segunda-feira, 19 de outubro de 2015

CULTURA DE MASSA


Cultura de Massa


A Cultura de Massa (ou “cultura pop”) é o produto realizado pela Indústria Cultural, com o intuito de atingir a massa social, considerando “massa” em seu sentido de coesão e opacidade.

Portanto, cultura de massas é o meio e o fim pelo qual se submetem as mais variadas expressões culturais a um ideal comum e homogêneo, tendo em vista que a cultura de massas tem a propriedade de absorver os antagonismos e transcender distinções sociais, étnicas, sexuais, etárias, etc., transformando-os em produtos para o consumo num mundo de consumidores livres.

Cultura de Massa vs Cultura Erudita

Com efeito, a cultura de massas está intimamente ligada ao advento da modernidade; no século XIX, donde esse termo foi utilizado para fazer antagonismo entre a educação recebida pelas massas à educação recebida pelas elites, ou seja, a cultura erudita.

Indústria Cultural

Contudo, a expressão “cultura de massas” passou a designar também o consumo de alguns bens e serviços da sociedade industrializada. Por sua vez, o termo, tal como é visto atualmente, especialmente por sua natureza comercial e manipulativa, consolidou-se após a II Guerra Mundial, quando Theodor Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1896-1973) fundam a Escola de Frankfurt e criaram o termo “Indústria Cultural”, para se referir aos grandes conglomerados midiáticos globais detentores dos meios de comunicação de massa, os quais são utilizados na padronização de produtos, notícias, serviços, etc.

De partida, vale destacar a influência marxistas desta interpretação, a qual pressupõe a economia enquanto "mola propulsora" da realidade social. Por conseguinte, a expressão “Indústria Cultural” surge ainda na década de 1940, no livro “Dialética do Esclarecimento: Fragmentos Filosóficos”, escrito em 1942 e publicado em 1972.

Sem espanto, na Indústria Cultural se fabricam ilusões padronizadas e extraídas do manancial cultural e artístico, os quais se mercantilizam sob o aspecto de produtos culturais voltados para obter lucro e reproduzir os interesses das classes dominantes, legitimando-as e perpetuando-as socialmente. Assim, ao submeter os consumidores à lógica da Indústria Cultural, a classe dominante aliena as dominadas, tornando-as incapazes de elaborarem um pensamento crítico que impeça a reprodução ideológica do sistema capitalista.

O aperfeiçoamento tecnológico da Indústria Cultural permitiu que se perpetuasse o desejo de posse pela renovação técnico-científica. Ademais, qualquer comportamento que desviante das necessidades do consumo é combatido e tratado como anormal pela Indústria Cultural. Por fim, a cultura popular e erudita são simplificadas e falsificadas para se transformarem em produtos consumíveis, o que provoca a decadência das formas mais originais e criativas de fazer cultura e arte.

Em suma, a cultura de massas é um produto padronizado e pré-definido para o consumo imediato, considerado muitas vezes como algo trivial, tal qual ouvir uma música ou assistir um programa de televisão. Vale lembrar que a cultura de massa é muito distinta da “cultura erudita” e da “cultura popular”, mas incorpora seus atributos, banalizando-os e esvaziando-os de seu conteúdo originais, pois valoriza somente os aspectos que caem no gosto da massa e possuem potencial para lucro, oprimindo assim, outras manifestações culturais que vão perdendo espaço e legitimação social paulatinamente (de modo lento).


Ilusionismos da Indústria Cultural

Inicialmente, devemos salientar que a Indústria Cultural e os meios de comunicação em massa, bem como as ferramentas de propaganda (publicidade, marketing), são inseparáveis e indistintos.

Serão estes veículos e ferramentas os responsáveis pela criação e manutenção da crença de “liberdade individual”, livre de qualquer padronização e que proporcionam o sentimento de satisfação pelo consumo, como se a felicidade pudesse ser comprada.

De tal maneira, na maioria das vezes, os produtos adquiridos não fornecem o que prometem (alegria, sucesso, juventude) e iludem facilmente o consumidor, prendendo-o num ciclo vicioso de conformismo.


