Para
os gregos, a vida de uma pessoa qualquer só pode
ser valorada em função de referências que a transcendem.
— Mas que referências são essas? O que, fora de mim, poderia ser critério para definir a vida que eu vou viver?
— Mas que referências são essas? O que, fora de mim, poderia ser critério para definir a vida que eu vou viver?
De
acordo com esta concepção
grega de vida boa, a ser desenvolvida, estamos todos inscritos no universo e
dele fazemos parte. E isso é decisivo para escolher a vida que, instante a
instante, optamos por viver.
Ajuste e participação
A
palavra parte só encontra sentido em
relação ao todo do qual ela participa. Por isso, a vida de qualquer homem só
pode ser julgada em função da sua condição de parte, de uma parte específica,
que este homem encarna neste todo maior e universal. Por isso afirmavam que a ética — reflexão sobre a vida — e a física — reflexão sobre a natureza e o
funcionamento do universo — são sempre interligadas.
Imagine
que esse universo grego possa ser comparado a um complexo organismo. Perceba
que não se pode esperar que o coração viva da
mesma maneira que o estômago.
Para
poder atribuir valor às
possibilidades existenciais, com vistas à identificação da melhor, é
imprescindível saber mais sobre esse universo do qual participamos. Na perspectiva grega, esse universo é finito, ordenado e, por isso, compreensível,
lógico.
Ajuste
e Mitologia
Homero apresenta Ítaca como o lugar natural de Ulysses.
Condição geográfica da vida boa.
Terminada
a guerra, Ulysses só tem
uma coisa em mente. Voltar para casa. Mal sabia ele que dez outros longos anos
o separavam de tudo isso. Dez anos de privações e provações. De angústia e
frustração. O autor parece querer dizer que nem sempre é fácil viver no seu
lugar natural. Para o homem, a vida em harmonia com o todo universal nem sempre
é alcançada com tranquilidade.
Na natureza tudo é como só poderia ser. Felizmente.
Necessariamente. Por isso, dizem os filósofos da época, regidos pelo princípio
de necessidade.
Já o pobre do homem, que muitas vezes se sente
tão privilegiado por poder decidir ele
mesmo como vai viver, tem que fazer das tripas coração para encontrar seu lugar
no universo e conseguir ficar ali.
No
caso do homem, pensavam esses gregos, a vida não está pronta. Em qualquer instante, ela pode ser de um
jeito, mas também de outro.
Por
isso, só o homem pode viver mal. Só o homem pode
errar na hora de viver. E isso acontece toda vez que ele não consegue se ajustar ao resto do universo. E o primeiro passo é encontrar o lugar, o seu lugar,
aquele que, pelo fato de ser seu, não é o de ninguém mais.
Para o
pensamento mitológico
— e posteriormente filosófico — grego, uma vida boa, ainda que finita, supera,
e muito, uma vida eterna, fora de lugar. Em outras palavras, nada,
rigorosamente nada, nem mesmo a eternidade com Calipso, compensaria uma vida em
desarmonia com o universo. Uma vida vivida fora de lugar é pior do que a
própria morte.
A odisseia de
Ulysses permite entender que a vida que haverá de valer a pena ser vivida, a
tal vida boa, é necessariamente finita. É dela de que estamos falando.
Portanto, falar de eternidade é desviar o assunto. Sair do tema. Porque a
vida só poderá ser harmônica com
o resto do universo por ser finita.
A
morte faz parte dessa inscrição no
todo cósmico. Uma eventual vida eterna implicaria uma aberração. Uma agressão à ordem. Uma desarmonia. Um
descomedimento que nos impediria a tão buscada conciliação com o universo.
As coisas que se encontram no universo são diferentes umas das outras. Diante delas, podemos ter dois tipos de inquietação.
Ajuste, atividade e finalidade
As coisas que se encontram no universo são diferentes umas das outras. Diante delas, podemos ter dois tipos de inquietação.
A
primeira, que poderíamos
chamar de científica, parte de um corpus dado, aceita-o como tal e tenta
descobrir, digamos, seu funcionamento, as particularidades das relações que mantém com outros corpos e entre suas partes constitutivas.
A
segunda inquietação,
poderíamos denominá-la mais propriamente filosófica ou metafísica. Não se
trata mais de saber como funciona. Mas por que o ser é, por que é do jeito que
é. Veja a diferença: uma coisa é tomar um corpo no mundo, aceitá-lo, e verificar como vive. Outra coisa é se perguntar por que aquela coisa está no mundo, a que
veio, de onde veio, o que justifica sua presença ali.
Temos
também razão e linguagem. Curiosamente, os gregos
as denominavam, ambas, da mesma forma: logos. Consideravam essa a nossa
especificidade.
O logos
— razão
e linguagem — permite-nos concluir que somos pensantes e sociais. A razão nos
faculta pensar, e a linguagem nos possibilita a comunicação e a sociabilidade.
Daí a famosa definição proposta por Aristóteles: o homem é animal político,
dotado de razão. Por isso, seja lá o que formos fazer da própria vida, a
racionalidade e a sociabilidade deverão ser decisivas nas nossas escolhas.
