Tranquilidade e estoicismo romano
Dentre os estoicos romanos, destacou-se Sêneca.
Nascido em Córdoba, atual Espanha, — mas na época Império Romano — no ano de I d.C.,
Sêneca figura entre os maiores filósofos romanos. Foi um senador de destaque. Seu prestígio e reconhecimento o levaram a ser preceptor de Nero, futuro
imperador. Sim, ele mesmo, o incendiário.
Tranquilidade e razão
A razão é
o recurso dado pela natureza ao homem para analisar e evitar a tristeza.
Esta razão deve nos levar, quando
usada adequadamente, à ataraxia. Termo frequentemente traduzido por
impassibilidade ou tranquilidade. Esta ataraxia depende de equilíbrio,
tanto do corpo quanto da alma. Quando um deles ou ambos é perturbado sobrevém a
tristeza. Entendida por Sêneca como uma doença.
·
Ataraxia: ausência de inquietude, tranquilidade
de ânimo, paz e imperturbabilidade de espírito
Sêneca é um estoico romano. Diverge do estoicismo grego em muitas questões. Propõe que as coisas não estão dispostas segundo uma
ordem imanente. Quando tiramos algo do seu lugar, está coisa poderá não voltar,
por si só, à sua posição natural.
Tranquilidade
e divina providência
Para que os velozes astros do universo não se
colidam, e para que os fenômenos naturais não se descontrolem, é preciso que
uma força divina garanta o fluxo ordenado do cosmo. Cada coisa tem seu lugar no cosmo porque os deuses assim quiseram. Um peixe pode morrer se deixado fora
da água. Ele, por si mesmo, não se recompõe com a ordem natural de seu cosmo.
É preciso uma força inteligente, humana ou divina, para colocá-lo de volta no
seu devido lugar. É neste ponto que podemos vislumbrar a divina providência.
Para restabelecer o que por si só não ocorreria.
Providência que rege também a
existência humana. Assim, os deuses não só preveem para o homem um lugar que lhe é natural, como também lhe atribuem um destino. Cada um de nós possui uma
missão que deve ser cumprida.
Nosso destino, muitas vezes, escapa à nossa
percepção e ao nosso entendimento. Sobretudo quando não consideramos o universo como um todo. E esquecemos nossa condição de parte desse todo.
“Nada de mal pode atingir o homem bom: os contrários não se misturam. (...) Não estou querendo dizer que ele não sente os ataques
externos, mas que os derrota e, ademais, põe-se a enfrentá-los com calma e
tranquilidade. Ele considera todas as adversidades como exercícios” (SÊNECA. Sobre a
divina providência).
Insiste Sêneca, o homem bom,
virtuoso, encontra-se sempre preparado para todas as dores que na vida possa experimentar.
Não é outra a ideia de sábio, para os estoicos.
Não se trata de alguém que sabe tudo sobre o mundo, como se poderia pensar. O sábio sabe viver. Sua especialidade é a vida. Quanto ao mundo, sabe que as
coisas são como são. E as aceita assim.
Sêneca nos adverte que o mal-estar que sentimos
em qualquer destas situações, decorre da insatisfação com nós mesmos.
Se o teto desabou por causa da enchente, só há
neste relato um erro a lamentar. A crença de que isso não fosse acontecer.
Portanto, pare de culpar o mundo. Assuma sua parte da tristeza. Porque o
mundo, esse, é o que é. E, por mais que você faça, ainda será mais fácil
corrigir-se do que adequá-lo a você. Porque se todo infortúnio depende de você
e do mundo, por que não começar pelo que está mais na mão?
Tranquilidade e ira
A esperança é sentimento que nos
remete a um mundo desejado e que nos afasta da realidade. Mal-estar resultante
do contraste entre a vida que gostaríamos de viver com a vida que vivemos.
Frustração de viver uma vida que não se sonhou. Eis, para os estoicos, a causa
de sentimentos como a ira. A cólera.
A alternativa filosófica de
Sêneca é adotar uma postura um pouco mais pessimista em relação à vida.
Analisar a própria existência para se reconciliar com a realidade. Pensar
sobre os desejos e suas condições de realização. Aceitar a frustração como
condição da existência. Ter em mente que o mundo nunca será como nós queremos.
Viver a vida como ela se apresenta. Com seus altos e baixos. Desejando o mínimo
possível. Evitando assim esperanças, iras e angústias.
Na visão estoica só começamos a
ser felizes quando aceitarmos que o mundo não gira ao nosso redor. Que as
pessoas não foram feitas pelos deuses para atenderem nossas carências. Por
isso, a tranquilidade, condição da
vida boa, pressupõe a desesperança. A conciliação com a realidade.
