­deria ser designado em primeiro lugar de extramoral: hoje, quando pelo menos entre nós, imoralistas, se faz sentir a suspeita de que precisamente naquilo que não é intencional numa ação reside o seu valor decisivo, e de que toda a sua intencionalidade, tudo que dela pode ser visto, sabido, ‘co­nhecido’, ainda pertence à sua superfície e epiderme – a qual, como toda epiderme, revela algo, mas oculta muito mais? Em suma, acreditamos que a intenção é apenas um sinal e um sintoma que primeiro precisa de interpretação, um sinal, além disso, que significa coisas demais e, por conseguinte, não significa quase nada por si mesmo – que a moral, no sentido em que ela foi entendida até agora, portanto, como moral de intenções, foi um preconceito, uma precipitação, uma provisoriedade talvez, uma coisa mais ou menos da categoria e da alquimia, mas em todo caso algo que precisa ser superado. (NIETZSCHE, Além do bem e do mal, 2010, p. 57-58-59)

A refinada crueldade como virtude. — Eis uma moralidade que se baseia inteiramente no impulso para a distinção — não pensem muito bem dela! Pois que impulso é esse e qual o pensamento por trás dele? Queremos que a nossa simples vista cause dor ao outro e desperte sua inveja, o sentimento de impo­tência e de declínio; queremos fazê-lo saborear a amargura de seu fado, ao deixar-lhe na língua uma gota de nosso mel e fixá-lo nos olhos agudamente e com maldosa alegria, ante o suposto benefício. Esse tornou-se humilde e perfeito em sua humilda­de — procurem aqueles que há muito ele quer assim torturar! já os encontrarão! Aquele mostra-se piedoso com os animais e é admirado por isso — mas há certas pessoas nas quais, justa­mente com isso, ele quis dar livre curso à sua crueldade. Ali está um grande artista: a volúpia que antecipadamente sentiu com a inveja dos rivais derrotados não deixou sua energia esmorecer, até ele tornar-se grande — quantos instantes amargos a sua grandeza não custou a outras almas! A castidade da freira: que olhares castigadores ela não lança ao rosto das mulheres que vivem de outra forma! quanto prazer da vingança há nesses olhos! — O tema é breve, as variações em torno dele podem ser inúmeras, mas dificilmente tediosas — pois é ainda uma novi­dade paradoxal e quase dolorosa que a moralidade da distinção seja, em última instância, o prazer na crueldade refinada. Em última instância — isto significa aqui: sempre na primeira gera­ção. Pois quando o hábito de uma ação que distingue é herdado, o pensamento por trás dela não é herdado (apenas sentimentos são hereditários, não pensamentos): e, desde que a educação não o introduza novamente, na segunda geração não há mais prazer na crueldade; e sim apenas prazer no hábito como tal. Esse prazer, porém, é o primeiro estágio do "bem". (NIETZSCHE, Aurora, 2016, p.30-31)

Simulação como dever. — Na maioria das vezes, a bonda­de foi desenvolvida pela demorada simulação que buscava parecer bondade: em todo lugar onde existiu grande poder, viu-se a ne­cessidade de justamente esse tipo de simulação — ela infunde certeza e confiança, e centuplica a verdadeira soma de poder físi­co. A mentira é, se não a mãe, certamente a ama de leite da bondade. Também a honradez foi cultivada sobretudo pela demanda de uma aparência de honradez e probidade: nas aristocracias he­reditárias. O que é simulado por longo tempo torna-se enfim natureza: a simulação acaba por suprimir a si mesma, e órgãos e instintos são os inesperados frutos do jardim da hipocrisia. (NIETZSCHE, Aurora, 2016, p.158)

(...) a história dos sentimentos morais é muito diferente da história dos conceitos morais. Aqueles são poderosos antes da ação, estes depois da ação, em vista da neces­sidade de pronunciar-se sobre ela. (NIETZSCHE, Aurora, 2016, p.33)

Com seus princípios, quer-se tiranizar ou justificar ou honrar ou insultar ou ocultar seus hábitos: – é provável que dois homens com princípios idênticos queiram com eles algo fundamentalmente diferente. (NIETZSCHE, Além do bem e do mal, 2010, p. 93)