“A natureza, que
nada faz em vão, concedeu apenas a ele o dom da palavra (logos), que não devemos
confundir com o dom da voz. Este é apenas expressão de sensações agradáveis ou desagradáveis, de que os
outros animais são, como nós, capazes. A natureza deu-lhes um órgão limitado a este único efeito; nós, porém, temos a mais,
senão o conhecimento
desenvolvido, pelo menos o sentimento obscuro do bem e do mal, do útil e do nocivo,
do justo e do injusto, objetos para os quais nos foi dado o órgão da fala” (ARISTÓTELES. Política).
Se
pertencemos a um todo ordenado e somos diferentes — a despeito de traços essenciais e comuns —, é normal que
tenhamos papéis distintos nesta complexa engrenagem do universo. E as mesmas 10 lições ou 7 hábitos que garantem a felicidade de uns decretam tristeza profunda em muitos outros.
— E como posso saber quando estou fazendo aquilo que me cabe nesta engrenagem?
Ora, caro leitor. Estando no lugar certo e buscando a excelência na atividade que faz jus à sua natureza, você é feliz.
Vive, portanto, uma vida boa.
Esses mesmos gregos estavam convencidos de que a vida boa dependia de mais uma referência. Além do lugar e da atividade. A mais importante delas: a finalidade, o thelos.
Esses mesmos gregos estavam convencidos de que a vida boa dependia de mais uma referência. Além do lugar e da atividade. A mais importante delas: a finalidade, o thelos.
Tudo no universo tem uma finalidade para alcançar ao
longo de sua existência. Como diria Aristóteles, a natureza não faz nada em vão. E a
vida boa depende demais dessa finalidade. Afinal, o que chamamos de vida acaba
sendo todo o nosso esforço, mais ou menos competente, para alcançar a
finalidade que é a nossa.
Assim,
quando o vento venta, não
venta por ventar. Venta porque ventando, refresca. Ventando poliniza.
Fertiliza. Da mesma forma, o estômago digere, o intestino peristalta e
peristaltando, excreta; o coração bombeia e bombeando faz circular o sangue, e
assim por diante.
“Podemos
comparar os cidadãos
aos marinheiros: ambos são membros de uma comunidade. Ora, embora os marinheiros tenham funções muito diferentes, um empurrando o remo, outro
segurando o leme, um terceiro vigiando a proa ou desempenhando alguma outra
função que também tem seu nome, é claro que as tarefas de cada um têm sua
virtude própria, mas sempre há uma que é comum a todos, dado que todos têm por
objetivo a segurança da navegação, à qual aspiram e concorrem, cada um à sua
maneira. De igual modo, embora as funções dos cidadãos sejam semelhantes,
todos trabalham para a conservação de sua comunidade, é a este interesse comum
que deve relacionar-se a virtude de cada cidadão” (ARISTÓTELES. Política).
Por
isso, se temos particularidades em nós é
porque há também alguma particularidade em nossas finalidades. E esta
é o bem supremo. Aquele em função do qual
todos os esforços, todas as estratégias, todas as práticas podem ter algum
valor. E esse bem supremo é a felicidade. Que os gregos nomeavam eudaimonia.
Ajuste e eudaimonia
Eudaimonia é, como dissemos, bem supremo. Soberano. A finalidade última. Aquilo que não é meio para nada porque já é o máximo que se pode pretender. É vida que vale por ela mesma. Que esgota nela mesma sua razão de ser.
“Ora,
ao que se busca por si mesmo, chamamos mais final que ao que se busca por causa
de outra coisa, e ao que nunca se elege por causa de outra coisa, consideramos
mais final que aqueles que se elegem, ou por si mesmos, ou por outra coisa.
Finalmente, chamamos final ao que sempre se elege por si mesmo e nunca por
outra coisa. Tal parece ser, sobretudo, a felicidade [eudaimonia]” (ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco).
Uma
política existencial de sonegação da felicidade:
o vestibular valerá pela faculdade, a faculdade pelo diploma e estágio, este último pela efetivação. E, por isso, o primeiro emprego valerá pela carreira.
E cada degrau da mesma, pelo subsequente. Para que, no fim, quando nada ou pouca
coisa tenha valido por si mesma, ou simplesmente valido, alguém possa dizer
que a verdadeira razão de todo o vivido está fora da vida. Transcende.
Justiça é aquilo que faz o homem justo
Para Aristóteles a metafísica ou o suprassensível que
dá sentido ao mundo físico não é outro mundo, como para Platão, mas um princípio de movimento e transformação, um vir a ser algo que estaria embutido
na materialidade do mundo.
Imagine
uma semente. Semeada, vira planta. Para Aristóteles, a planta específica que a semente vem a ser já existia antes de a planta brotar e crescer. Existia na forma de um
vir a ser embutido na semente. A metafísica aristotélica não apenas as
uniformidades na natureza, mas também as particularidades das coisas. A
consequência
é que, da mesma maneira que cada um de nós possuiria uma essência metafísica que lhe fosse particular,
haveria um único lugar justo para cada um de nós na existência. Forma única e
particular de viver justamente e não um ideal universal de existência justa.