Cultura de Massas e o Capitalismo

Como vimos, a cultura de massas padroniza e homogeneíza os produtos; contudo, isso gera o mesmo efeito nos consumidores, os quais são induzidos a desejos e necessidades superficiais. Tudo isso tem uma meta muito clara: as vendas e o consumo. Desse modo, substitui-se a vasta gama de cultura erudita, cultura popular e folclórica, por simulações dessas culturas autênticas, pois esses simulacros devem satisfazer um denominador comum, para um consumidor comum.

Isso sugere a simplificação dessas culturas para vendê-las em larga escala, segundo a lógica do capitalismo industrial e financeiro. Assim, assume-se que a cultura de massas agrada uma grande maioria anônima e amorfa (sem forma) de consumidores, quando na verdade mascara os interesses de lucro fácil e garantido para os referidos conglomerados midiáticos mundiais.

Portanto, isso explica o caráter mercantil, alienante e manipulador da Indústria Culturalprincipal responsável pela padronização dos indivíduos em nome do lucro e em detrimento do real valor artístico do produto.



Cultura de Massas e as Mídias

Outro fato bastante conhecido sobre a cultura de massas é sua associação aos meios de comunicação de massas. Ora, as inovações tecnológicas, como o cinema, o rádio, a televisão e, recentemente, a internet, aceleraram ainda mais o processo de homogeneização cultural; sem espanto, estas inovações foram utilizadas desde os primórdios com finalidades políticas.

Por conseguinte, essas mídias são as porta vozes da Indústria Cultural e dominam o campo da comunicação, onde se tornam sobrevalorizadas em relação aos receptores das mensagens, legitimando-se e ficando mais forte na mesma medida em que os receptores se tornam iguais e fracos.

Por outro lado, além de homogeneizar os padrões culturais, os canais midiáticos são os principais responsáveis pela alienação dos consumidores por meio dos produtos culturais em série, os quais não conseguem mais enxergar toda a cadeia de eventos que envolve a Indústria Cultural e seu produto: a cultura de massas.


Aspectos Positivos da Indústria Cultural

 

Nem tudo é negativo na ação capitalista da Indústria Cultural. Sob este respeito, Walter Benjamin (1892-1940) acredita que esta seja também uma via de democratização para a arte, uma vez que os mesmos mecanismos que alienam, são capazes de levar cultura para um número maior de pessoas, bem como permite a empreitada não comercial, já que possibilita o acesso às ferramentas para a produção cultural.

Já Adorno afirmava que a Indústria Cultural atuava como formadora das mentalidades; contudo, não eram utilizadas de modo esclarecedor, o que também é uma possibilidade virtual deste sistema.

Portanto, se a Indústria Cultural foi a principal responsável pela alienação promovida pela destituição da arte de seu papel transformador, também pode ser ela a única capaz de difundir e ressignificar a arte enquanto fator de transformação social.


domingo, 2 de agosto de 2015

IDEOLOGIA

Uma ideologia é um conjunto de ideias conscientes e inconscientes que constituem os objetivos primordiais do indivíduo, expectativas e ações. Uma ideologia é uma visão abrangente, uma maneira de olhar as coisas como em várias tendências filosóficas, ou um conjunto de ideias propostas pela classe dominante de uma sociedade para todos os membros da mesma (o chamado produto da socialização). As ideologias são sistemas de pensamento abstratos aplicados a questões públicas, tornando este conceito central para a análise política. Implicitamente, qualquer tendência política ou econômica implica uma ideologia, sendo ela uma proposta explícita de pensamento ou não.