Há uma desmedida alegria da bondade que se parece com maldade. (NIETZSCHE, Além do bem e do mal, 2010, p. 107)

Contra os caluniadores da natureza — Que seres desagradáveis estas pessoas em que toda tendência natural se torna rapidamente doença, algo deformante ou mesmo ignomínia! São elas que nos fazem acreditar que as inclinações naturais, os instintos do homem são maus; são elas a causa da nossa injustiça para com a nossa natureza, para com toda a natureza! Não faltam pessoas que teriam o direito de se abandonar às suas inclinações com graça, com despreocupação: mas não o fazem, com receio desta "má essência" imaginária da natureza! (NIETZSCHE, A Gaia Ciência, 2012, p.152)

“Crítica da moral da décadence. – Uma moral "altruísta", uma moral em que o egoísmo definha, é, de qualquer maneira, um mau sinal. Isso vale para o indivíduo, isso vale sobretudo para povos. Falta o melhor quando começa a faltar egoísmo. Escolher instintivamente o que é danoso para si, ser atraído por motivos "desinteressados", é quase a fórmula da décadence. "Não buscar o seu benefício" — isso é apenas a folha de parreira moral que encobre um fato muito diferente, a saber, um fato fisiológico: "Não sei mais encontrar o meu benefício"... Desagregação dos instintos! — Quando o homem se torna altruísta, é o seu fim. — Em vez de dizer, ingenuamente, "Eu não valho mais nada", a mentira moral na boca do décadent diz: "Nada tem valor — a vida não vale nada"...” (NIETZSCHE, Crepúsculo dos ídolos, 2010, p.103)

A vingança sobre o espirito e outros subentendidos da moral — A moral — onde acreditais que possa ter os seus mais perigosos e pérfidos advogados?... Eis aqui um homem que não teve bom êxito, que não tem espírito o bastante para dele se alegrar e que recebeu a cultura exata apenas para dar-se conta disso; aborrece-se, enjoa-se, despreza-se; privado, por uma pequena herança que recebeu, da última consolação, a "bênção do trabalho", do esquecimento de si na "tarefa cotidiana"; é um ser que, no fundo, tem vergonha da sua existência — talvez, ainda por cima, mantenha alguns pequenos vícios no fundo da alma; por outro lado, não pode impedir-se de se corromper cada vez mais, de se tornar cada vez mais irritável e vaidoso em virtude de leituras a que não tem direito, ou a frequências demasiado intelectuais para as suas capacidades digestivas: envenenado até à medula — pois para um malogrado desta natureza o espírito torna-se veneno, e veneno a cultura, a solidão e a higiene — prostra-se finalmente em um estado de rancor, em uma vontade crônica de se vingar... O que pensais que tenha necessidade, que tenha absolutamente necessidade para conservar diante dele mesmo uma aparência de superioridade sobre espíritos mais fortes do que o seu, para se dar, pelo menos em imaginação, a volúpia da vingança satisfeita? A moralidade, sempre ela; pode pôr-se a mão no fogo, precisa das grandes frases da moral, do grande tambor da justiça, da sabedoria, da santidade, da virtude; tem necessidade do estoicismo, da atitude (oh, estoicismo, como escondes bem o que não tem!...), precisa da capa do silêncio superior, da afabilidade, da suavidade, e outros envoltórios idealistas sob os quais vemos caminhar os contempladores incuráveis deles próprios, que são também os incuráveis vaidosos. Não me entendam mal: acontece, às vezes, que estes inimigos natos do espírito dão nascença às extraordinárias amostras humanas que o povo honra com o nome de santos e de sábios; são eles que produzem os monstros da moral que fazem barulho, que fazem história: um Santo Agostinho, por exemplo. (NIETZSCHE, A Gaia Ciência, 2012, p.206)