Vários pés de laranja nascidos, eles não são
iguais. Pertencem a um mesmo gênero: pés de laranja, mas uns têm mais folhas, outros dão mais laranjas e outros, ainda, as mais doces, de maneira que não há
dois pés de laranja idênticos. Cada semente realizou o ideal de laranjeira que
estava metafisicamente predestinado a ser.
Se
para Platão o
ideal é um só, então o justo e o injusto também seria um só sempre. Seria
possível condensar toda a ética em leis, códigos, gabaritos ou cartilhas da
vida ajustada e, consequentemente, bela e boa. Faria sentido o que livros de
autoajuda propõem. Vida feliz, boa e justa em dez lições. Qualidade de vida
pelo método fácil ou descubra quem mexeu no seu queijo e seja feliz. Já para Aristóteles, as coisas não seriam tão
simples assim. Sendo o ideal particular e único de cada ser, a vida seria ajustada,
bela e boa. Não
poderia, em suma, ser pensada por princípios válidos para toda e qualquer
situação.
Haverá um aparente paradoxo na ideia de justiça,
pois, por um lado, somos plenamente capazes de, em casos concretos, dizer o que
é justo ou injusto, porém, somos incapazes de dizer o que é a justiça em si
mesma, em essência. Uma ideia de justiça que fosse compatível com qualquer situação, com qualquer ajustamento da existência. Indefinível em códigos porque
a justiça não seria uma substância que pudesse ser apontada ou descrita de
alguma forma. Ela é um valor. Modo particular de julgar uma conduta ou
situação, essa sim uma substância. Substantiva é a vida, chamá-la de justa ou
injusta seria apenas um modo particular de avaliá-la.
Mas o que nos tornaria capazes, então, de julgar justamente, de fazer da vida
algo justo? Em
primeiro lugar, ela não é
algo que esteja fora de nós, em outro mundo, mas está dentro de nós, no homem
que age em conformidade com seu vir a ser. É essa ideia de justiça como algo
dentro do homem que leva Aristóteles a afirmar que justiça é aquilo que faz o
homem justo.
A
justiça aristotélica não é uma
lei que transcende até nós, vinda do além, mas uma força ou princípio de ação
que está em nós, um modo particular de ser e de agir que pode nos levar a
viver bem. Este "dentro de nós" seria a nossa alma ou psiké. O sentido
não só aristotélico, mas comum em grego para alma seria algo como "aquilo
que faz mover e pensar". Mas, se temos em nós tal princípio, se a justiça de alguma
forma emana de nós, então por que não vivemos todos de forma justa? Por que nem
todos somos homens justos? Porque justiça não é a única disposição de nossa
alma.
Tanto
Aristóteles quanto Platão
descrevem nossa alma como dividida em três partes. À parte mais superior de nosso corpo,
chamaram de racional, à mais inferior de apetitiva, à intermediária de ativa. Quando
guiados mais pela parte racional do que pelas demais, agiríamos racionalmente. Quando dominados mais
pela parte apetitiva do que pelas demais, agiríamos desejantemente, passionalmente. Já quando predomina a parte ativa, agiríamos impetuosamente,
num misto de razão e paixões, pensamento e fúria. A boa utilização da
razão seria a sabedoria, para Platão, e a prudência, para Aristóteles.
Se
para Platão
existe urna causa eficiente da ação justa, que seria a ideia do bem, ser sábio
significa conhecer o bem e usá-lo como critério de ação. Mas se para
Aristóteles não existe uma justiça em substância, o bom uso de nossa razão ou
inteligência se daria quando a ação fosse voltada para um resultado bom, quando avaliássemos bem as forças e dificuldades de uma ação qualquer e atingíssemos
a forma otimizada de seu resultado. Enquanto a sabedoria platônica é
conhecimento da lei da boa ação, a prudência aristotélica é razão prática,
razão voltada para a ação e não para o ideal ou a lei.
Para
Platão a justiça não seria uma virtude, mas uma ação compatível com o ideal de existência no cosmo. Para
agir justamente, o homem deveria reprimir suas paixões e seus desejos, e controlar sua
impetuosidade e seu medo para agir sob o comando da razão voltada para o ideal
de vida, a razão cujo conteúdo que prevalece é o ideal. Mas que fique claro
que a repressão dos
desejos, algo humano, não é a justiça em si, mas apenas um método, um caminho
para descobrir o justo lá em seu lugar: a ordem natural das coisas.
Para
Aristóteles, ao contrário, a
justiça seria uma virtude. Há homens que são, de fato mais temperados e outros
mais racionais, mas ninguém seria apenas racional e apático enquanto outros
totalmente passionais e irracionais. Não faz sentido para Aristóteles a ideia
de que um homem cujo o espírito conheça a lei justa torne-se, só por isso, um
homem justo. É
preciso ser justo sendo, ao mesmo tempo, um ser desejante e racional. É preciso
ser corajoso, prudente e temperado para ser também justo.
Mas
ter todas essas virtudes apenas, sem que houvesse entre elas um equilíbrio. Imagine alguém que tivesse muita prudência, mas que fosse
um covarde. Seria alguém que saberia exatamente o que fazer, mas não teria
coragem para levar a cabo o que sabe ser correto.