Karl Marx fixa o termo dentro da luta de classes e da opressão, outros acreditavam que ela é uma parte necessária do funcionamento institucional e de integração social. Karl Marx salienta a situação dos proletários em relação aos capitalistas: aqueles que possuíam mão-de-obra e conhecimento sobre a produção dos objetos, ao mesmo tempo não possuíam condições para adquirirem as mercadorias produzidas por eles próprios e se tornavam assim “subordinados” aos donos dos meios de produção. A partir desse desnível social, Marx idealiza o conceito de luta de classes, o que é o cume da filosofia “Maximiana”, levando-nos a compreender em linhas gerais o que a autora apresenta como “a ideologia burguesa de Marx e Engels”, os quais afirmam: “A ideologia burguesa, através de seus intelectuais, irá produzir ideias que confirmem essa alienação, fazendo, por exemplo, com que os homens creiam que são desiguais por natureza e por talentos, ou que são desiguais por desejo próprio, isto é, os que honestamente trabalham, enriquecem; e os preguiçosos empobrecem”. Na teoria de Marx e Engels não tem por simples objetivo “conscientizar” os indivíduos quanto à “ideologia” falsa que lhes é apresentada, e sim desvendar os processos reais de dominação de uns poucos sobre os outros. É impossível compreender a ideologia sem ter a compreensão da luta de classes, apresentada em termos de Materialismo Histórico e Dialético por Karl Marx.
Outros caminhos pelos quais a ideologia burguesa passou até chegar a seu estágio atual é a de um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (ideias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem fazer. Ela é, portanto, um corpo explicativo (representações) e prático (normas, regras e preceitos) de caráter prescritivo, normativo, regulador, cuja função é dar aos membros de uma sociedade dividida em classes uma explicação racional para as diferenças sociais, políticas e culturais, sem jamais atribuir tais diferenças às divisões da sociedade em classes a partir das divisões na esfera da produção. A função da ideologia se torna a de apagar as diferenças como as de classes e fornecer aos membros da sociedade o sentimento da identidade social, encontrando certos referenciais identificadores de todos e para todos, como a Humanidade, a Igualdade, a Nação ou o Estado.

Pesquisas psicológicas sugerem que cada vez mais as ideologias refletem (inconscientemente) processos motivacionais, em oposição à visão de que as convicções políticas sempre refletem o pensamento independente e imparcial. Estudiosos propõem que as ideologias podem funcionar como unidades pré-embalados de interpretação que se espalham por causa de motivos humanos básicos para compreender o mundo, evitar a ameaça existencial, e manter relacionamentos interpessoais valorizadas. Os autores concluem que tais motivos podem levar desproporcionalmente para a adoção do sistema de justificar visões de mundo.

A ideologia, então, é um conjunto de valores, crenças e ações culturais que justificam ou procuram modificar um determinado status quo, servindo de base para movimentos sociais que desejam a manutenção ou a mudança, como aqueles que defendem a causa ecológica, homossexual, feminista, etc. Num sentido amplo, podemos afirmar que a ideologia justifica e explica estilos de vida, por isso está presente na cultura das sociedades, seja na ideia de família ou mesmo no âmbito religioso.

sábado, 1 de agosto de 2015

A pós-modernidade – O caso Nietzsche


O caso Nietzsche


Os "pós-modernos" vão atacar duas das mais importantes convicções que animavam os Modernos do século XVII ao XIX: aquela segundo a qual o ser humano seria o centro do mundo, o princípio de todos os valores morais e políticos; aquela que considera a razão um formidável poder libertador, e que, graças ao progresso das "Luzes", seremos, enfim, mais livres e mais felizes – em resumo: ao mesmo tempo crítica do humanismo e crítica do racionalismo.

A filosofia moderna destituiu o cosmos e criticou as autoridades religiosas substituindo-as pela razão e pela liberdade humana, pelo ideal democrático e humanista de valores morais construídos sobre a humanidade do homem, sobre o que constituía sua diferença específica em relação a todas as outras criaturas, a começar pelo animal. Com base numa verdadeira sacralização do espírito crítico, numa liberdade de pensamento que chega a fazer tabula rasa de todas as heranças passadas, de todas as tradições.

A razão e os ideais humanistas não se sustentarão, de modo que o mundo intelectual por eles edificado vai finalmente ser vítima dos próprios princípios nos quais repousava.