Para ele a felicidade, a busca da tranquilidade
da alma e do corpo, é um dever moral. Isso mesmo leitor, você tem o dever de
ser feliz. E, para isso, o dever de reconciliar-se com o mundo. Lamentando
menos, esperando menos e amando mais. No amor, vivemos melhor.
E essa constatação — de que o mundo não é
como gostaríamos que fosse — nos entristece. Tristeza que nos leva a viver
mal. A agir mal. A fazer bobagens. A culpar os outros. A persegui-los em estado de fúria. E, eventualmente, a tomar o troco. Por isso, render-se à tristeza é
uma desordem cosmológica. Uma violação moral. Uma heresia. Uma blasfêmia
contra o universo.
Sobre a
brevidade da vida
Trecho da obra de Sêneca:
“Os vícios sufocam os homens e andam a sua volta, não lhes permitindo levantar nem erguer os olhos para distinguir a verdade. Permanecem
imersos, presos às paixões, não favorecendo um voltar-se para si próprio. Mesmo
encontrando alguma paz, eles continuam sendo levados por suas ambições, não
achando tranquilidade, tal como o fundo do mar que, depois da tempestade, ainda continua agitado. Imaginas que falo daqueles cujos vícios estão explícitos?
Observa os que a sorte abençoou: eles se sentem sufocados pelos seus bens. As
riquezas são pesadas para muitos! A preocupação com a eloquência e a necessidade de mostrar
talento tirou o sangue de muitos! Outros enfraqueceram devido a uma vida de
libertinagens! Muitos possuem um grande número
de clientes, mas nenhuma liberdade! Por fim, observa a todos, desde os mais simples
aos mais poderosos. Este advoga, aquele assiste, um é acusado, outro defende, aquele outro julga; ninguém
pede nada para si, uns nos outros se consomem. (...) ninguém cuida de si mesmo. (...) Assim, não há motivo para que cobres teus favores a quem quer
que seja, já que, quando os fizeste, foi por querer estar com o outro e não
contigo mesmo.”
“Pode haver alguma coisa
mais tola, me diga, que a maneira de viver desses homens que deixam a prudência de lado? Vivem ocupados para poder viver melhor:
acumulam a vida, dissipando-a. Fazem seus projetos para longo tempo, porém esse
adiamento é prejudicial para a vida, já que nos tira o dia a dia, rouba o presente comprometendo o futuro. A expectativa é o maior impedimento para viver:
leva-nos para o amanhã e faz com que se perca o presente. (...) Todas as coisas que virão jazem na incerteza: vive daqui para diante.”
“Enfim, queres saber o
pouco que vivem os ocupados? Vê o
quanto eles desejam longamente viver. Velhos decrépitos mendigam com súplicas
um prolongamento de poucos anos. Eles fingem ser mais novos do que realmente
são, lisonjeiam a si próprios com mentiras e se enganam com prazer, como se
pudessem iludir o destino. Mas, quando alguma doença lhes mostra a sua fragilidade, morrem amedrontados, como se não estivessem deixando a vida, mas
ela estivesse sendo arrancada deles. Eles gritam que foram tolos por não terem
vivido e que, se conseguirem escapar daquela doença, viverão no ócio. Então,
pensam o quanto inutilmente se esforçaram para coisas que não aproveitaram,
quão vãos foram todos os seus trabalhos. (...)Por mais curta que seja, é mais que suficiente, de maneira que, ao chegar o último
dia, o homem sábio não hesitará em ir para a morte com tranquilidade.”
Da
tranquilidade da alma
Citação feita por Sêneca, sobre as ideias de Atenodoro:
“Ao te isolares no estudo,
tu te livrarás de todos os desgostos da vida, não mais
desejarás a noite por aborrecimento do dia e não mais serás uma carga para ti
mesmo, nem inútil aos outros. Farás inúmeros amigos e todo homem de bem virá
espontaneamente ao teu encontro: pois jamais, por mais obscura que seja, a
virtude vive ignorada; existem sinais que revelam sua presença, e todo aquele
que for digno sempre a descobrirá. Se, com efeito, renunciarmos a
toda relação com o próximo e nos afastarmos do gênero humano para viver unicamente concentrados em nós mesmos, este isolamento, esta
indiferença absoluta, terão por resultado a mais completa ociosidade:
começaremos a construir de um lado e a demolir do outro; a repelir o mar, a
desviar as águas lutando contra as dificuldades do terreno e a desperdiçar o
tempo, que a natureza nos dá para aproveitar.”