Justa seria a ação
simultaneamente prudente, temperada e corajosa. Justiça, portanto, é
equilíbrio, não propriamente entre bens ou entre malefícios e benefícios, mas
sobretudo o equilíbrio entre as virtudes. Equilíbrio que, se mantido, torna o
homem capaz de bem reproduzi-lo no mundo, distribuindo e bem equacionando
benefícios e malefícios de forma prudente, corajosa e temperada.
Da ideia ao sentimento
Tanto
numa quanto em outra concepção há
algo em comum. O resultado da justiça é a harmonia do cosmo restabelecida ou
não contrariada e é essa harmonia que perceberíamos como bela e boa. Boa porque
a vida em harmonia é mais agradável do que em desarmonia, e bela porque o
próprio referencial de beleza seria a harmonia cósmica e da feiura a
desarmonia, o estar fora de lugar.
Imagine,
portanto, utilizares serviços
de um barbeiro que está em harmonia com o cosmo. Indivíduo cujo lugar no mundo é
na barbearia. Nasceu para barbear e bigodear. Faz seu trabalho com prudência,
coragem e temperança. É barbeiro justo, que corta ajustadamente. Como
conceituava Aristóteles,
é vida eudemônica, de eudemonia ou a vida que vale a pena ser vivida,
uma que não é meio para nenhuma outra, mas antes um fim em si mesmo. O barbeiro
não estaria a barbear para realizar outra vida, já está na vida boa,
barbeando. Vida boa para o barbeiro é boa também para quem se vale de seus
serviços, pois é tratado com justiça e tem cabelos e bigodes afeitados em
precisa justeza. É vida bela de se contemplar, tanto a do barbeiro a barbear
quanto a do freguês de barba e bigodes por ele aparados.
O
mesmo resultado bom e belo se daria numa justiça platônica. O barbeiro que deseja viver
outra vida que não aquela, que deseja ser despachante do Detran, por exemplo,
reprimindo sua insatisfação, segue a lei da boa barbearia. O
cliente também
veria a beleza e a bondade no trabalho e na harmonia de sua realização. Só não sei se daria gorjeta por causa da
antipatia deste despachante frustrado.
Admitindo-se
que o mundo não
seja um todo harmônico, como os antigos gregos acreditavam, que a natureza não
seja um sistema perfeito e nem mesmo um sistema, mas uma sequência caótica de acontecimentos. Encontros
materiais que não têm o menor sentido. Orquestração de eventos regida por um
sádico caprichoso e inconstante. Ainda assim, nós insistimos em perceber a
natureza como uma ordem qualquer.
Talvez
a vida não
tenha o menor sentido, mas isso não significa que consigamos viver uma vida sem
sentido. Nós damos sentidos à existência, ainda que precários, ainda que outros
achem que o sentido que damos à nossa existência seja idiota e sem sentido. Assim,
alguns passam a vida a pesquisar as mariposas da Indonésia, feliz com seu
trabalho de campo, ambicioso de compreender todos os aspectos de todas as mariposas.
Outros dedicam-se a estudar todas as versões do Big Brother Brasil, leem com afinco as poesias de Pedro Bial sonhando em um dia participar do programa.
Nenhum destes sentidos de existir se parece com o ideal no sentido platônico,
porque não é universal. É o sentido da vida de Manuel, diferente do ideal de
vida de Joaquim. De ideal em ideal, cada um com sua vida.
O
mesmo parece se dar com relação à
nossa percepção do mundo. Ele pode não ter um sentido ou uma ordem, mas isto
não quer dizer que consigamos percebê-lo como um todo caótico e sem harmonia.
Nós o ordenamos, ainda que apenas em nossas mentes, ainda que somente para dar
um sentido precário à uma existência atribulada.
ÉTICA A NICÔMACO
O conceito de felicidade
No sistema de
Aristóteles, a ética, juntamente com a política, pertence ao
domínio do saber prático, que pode ser
contrastado ao saber teórico. Enquanto no âmbito do saber teórico, que inclui a
metafísica, a matemática e as ciências naturais,
sobretudo a física, o objetivo é o conhecimento da
realidade em suas leis e princípios mais gerais, no domínio do saber prático o intuito é estabelecer sob
que condições podemos agir da
melhor forma possível tendo em vista o nosso objetivo
primordial que é a felicidade (eudaimonia), ou a realização pessoal. Esse
saber prático é por vezes também denominado
prudencial, por ter como faculdade definidora a prudência, como em
alguns casos se traduz o termo grego phronesis
(que pode ser traduzido ainda como razão prática, ou
capacidade de discernimento). No que consiste essa felicidade e como é possível ao ser humano
alcançá-la são as questões centrais da Ética a Nicômaco. Para obter respostas, Aristóteles examina a
natureza humana e suas características definidoras do ponto de vista ético: as virtudes.
Grande parte da discussão do texto é dedicada,
portanto, ao conceito de virtude moral (aretê), ou excelência de caráter.