(...) moralidade não é outra coisa (e, portanto, não mais!) do que obediência a costumes, não importa quais sejam; mas cos­tumes são a maneira tradicional de agir e avaliar. Em coisas nas quais nenhuma tradição manda não existe moralidade; e quanto menos a vida é determinada pela tradição, tanto menor é o cír­culo da moralidade. O homem livre é não moral, porque em tudo quer depender de si, não de uma tradição: em todos os estados originais da humanidade, "mau" significa o mesmo que "individual", "livre", "arbitrário", "inusitado", "inaudito", "im­previsível". Sempre conforme o padrão desses estados originais: se uma ação é realizada não porque a tradição ordena, mas por outros motivos (a utilidade individual, por exemplo), mesmo por aqueles que então fundaram a tradição, ela é considerada imoral e assim tida mesmo por seu ator: pois não foi realizada em obe­diência à tradição. O que é a tradição? Uma autoridade superior, a que se obedece não porque ordena o que nos é útil, mas por­que ordena. — O que distingue esse sentimento ante a tradição do sentimento do medo? Ele é o medo ante um intelecto supe­rior que manda, ante um incompreensível poder indeterminado, ante algo mais do que pessoal — há superstição nesse medo. — Originalmente fazia parte do domínio da moralidade toda a educação e os cuidados da saúde, o casamento, as artes da cura, a guerra, a agricultura, a fala e o silêncio, o relacionamento de uns com os outros e com os deuses: ela exigia que alguém ob­servasse os preceitos sem pensar em si como indivíduo. (NIETZSCHE, Aurora, 2016, p.17)

“Em todas as épocas se quis "melhorar" os homens: isso, sobretudo, foi chamado de moral. (...) Chamar a domesticação de um animal de "melhoramento" soa aos nossos ouvidos quase como uma piada. Quem sabe o que acontece nas exposições de feras duvida que nelas a besta seja "melhorada". Ela é enfraquecida, tornada menos daninha, transformada numa besta doentia através do afeto depressivo do medo, através da dor, dos ferimentos, da fome. — Não é diferente com o homem domesticado que o sacerdote "melhorou"”. (NIETZSCHE, Crepúsculo dos ídolos, 2010, p.60-61)

A moral ensina ao homem a ser função do rebanho, e a se atribuir valor somente como função. Uma vez que as condições de conserva­ção eram muito diferentes de uma comunidade para outra, resultam morais muito diferentes; e, se considerarmos todas as transformações essenciais que os rebanhos e as comunidades, os Estados e as sociedades são ainda chamados a sofrer, pode-se profetizar que haverá ainda morais muito divergentes. Moralidade é o instinto gregário no indivíduo. (NIETZSCHE, A Gaia Ciência, 2012, p.111)

“... Não podemos hoje imaginar a degenerescência moral separada da degenerescência fisiológica: a primeira nada mais é que o conjunto de sintomas da segunda: somos necessariamente maus, como somos necessariamente doentes... Mau: a palavra exprime aqui certas incapacidades que são fisiologicamente ligadas ao tipo da degenerescência: por exemplo, a fraqueza da vontade, a incerteza e até a multiplicidade da "pessoa", a impotência para suprimir a reação a uma excitação qualquer e de "dominar-se", o constrangimento diante de toda espécie de sugestão de uma vontade estranha. O vício não é a causa; o vício é a consequência.”(NIETZSCHE, Vontade potência, 2011, p.269) 

“A moral religiosa — A emoção, o grande desejo, as paixões do poder, do amor, da vingança, da posse: os moralistas querem extingui-los, arrancá-los, para ‘purificar’ a alma.

É a mesma lógica que diz: ‘Se teu membro te escandaliza, arranca-o’.

Sua conclusão é sempre: somente o homem castrado pode tornar-se um homem bom.” (NIETZSCHE, Vontade potência, 2011, p.306-307)

“A partir de todas as idiossincrasias [características peculiares] morais, vejo uma avaliação fundamentalmente diferente: não conheço essas separações absurdas entre o gênio e o mundo da vontade moral e imoral. O homem moral é de uma espécie inferior ao homem imoral, de uma espécie mais fraca; é um tipo segundo a moral, não é porém seu próprio tipo; é uma cópia, uma boa cópia ao rigor — a medida de seu valor reside fora dele. Estimo o homem pela quantidade de potência e pela plenitude de sua vontade; e não conforme o enfraquecimento e a purificação da vontade; considero uma filosofia que ensina a negação da vontade como uma doutrina de aviltamento e de calúnia... Julgo a potência de uma vontade segundo o grau de resistência, de dor, de tortura que ela suporta para convertê-las em seu favor; não censuro à existência seu caráter mau e doloroso, mas espero que esse caráter se tornará um dia mais mau e mais doloroso ainda...” (NIETZSCHE, Vontade potência, 2011, p.475)






“O constrangimento da vontade era tido como o que dava ao ato valor superior: Deus era considerado então o autor...