A ciência moderna, fruto do espírito crítico e da dúvida metodológica, destruiu as cosmologias e enfraqueceu consideravelmente, pelo menos num primeiro momento, as bases da autoridade religiosa. O humanismo não chegou a destruir inteiramente uma estrutura religiosa fundamental. Eis por que, aos olhos de Nietzsche, quando nossos republicanos herdeiros das Luzes se dizem ateus, ou mesmo materialistas, na verdade, permanecem crentes! Naturalmente, não por rezarem a Deus, mas porque não deixam de venerar quimeras, já que continuam a acreditar que alguns valores são superiores à vida, que o real deve ser julgado em nome do ideal, que é necessário transformá-lo para moldá-lo aos ideais superiores: os direitos do homem, a ciência, a razão, a democracia, o socialismo, a igualdade de oportunidades etc.

Em resumo, aos olhos dos pós-modernos, e particularmente de Nietzsche, o humanismo das Luzes, sem perceber, permanece prisioneiro das estruturas essenciais da religião que ele rechaçou, no ponto mesmo em que supõe tê-las ultrapassado. Mas Nietzsche afirmava
Melhorar a humanidade? Eis a última coisa que eu prometeria. Não esperem de mim que eu erija novos ídolos! Que os antigos aprendam antes quanto custa ter pés de barro! Derrubar "ídolos" — é assim que chamo todos os ideais —, esse é meu verdadeiro ofício. É inventando a mentira de um mundo ideal que se tira o valor da realidade, sua significação, sua veracidade... A mentira do ideal foi até agora a maldição que pesou sobre a realidade, a própria humanidade se tornou mentirosa e falsa até o mais fundo de seus instintos — até a adoração dos valores opostos àqueles que poderiam lhe garantir um belo crescimento, um futuro...

Na opinião dos pós-modernos, a democracia, qualquer que seja o conteúdo que lhe dermos, não é senão uma nova ilusão religiosa entre outras, e mesmo uma das piores, já que ela se dissimula frequentemente sob a aparência de uma ruptura com o mundo religioso, habitualmente declarando-se "laica".

Nietzsche pensa que todos os ideais, explicitamente religiosos ou não, possuem a mesma estrutura, a mesma finalidade: inventar um além melhor do que este mundo, de imaginar valores pretensamente superiores e exteriores à vida ou, no jargão dos filósofos, de valores "transcendentes". Seu verdadeiro objetivo não é ajudar a humanidade, mas apenas conseguir julgar e finalmente condenar a própria vida, negar o verdadeiro real em nome de falsas realidades, em lugar de assumi-la e aceitá-la tal como é. Não existe nada fora da realidade da vida, nem acima nem abaixo, nem no céu nem no inferno, e todos os célebres ideais da política, da moral e da religião são apenas "ídolos", inchaços metafísicos, ficções, que não visam nada a não ser fugir da vida, antes de se voltar contra ela.

O filósofo pós-moderno aprende, antes de qualquer outra coisa, a desconfiar das evidências primeiras, das ideias prontas, para ver o que há por trás, por baixo, de viés se for preciso, a fim de detectar os preconceitos dissimulados que os fundamentam em última instância. Nietzsche é um vanguardista, alguém que pretende acima de tudo inovar, fazer tabula rasa do passado.

Três grandes eixos aos quais você já se habituou na filosofia: theoria, práxis e doutrina da salvação. Não encontramos em Nietzsche uma theoria, uma práxis e uma doutrina da salvação no sentido em que as encontramos nos estoicos, nos cristãos ou mesmo em Descartes, Rousseau e Kant. Nietzsche é o que chamamos de "genealogista" — é assim que ele próprio se designava —, um "desconstrutivista", alguém que passou a vida dando surras nas ilusões da tradição filosófica, o que não escapa a ninguém.