A Ética Nicomaqueia, ou Ética a Nicômaco, de Aristóteles (384-22 a.C.), foi o primeiro tratado
de ética da tradição filosófica ocidental e
também pioneiro no uso
do termo "ética" no sentido em que o empregamos até hoje, como um
estudo sistemático sobre as normas e os princípios que regem a ação humana e com
base nos quais essa ação é avaliada em relação a seus fins. O texto ficou conhecido como Ética a Nicômaco por ter sido dedicado a Nicômaco, filho de
Aristóteles. A obra
marcou profundamente a discussão subsequente sobre ética, definindo as
linhas centrais de discussão filosófica nessa área.
Dos Capítulos 4 ao 7 do
Livro I, dentre os quais destacamos o Capítulo 6, encontramos a caracterização aristotélica da felicidade
(eudaimonia) como objetivo
visado por todo ser humano. O termo eudaimonia
pode ser entendido também como bem-estar, principalmente como
bem-estar em relação a algo que se realiza. Portanto, na concepção aristotélica a felicidade
está relacionada à realização humana e ao
sucesso naquilo que se pretende obter, o que só se dá se aquilo que se
faz é bem-feito, ou
seja, corresponde à excelência humana e depende de uma virtude (aretê)
ou qualidade de caráter que torna possível essa realização.
A noção de felicidade é central à ética aristotélica, que por esse
motivo é caracterizada como
"ética eudaimônica".
Trechos da obra:
“Se há portanto um fim visado em tudo que fazemos,
este fim é o bem atingível pela atividade, e se há mais de um, estes são os
bens atingíveis pela atividade.
(...) Chamamos
aquilo que é mais digno de ser perseguido
em si mais final que aquilo que é
digno de ser perseguido por causa de outra coisa, e aquilo que nunca é
desejável por causa de outra coisa chamamos de mais final que as coisas
desejáveis tanto em si quanto por causa de outra coisa, e portanto chamamos
absolutamente final aquilo que é sempre desejável em si, e nunca por causa de
algo mais. Parece que a felicidade, mais que qualquer outro bem, é tida como
este bem supremo, pois a escolhemos sempre por si mesma, e nunca por causa de
algo mais; mas as honrarias, o prazer, a inteligência e todas as outras formas
de excelência, embora as escolhamos por si mesmas (escolhê-las-íamos ainda que
nada resultasse delas), escolhemo-las por causa da felicidade, pensando que
através delas seremos felizes. Ao contrário, ninguém escolhe a felicidade por
causa das várias formas de excelência, nem, de um modo geral, por qualquer
outra coisa além dela mesma.”
ÉTICA A NICÔMACO
A
virtude é um hábito
Aristóteles sustenta que
a virtude é um hábito e, portanto, não só pode, mas também deve ser
ensinada, constituindo-se talvez numa das tarefas mais importantes da educação do homem.
Trechos da obra:
“(...)
há duas espécies de excelência: a intelectual e
a moral. Em grande parte a excelência intelectual deve tanto o seu nascimento
quanto o seu desenvolvimento à instrução (por isto ela requer experiência e
tempo); quanto à excelência moral, ela é o produto do hábito, razão pela qual
seu nome é derivado, com uma ligeira variação, da palavra "hábito".
É evidente, portanto, que nenhuma das várias formas de excelência moral se
constitui em nós por natureza, pois nada que existe por natureza pode ser
alterado pelo hábito.
(...)
toda excelência moral é produzida e
destruída pelas mesmas causas e pelos mesmos meios, tal como acontece com toda
parte, pois é tocando a citara que se formam tanto os bons quanto os maus
citaristas, e uma afirmação análoga se aplica aos construtores e a todos os
profissionais; os homens são bons ou maus construtores por construírem bem ou
mal. (...) O mesmo se aplica aos desejos e à ira; algumas pessoas se tornam moderadas e
amáveis, enquanto outras se tornam concupiscentes ou irascíveis, por se
comportarem de maneiras diferentes nas mesmas circunstâncias. Em uma palavra,
nossas disposições morais resultam das atividades correspondentes às mesmas. É
por isto que devemos desenvolver nossas atividades de uma maneira
predeterminada, pois nossas disposições morais correspondem às diferenças
entre nossas atividades.”
ÉTICA A NICÔMACO
A
doutrina do meio-termo
A ação correta do ponto
de vista ético deve evitar
os extremos, tanto o excesso quanto a falta, caracterizando-se assim pelo equilíbrio, ou justa medida.
A sabedoria prática (phronesis) consiste na
capacidade de discernir essa medida, cuja determinação poderá variar de acordo
com as circunstâncias e situações envolvidas. A moderação, ou temperança (sophrosyné), é a característica do indivíduo equilibrado no
sentido ético.
Trechos da obra:
“Em relação ao meio-termo, em alguns casos é a falta e em outros é o excesso que está mais afastado; por exemplo, não é a temeridade, que é o excesso, mas a covardia, que é a falta, que é mais oposta à coragem, e não é a insensibilidade, que é uma falta, mas a concupiscência [cobiça de bens materiais e prazeres sensuais], que é um excesso, que é mais oposta à moderação. (...) Chamamos, portanto, contrárias ao meio-termo as coisas para as quais nos sentimos mais inclinados; logo, a concupiscência, que é um excesso, é mais contrária à moderação.