Vem o contramovimento: o dos moralistas, sempre com o mesmo preconceito, o de crer que somos responsáveis pelos menores acontecimentos, se os quisermos. O valor do homem está fixado como valor moral: portanto, seu valor deve ser causa prima; logo, deve haver aí um princípio no homem, o "livre-arbítrio", que seria a causa prima. Há sempre a segunda intenção: se o homem não é a causa prima enquanto vontade, é irresponsável, consequentemente, não é da competência da moral. A virtude e o vício serão então automáticos e inconscientes.” (NIETZSCHE, Vontade potência, 2011, p.266)

“O erro do livre-arbítrio. — (...) Em todo lugar onde se procura responsabilidades, costuma ser o instinto de querer punir e julgar que está a procura delas. O devir foi despido de sua inocência quando se busca explicar pela vontade, pelas intenções ou por atos de responsabilidade alguma maneira de ser: a doutrina da vontade foi inventada essencialmente com a finalidade de punir, ou seja, de querer encontrar culpados. (...) O cristianismo é uma metafísica de carrasco...

(...) Fomos nós que inventamos a noção de "finalidade": a finalidade está ausente da realidade... Somos necessários, somos um fragmento de destino, pertencemos ao todo, estamos no todo — não há nada que possa julgar, medir, comparar e condenar o nosso ser, pois isso significaria julgar, medir, comparar e condenar o todo... Mas não há nada fora do todo!” (NIETZSCHE, Crepúsculo dos ídolos, 2010, p.57-59)

Há dois tipos de negadores da moralidade. — "Negar a moralidade" — isso pode significar, primeiro: negar que os motivos morais que as pessoas alegam tenham-nas realmente impelido a seus atos — ou seja, a afirmação de que a moralidade consiste em palavras e é parte dos embustes grosseiros ou sutis (embustes de si mesmo, em especial) dos seres humanos, e talvez principalmente dos mais famosos pela virtude. Depois pode significar: negar que os juízos morais repousem sobre verdades. Nesse caso se admite que são realmente motivos da ação, mas que, dessa forma, são os erros, fundamento de todo juízo moral, que impelem os indivíduos a suas ações morais. Este é o meu ponto de vista; mas seria o último a ignorar que em muitíssimos casos a sutil desconfiança do primeiro ponto de vista, ou seja, no espírito de La Rochefoucauld, é também justificada e, certamente, de grande utilidade geral. — Assim, nego a moralidade como nego a alquimia, ou seja, nego os seus pressupostos; mas não que tenha havido alquimistas que acreditaram nesses pres­supostos e agiram de acordo com eles. — Também nego a imo­ralidade: não que inúmeras pessoas sintam-se imorais, mas que haja razão verdadeira para assim sentir-se. Não nego, como é evidente — a menos que eu seja um tolo —, que muitas ações consideradas imorais devem ser evitadas e combatidas; do mes­mo modo, que muitas consideradas morais devem ser praticadas e promovidas — mas acho que, num caso e no outro, por razões outras que as de até agora. Temos que aprender a pensar de outra forma — para enfim, talvez bem mais tarde, alcançar ainda mais: sentir de outra forma. (NIETZSCHE, Aurora, 2016, p.69-70)

O problema que com isso coloco não se refere ao que deve substituir a humanidade na sucessão dos seres (o homem é um final), mas ao tipo de homem que se deve cultivar, se deve querer como sendo o de mais alto valor, mais digno de vida, mais seguro de futuro.

Esse tipo de alto valor já existiu com bastante frequência: mas como um acaso feliz, uma exceção, jamais como algo desejado. Pelo contrário, precisamente ele foi o mais temido, foi até agora quase o temível; – e foi por temor que se quis, se cultivou, se alcançou o tipo contrário: o animal doméstico, o animal de rebanho, o animal doente homem – o cristão... (NIETZSCHE, O Anticristo, 2016, p.15)

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