Nietzsche não desconstrói a cosmologia grega, o cristianismo ou a filosofia das Luzes pelo simples prazer de negar ou destruir, mas para abrir espaço a pensamentos novos, radicais, que vão efetivamente constituir, embora em sentido inédito, uma theoria, uma práxis e até mesmo um pensamento da salvação de novo gênero.

Um pensamento inédito da doutrina da salvação: a doutrina do amor fati (o amor do momento presente, do "destino"), a "inocência do devir" e o eterno retorno

Procurar a salvação num Deus, ou em qualquer outra figura da transcendência que se queira pôr em seu lugar, é, diz ele ainda, "declarar guerra [...] à vida, à natureza, à vontade de viver!", é a fórmula de todas as calúnias "deste mundo", de todas as mentiras do "além".

No entanto, isso significa que toda aspiração à sabedoria e à beatitude deva, na opinião de Nietzsche, ser rejeitada? Nada é menos certo. Acredito, ao contrário, que Nietzsche, como todo verdadeiro filósofo, visa à sabedoria.

O sentido do eterno retorno: uma doutrina da salvação enfim totalmente terrestre, sem ídolos e sem Deus

Se não existem mais além, nem cosmos nem divindade, se os ideais fundadores do humanismo estão comprometidos, como distinguir não apenas o bem do mal, ou, ainda mais profundamente, o que vale a pena ser vivido e o que é medíocre? É para oferecer uma resposta a essa pergunta que a doutrina do eterno retorno foi inventada por Nietzsche. Para nos fornecer um critério, finalmente terrestre, de seleção do que merece e do que não merece ser vivido.

“E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: “Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência – e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez – e tu com ela, poeirinha da poeira!” Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderias: “Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!” Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: “Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?” pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?”

Nietzsche chega a propor explicitamente que se ponha a "doutrina do eterno retorno no lugar da 'metafísica' e da religião" — como ele colocou a genealogia no lugar da theoria, e o grande estilo no lugar dos ideais da moral.

Se não há mais transcendência, mais ideais, mais fuga possível num além, mesmo depois da morte de Deus, "humanizado" em forma de utopia moral ou política (a "humanidade", a "pátria", a "revolução", a "república", o "socialismo" etc.), é no seio deste mundo, permanecendo nesta terra e nesta vida, que é preciso aprender a distinguir o que vale ser vivido e o que merece perecer. É aqui e agora que se deve saber separar as formas de vida frustradas, medíocres, reativas e enfraquecidas, das formas de vida intensas, grandiosas, corajosas e ricas em diversidade.

Nietzsche se diverte parodiando Kant:
Se, em tudo o que você quer fazer, começar perguntando: "Tenho certeza de que desejo fazê-lo infinitas vezes?", isso se tornará o centro de gravidade mais sólido para você... Eis o ensinamento de minha doutrina: "Viva de forma a ter de desejar reviver — é o dever —, pois, em todo caso, você reviverá! Aquele para quem o esforço é a alegria suprema, que se esforce! Aquele que ama antes de tudo o repouso, que repouse! Aquele que ama antes de tudo se submeter, obedecer e seguir, que obedeça! Mas que saiba para o que dirige sua preferência, e não recue diante de nenhum meio! É a eternidade que está em jogo!"

Trata-se de interrogar nossas existências, a fim de fugir das falsas aparências e das meias medidas, de todas essas covardias que, ainda segundo Nietzsche, nos levariam a desejar esta ou aquela coisa "só uma vez", como uma concessão, todos esses momentos em que nos abandonamos à facilidade de uma exceção, sem a querer realmente.

Nietzsche nos convida, ao contrário, a viver de tal modo que nem os arrependimentos nem os remorsos tenham mais nenhum espaço, nenhum sentido. Essa é a verdadeira vida. A vida boa é a que consegue viver o instante sem referência nem ao passado nem ao futuro, sem condenação pessoal, com leveza absoluta, com o sentimento perfeito de que não há mais diferença real entre o passado e a eternidade.