(...) a excelência moral é um meio-termo e em que sentido ela o é, e que ela é um meio-termo entre duas formas de deficiência moral, uma pressupondo excesso e outra pressupondo falta, e que a excelência moral é assim porque sua característica é visar às situações intermediárias nas emoções e nas ações.
(...) Mas devemos estar atentos aos erros para os quais nós mesmos nos inclinamos mais facilmente, pois algumas pessoas tendem para uns e outras para outros; descobri-los-emos mediante a observação do prazer ou do sofrimento que experimentamos; isto feito, devemos dirigir-nos resolutamente para o extremo oposto, pois chegaremos à situação intermediária afastando-nos tanto quanto possível do erro (...).
Em tudo devemos precaver-nos, principalmente contra o que é agradável e contra o prazer, pois não somos juízes imparciais diante deste.
(...) Entretanto, as pessoas que se desviam um pouco da excelência não são censuradas, quer o façam no sentido do mais, quer o façam no sentido do menos; censuramos apenas as pessoas que se desviam consideravelmente, pois estas não passarão despercebidas. Mas não é fácil determinar racionalmente até onde e em que medida uma pessoa pode desviar-se antes de tornar-se censurável (de fato, nada que é percebido pelos sentidos é fácil de definir); tais coisas dependem de circunstâncias específicas, e a decisão depende da percepção. Isto é bastante para determinar que a situação intermediária deve ser louvada em todas as circunstâncias, mas que às vezes devemos inclinar-nos no sentido do excesso, e às vezes no sentido da falta, pois assim atingiremos mais facilmente o meio-termo e o que é certo.”
Trechos da obra:
“Mas as considerações seguintes evidenciarão que a felicidade perfeita é uma atividade contemplativa. Os deuses, como os concebemos, são sumamente bem-aventurados e felizes; mas que espécie de atividade devemos atribuir-lhes? (...) Se percorrermos todo o rol das formas de excelência moral, as circunstâncias das ações parecerão triviais e são indignas de deuses. Ainda assim, todos supomos que eles vivem e, portanto, que eles estão em atividade. (...) Se privarmos um ser humano da ação, e mais ainda de produzir alguma coisa, que lhe deixaremos senão a contemplação? Portanto, a atividade dos deuses, que supera todas as outras em bem-aventurança, deve ser contemplativa; consequentemente, entre as atividades humanas a que tiver mais afinidades com a atividade de Deus será a que proporciona a maior felicidade.
(...) Então a felicidade chega apenas até onde há contemplação, e as pessoas mais capazes de exercerem a atividade contemplativa fruem mais intensamente a felicidade, não como um acessório da contemplação, mas como algo inerente a ela, pois a contemplação é preciosa por si mesma. A felicidade, portanto, deve ser alguma forma de contemplação.
Mas, sendo criaturas humanas, necessitamos também de bem-estar exterior, pois nossa natureza não é suficiente por si mesma para o exercício da atividade contemplativa. Nosso corpo deve ser também saudável e deve receber boa alimentação e outros cuidados. Nem por isto, porém, devemos pensar que as pessoas necessitam de muitas e grandes coisas para ser felizes, simplesmente porque não podem ser sumamente felizes sem bens exteriores; com efeito, a autossuficiência e a ação não pressupõem excessos, e podemos praticar ações nobilitantes sem dominar a terra e o mar, porquanto mesmo com recursos moderados é possível agir de conformidade com a excelência (isto é bastante evidente, pois se pensa que os simples cidadãos praticam atos meritórios não menos que os detentores do poder - na verdade os praticam ainda mais); basta dispormos de recursos moderados, pois a vida das pessoas que agem de conformidade com a excelência será feliz.
As pessoas que usam sua própria razão e a cultivam parecem ter o espírito nas melhores condições e ser mais queridas pelos deuses. De fato, se os deuses se interessam de algum modo pelos assuntos humanos, como geralmente se crê, é razoável imaginar que aquilo que é melhor e tem maiores afinidades com eles (isto é, a razão) lhes dê prazer, e que eles recompensem as pessoas que amam e honram a razão acima de tudo, porque tais pessoas cuidam do que é caro aos deuses e agem retamente de maneira nobilitante [nobre]. Agora é claro que todos estes atributos pertencem às pessoas sábias mais que a quaisquer outras. Elas, portanto, são as mais caras aos deuses, e quem estiver nestas condições será provavelmente mais feliz. Sendo assim então, o sábio é o homem mais feliz.
(...) saber o que é a excelência moral e a intelectual não é o bastante; devemos nos esforçar para possuí-las e praticá-las, ou experimentar qualquer outro meio existente para nos tornarmos bons.
(...) apesar de as palavras parecerem ter o poder de encorajar e estimular os jovens de espírito generoso, e, diante de uma nobreza inata de caráter e de um amor autêntico ao que é nobilitante, ser capazes de torná-los susceptíveis à excelência moral, elas são impotentes para incitar a maioria das pessoas à prática da excelência moral. Com efeito, a maior parte das pessoas não obedece naturalmente ao sentimento de honra, mas somente ao de temor, e não se abstém da prática de más ações por causa da baixeza destas, mas por temer a punição; vivendo segundo os ditames das emoções, busca seus próprios prazeres e os meios para chegar a eles, e evita os sofrimentos contrários, não tem sequer noção do que é nobilitante e verdadeiramente agradável, já que nunca experimentou tais coisas. Que palavras regenerariam esse tipo de pessoa? É difícil, senão impossível, remover, mediante palavras, hábitos há longo tempo incorporados ao caráter dos homens. Talvez devamos nos considerar felizes se conseguirmos dar-lhes uma aparência de excelência moral quando dispomos de todos os meios para influenciar as pessoas no sentido de torná-las boas.
Alguns estudiosos acreditam que a natureza nos fez bons, outros que nos tornamos bons pelo hábito, outros pela instrução. Os dotes naturais evidentemente não dependem de nós. Mas em decorrência de alguma causa divina estão presentes nas pessoas verdadeiramente favorecidas pela sorte; quanto às palavras e à instrução, receamos que não sejam eficazes em relação a todas as pessoas, mas que a alma de quem aprende deve primeiro ser cultivada por hábitos que induzam quem aprende a gostar e a desgostar acertadamente, à semelhança da terra que deve nutrir a semente. Realmente, as pessoas que vivem ao sabor de suas próprias emoções não ouvem as palavras que podem persuadi-las, e se as ouvem não as entendem; e como podemos persuadir as pessoas em tal estado a mudar de caminho? E de modo geral as emoções parecem ceder não à palavra, mas à força. O caráter, portanto, deve de alguma maneira estar previamente provido de alguma afinidade com a excelência moral, amando o que é nobilitante e detestando o que é aviltante [indigno].”
Trechos da obra:
“Em relação ao meio-termo, em alguns casos é a falta e em outros é o excesso que está mais afastado; por exemplo, não é a temeridade, que é o excesso, mas a covardia, que é a falta, que é mais oposta à coragem, e não é a insensibilidade, que é uma falta, mas a concupiscência [cobiça de bens materiais e prazeres sensuais], que é um excesso, que é mais oposta à moderação. (...) Chamamos, portanto, contrárias ao meio-termo as coisas para as quais nos sentimos mais inclinados; logo, a concupiscência, que é um excesso, é mais contrária à moderação.
(...) a excelência moral é um meio-termo e em que sentido ela o é, e que ela é um meio-termo entre duas formas de deficiência moral, uma pressupondo excesso e outra pressupondo falta, e que a excelência moral é assim porque sua característica é visar às situações intermediárias nas emoções e nas ações.
(...) Mas devemos estar atentos aos erros para os quais nós mesmos nos inclinamos mais facilmente, pois algumas pessoas tendem para uns e outras para outros; descobri-los-emos mediante a observação do prazer ou do sofrimento que experimentamos; isto feito, devemos dirigir-nos resolutamente para o extremo oposto, pois chegaremos à situação intermediária afastando-nos tanto quanto possível do erro (...).
Em tudo devemos precaver-nos, principalmente contra o que é agradável e contra o prazer, pois não somos juízes imparciais diante deste.
(...) Entretanto, as pessoas que se desviam um pouco da excelência não são censuradas, quer o façam no sentido do mais, quer o façam no sentido do menos; censuramos apenas as pessoas que se desviam consideravelmente, pois estas não passarão despercebidas. Mas não é fácil determinar racionalmente até onde e em que medida uma pessoa pode desviar-se antes de tornar-se censurável (de fato, nada que é percebido pelos sentidos é fácil de definir); tais coisas dependem de circunstâncias específicas, e a decisão depende da percepção. Isto é bastante para determinar que a situação intermediária deve ser louvada em todas as circunstâncias, mas que às vezes devemos inclinar-nos no sentido do excesso, e às vezes no sentido da falta, pois assim atingiremos mais facilmente o meio-termo e o que é certo.”
ÉTICA A NICÔMACO
A felicidade
No último livro da Ética a Nicômaco, portanto na conclusão da obra, Aristóteles retoma o
conceito de felicidade e esclarece que ela não deve ser confundida com os prazeres, mas
sim, em seu sentido mais elevado, deve ser entendida como a contemplação das verdades
eternas, a atividade característica do sábio ou do filósofo.Trechos da obra:
“Mas as considerações seguintes evidenciarão que a felicidade perfeita é uma atividade contemplativa. Os deuses, como os concebemos, são sumamente bem-aventurados e felizes; mas que espécie de atividade devemos atribuir-lhes? (...) Se percorrermos todo o rol das formas de excelência moral, as circunstâncias das ações parecerão triviais e são indignas de deuses. Ainda assim, todos supomos que eles vivem e, portanto, que eles estão em atividade. (...) Se privarmos um ser humano da ação, e mais ainda de produzir alguma coisa, que lhe deixaremos senão a contemplação? Portanto, a atividade dos deuses, que supera todas as outras em bem-aventurança, deve ser contemplativa; consequentemente, entre as atividades humanas a que tiver mais afinidades com a atividade de Deus será a que proporciona a maior felicidade.