A doutrina do amor fati (amor do que é no presente): fugir do peso do passado, assim, como das promessas do futuro

O amor fati tem a ver com esperar um pouco menos, lamentar um pouco menos, amar um pouco mais. Nunca permanecer nas dimensões não reais do tempo, no passado e no futuro, mas tentar, ao contrário, habitar tanto quanto possível o presente, dizer-lhe sim com amor (numa "afirmação dionisíaca", diz Nietzsche, referindo-se a Dioniso, o deus grego do vinho, da festa e da alegria, aquele que, por excelência, ama a vida).

Há uma contradição perturbadora entre as duas passagens de Nietzsche: de um lado, na doutrina do eterno retorno, ele nos pede para escolher o que queremos viver e reviver, em função do critério da repetição eterna do mesmo; e de outro, ele nos recomenda amar todo o real, qualquer que seja, sem nada tomar ou abandonar, e, sobretudo, nada querer além daquilo que é, sem nunca procurar escolher ou selecionar no interior do real! O critério do eterno retorno nos convidava à seleção apenas dos momentos dos quais desejássemos a infinita repetição, e eis que a doutrina do amor fati, que diz sim ao destino, não deve fazer nenhuma exceção para tudo tomar e tudo compreender num mesmo amor ao real. Como conciliar as duas teses?

A inocência do devir ou a vitória sobre o medo da morte

Se a doutrina do eterno retorno repercute como um eco na do amor fati, esta, por sua vez, culmina no ideal de uma inculpabilidade total. Pois a culpabilidade é o máximo do reativo, do conflito interior [entre si e si mesmo]. Somente o sábio, aquele que ao mesmo tempo pratica o grande estilo (senhor do caos interior, nutrindo forças ativas em si) e segue os princípios do eterno retorno, poderá alcançar a verdadeira serenidade. E ela exatamente que Nietzsche designa pela expressão "inocência do devir". Pois é assim e apenas assim que podemos, por fim, ser salvos. De quê? Como sempre, do medo. Por meio do quê? Como sempre, pela serenidade.

Diferentemente dos estoicos, sem dúvida, Nietzsche não pensa que o mundo seja harmonioso e racional. A transcendência do cosmos foi abolida. Mas, como eles, ele convida a viver no instante, a nos salvar por nós mesmos, amando tudo o que existe; a fugir da distinção dos acontecimentos felizes e infelizes, a nos libertar, sobretudo, dos dilaceramentos que uma má compreensão do tempo introduz fatalmente em nós: remorsos associados a uma visão indeterminada do passado ("eu deveria ter agido de modo diferente..."), hesitações em face do futuro ("eu não deveria fazer uma outra escolha?"). Pois é quando nos libertamos dessa dupla face insidiosa das forças reativas (qualquer dilaceramento é essencialmente reativo), quando nos libertamos dos pesos do passado e do futuro, que alcançamos a serenidade e a eternidade, aqui e agora, já que não há nada mais, já que não há referência a "possíveis" que venham relativizar a existência presente e semear em nós o veneno da dúvida, do remorso ou da esperança.

Críticas e interpretações de Nietzsche

A noção de amor fati se fundamenta no seguinte princípio: lamentar um pouco menos, esperar um pouco menos, amar um pouco mais o real como ele é e, se possível, amá-lo por inteiro! Compreendo perfeitamente quanta serenidade, alívio, reconforto, como tão bem diz Nietzsche, pode haver na inocência do devir. Acrescento que a injunção só vale, é claro, para os aspectos mais dolorosos do real: convidar-nos a amá-lo quando ele é amável não teria, de fato, sentido, já que isso seria natural. O que o sábio deve conseguir realizar em si é o amor pelo que ocorre, sem o que ele não é sábio, mas se encontra como todos, amando o que é amável e não amando o que não o é!

Ora, é aí que reside a dificuldade: se é preciso dizer sim a tudo, se não se pode, como se diz, "pegar e largar", mas, ao contrário, assumir tudo, como evitar o que um filósofo contemporâneo, discípulo de Nietzsche, Clément Rosset, chamava tão acertadamente (mas para negar), o "argumento do carrasco"?

Esse argumento é mais ou menos enunciado da seguinte forma: existem na Terra, desde sempre, carrascos e torturadores. Sem dúvida alguma, eles fazem parte do real. Consequentemente, a doutrina do amor fati, que nos obriga a amar o real tal como ele é, nos pede também para amar os torturadores!

Epicteto, por sua vez, declarou nunca ter encontrado em sua vida um sábio estoico, alguém que amasse o mundo em todos os momentos, mesmo os mais atrozes que se possa imaginar, que se abstivesse, em qualquer circunstância, de lamentar ou esperar. Devemos ver de fato nesse esmorecimento uma loucura, uma fraqueza passageira, uma falta de sabedoria, ou não seria um sinal de que a teoria vacila, que o amor fati não apenas é impossível, mas que às vezes se torna simplesmente obsceno? Se devemos aceitar tudo o que é como é, em toda a sua dimensão trágica de não sentido radical, como evitar a acusação de cumplicidade, ou de colaboração com o mal?

Se o amor ao mundo tal como ele anda não é realmente praticável nem entre os estoicos, nem entre os budistas, em Nietzsche, ele não corre o risco de retomar irresistivelmente a forma execrável de um novo ideal e, por isso mesmo, de uma nova figura do niilismo?

De que adianta pretender acabar com o "idealismo", com todos os ideais e todos os "ídolos", se esse grandioso programa filosófico permanece ele próprio... um ideal? De que adianta zombar de todas as figuras da transcendência e apelar para essa sabedoria que ama o real tal como ele é se esse amor permanece, por sua vez, perfeitamente transcendente, se ele permanece um objetivo radicalmente inacessível sempre que as circunstâncias, por menos que seja, são difíceis de serem vividas?

De qualquer modo, tais interrogações não poderiam nos levar a subestimar a importância histórica da resposta nietzschiana às três grandes perguntas de toda filosofia: a genealogia como nova teoria, o grande estilo como moral ainda inédita e a inocência do devir como doutrina da salvação sem Deus nem ideal formam um todo coerente sobre o qual você deverá refletir por muito tempo.

Gostaria ainda, a título de conclusão, de lhe dizer como a obra de Nietzsche será objeto de três interpretações (sem dúvida só me refiro às que valem a pena, às que se enraízam numa leitura séria).

Podemos ver nela uma forma radical de anti-humanismo, uma desconstrução sem precedente dos ideais da filosofia das Luzes. De fato, é certo que o progresso, a democracia, os direitos do homem, a república, o socialismo etc., todos esses ídolos e ainda outros serão varridos por Nietzsche, de sorte que, quando Hitler encontrou Mussolini, não foi inteiramente por acaso que lhe ofereceu uma bela edição encadernada de suas obras completas.

Inversamente, podemos ver nele um continuador paradoxal da filosofia das Luzes, um herdeiro de Voltaire e dos moralistas franceses do século XVIII. Nietzsche dá prosseguimento ao trabalho que eles inauguraram, ao criticar a religião, a tradição, o Antigo Regime ou ao colocar sempre em evidência, por trás dos grandes ideais anunciados, os interesses inconfessáveis e as hipocrisias escondidas.

E a interpretação de Heidegger que vê Nietzsche como o "pensador da técnica", o primeiro filósofo que vai destruir integralmente e sem o menor resquício da noção de "finalidade" a ideia de que haveria, na existência humana, um sentido a buscar, objetivos a perseguir, fins a realizar. Com o grande estilo, de fato, o único critério que subsiste ainda para definir a vida boa é o critério da intensidade, da força pela força, em detrimento de todos os ideais superiores.


Não seria, depois de esgotada a alegria de desconstruir, entregar o mundo contemporâneo ao puro cinismo, às leis cegas do mercado e da competição globalizada? Como você vê, a pergunta merece pelo menos ser feita.


Referência Bibliográfica:
FERRY, Luc. Aprender a viver: Filosofia para os novos temposRio de Janeiro, Editora Objetiva, 2010.