(...) Então a felicidade chega apenas até onde há contemplação, e as pessoas mais capazes de exercerem a atividade contemplativa fruem mais intensamente a felicidade, não como um acessório da contemplação, mas como algo inerente a ela, pois a contemplação é preciosa por si mesma. A felicidade, portanto, deve ser alguma forma de contemplação.
Mas, sendo criaturas humanas, necessitamos também de bem-estar exterior, pois nossa natureza não é suficiente por si mesma para o exercício da atividade contemplativa. Nosso corpo deve ser também saudável e deve receber boa alimentação e outros cuidados. Nem por isto, porém, devemos pensar que as pessoas necessitam de muitas e grandes coisas para ser felizes, simplesmente porque não podem ser sumamente felizes sem bens exteriores; com efeito, a autossuficiência e a ação não pressupõem excessos, e podemos praticar ações nobilitantes sem dominar a terra e o mar, porquanto mesmo com recursos moderados é possível agir de conformidade com a excelência (isto é bastante evidente, pois se pensa que os simples cidadãos praticam atos meritórios não menos que os detentores do poder - na verdade os praticam ainda mais); basta dispormos de recursos moderados, pois a vida das pessoas que agem de conformidade com a excelência será feliz.
As pessoas que usam sua própria razão e a cultivam parecem ter o espírito nas melhores condições e ser mais queridas pelos deuses. De fato, se os deuses se interessam de algum modo pelos assuntos humanos, como geralmente se crê, é razoável imaginar que aquilo que é melhor e tem maiores afinidades com eles (isto é, a razão) lhes dê prazer, e que eles recompensem as pessoas que amam e honram a razão acima de tudo, porque tais pessoas cuidam do que é caro aos deuses e agem retamente de maneira nobilitante [nobre]. Agora é claro que todos estes atributos pertencem às pessoas sábias mais que a quaisquer outras. Elas, portanto, são as mais caras aos deuses, e quem estiver nestas condições será provavelmente mais feliz. Sendo assim então, o sábio é o homem mais feliz.
(...) saber o que é a excelência moral e a intelectual não é o bastante; devemos nos esforçar para possuí-las e praticá-las, ou experimentar qualquer outro meio existente para nos tornarmos bons.
(...) apesar de as palavras parecerem ter o poder de encorajar e estimular os jovens de espírito generoso, e, diante de uma nobreza inata de caráter e de um amor autêntico ao que é nobilitante, ser capazes de torná-los susceptíveis à excelência moral, elas são impotentes para incitar a maioria das pessoas à prática da excelência moral. Com efeito, a maior parte das pessoas não obedece naturalmente ao sentimento de honra, mas somente ao de temor, e não se abstém da prática de más ações por causa da baixeza destas, mas por temer a punição; vivendo segundo os ditames das emoções, busca seus próprios prazeres e os meios para chegar a eles, e evita os sofrimentos contrários, não tem sequer noção do que é nobilitante e verdadeiramente agradável, já que nunca experimentou tais coisas. Que palavras regenerariam esse tipo de pessoa? É difícil, senão impossível, remover, mediante palavras, hábitos há longo tempo incorporados ao caráter dos homens. Talvez devamos nos considerar felizes se conseguirmos dar-lhes uma aparência de excelência moral quando dispomos de todos os meios para influenciar as pessoas no sentido de torná-las boas.
Alguns estudiosos acreditam que a natureza nos fez bons, outros que nos tornamos bons pelo hábito, outros pela instrução. Os dotes naturais evidentemente não dependem de nós. Mas em decorrência de alguma causa divina estão presentes nas pessoas verdadeiramente favorecidas pela sorte; quanto às palavras e à instrução, receamos que não sejam eficazes em relação a todas as pessoas, mas que a alma de quem aprende deve primeiro ser cultivada por hábitos que induzam quem aprende a gostar e a desgostar acertadamente, à semelhança da terra que deve nutrir a semente. Realmente, as pessoas que vivem ao sabor de suas próprias emoções não ouvem as palavras que podem persuadi-las, e se as ouvem não as entendem; e como podemos persuadir as pessoas em tal estado a mudar de caminho? E de modo geral as emoções parecem ceder não à palavra, mas à força. O caráter, portanto, deve de alguma maneira estar previamente provido de alguma afinidade com a excelência moral, amando o que é nobilitante e detestando o que é aviltante [indigno].”
MARCONDES, Danilo. Textos básicos de filosofia: dos pré-socráticos a wittgestein. Zahar, 2011.
MARCONDES, Danilo. Textos básicos de ética. De Platão a Foucault.(4 a ed.) Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
DE BARROS FILHO, Clóvis. POMPEU, Júlio. A Filosofia Explica as Grandes Questões da Humanidade. Casa do Saber, 2014.
MARCONDES, Danilo. Textos básicos de ética. De Platão a Foucault.(4 a ed.) Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
DE BARROS FILHO, Clóvis. POMPEU, Júlio. A Filosofia Explica as Grandes Questões da Humanidade. Casa do Saber, 2014.