Trecho da obra de Sêneca:
“Assim como as viagens se
sucedem, um espetáculo substitui o outro, e como diz
Lucrécio: "Assim cada um foge sempre de si mesmo". Mas
para que fugir se não nos podemos evitar? Seguimo-nos sempre, sem nos desembaraçarmos desta intolerável companhia. Assim, convençamo-nos
bem de que o mal do qual sofremos não vem dos lugares, mas de nós mesmos, que
não temos força para nada suportar: trabalho, prazer, nós mesmos; qualquer
coisa do mundo nos parece uma carga.”
“(...) é um erro pensar que os ricos aceitam mais corajosamente
suas penas: que o corpo seja grande ou pequeno, as feridas lhe são igualmente
dolorosas. Bíon disse com fineza: "Não é porque se tem mais cabelos sobre
a cabeça que é menos desagradável sentir arrancá-los". Não é diferente no
caso do pobre e do rico, e seu sofrimento é o mesmo: o dinheiro se apega tão
intimamente à alma, que não se pode arrancá-lo sem dor. É, aliás, eu o repito,
mais suportável e mais simples nada adquirir do que perder alguma coisa: daí
vem que se vê um ar mais alegre nas pessoas que a fortuna jamais visitou do
que naquelas que ela traiu.”
“Habituemo-nos a ter o luxo
à distância e a fazer uso da utilidade dos
objetos e não de sua sedução exterior. Comamos para matar a fome, bebamos para
apagar a sede e reduzamos ao necessário a satisfação de nossos desejos. Aprendamos a andar com nossas pernas, a regular nosso vestuário e nossa
alimentação, não sobre a moda do dia, mas sobre o exemplo dos antigos.
Aprendamos a cultivar em nós a sobriedade e a moderar nosso amor ao fausto; a
reprimir nossa vaidade, a dominar nossas cóleras, a considerar a pobreza com
um olhar calmo, a considerar a frugalidade, apesar de todos aqueles que acharão
aviltante satisfazer tão modestamente a seus desejos naturais; a não ter nas
mãos. por assim dizer, as ambições desenfreadas de uma alma sempre inclinada
para o dia seguinte e a esperar a riqueza menos da sorte do que de nós mesmos.”
“As honras prendem este, a
riqueza aquele outro; este leva o peso de sua nobreza, aquele o de sua
obscuridade; um curva a cabeça sob
a tirania de outrem, outro sob a própria tirania; a este sua permanência num
lugar é imposta pelo exílio, àquele outro pelo sacerdócio. Toda a vida é uma
escravidão. É preciso, pois, acostumar-se à sua condição, queixando-se o menos
possível e não deixando escapar nenhuma das vantagens que ela possa oferecer:
nenhum destino é tão insuportável que uma alma razoável não encontre qualquer
coisa para consolo. Vê-se frequentemente um terreno diminuto prestar-se, graças
ao talento do arquiteto, às mais diversas e incríveis aplicações, e um arranjo
hábil torna habitável o menor canto. Para vencer os obstáculos, apela à razão:
verás abrandar-se o que resistia, alargar-se o que era apertado e os fardos
tornarem-se'mais leves sobre os ombros que saberão suportá-los. Não descortinemos, de outro lado, um campo vasto demais
aos nossos desejos: limitemos o voo aos objetos mais próximos, visto que não
podemos pensar em reprimi-los inteiramente. Renunciando ao que é impossível ou
difícil demais para realizar, apeguemo-nos ao que, estando mais próximo, anima
nossa esperança; mas sem esquecer que todas as coisas são igualmente frívolas e que, se as aparências diferem, é sempre no interior a mesma futilidade. Não
invejemos as situações elevadas: pois o que julgamos ser o cume não é mais do
que a beira de um abismo.”
“Quem não souber morrer bem terá vivido mal. (...) quantas vezes morremos, vítimas do nosso medo de morrer! Estes são
caprichos que a fortuna se permite: "Por que", diz ela,
"poupar-te, criatura débil e trémula? Tu serás trespassada e serás crivada
de golpes, justamente porque não sabes oferecer o pescoço. E tu, tua vida será
prolongada e terás uma morte mais rápida, porque em lugar de desviares a
cabeça ou de te cobrires com as mãos, esperas o ferro com coragem". Aquele
que temer a morte não fará jamais obra de homem; mas aquele que disser a si
mesmo que, desde o instante em que foi concebido, sua sorte foi decidida,
governará sua vida em conformidade com esta decisão; e por prêmio terá a
vantagem, graças a este mesmo vigor da alma, de jamais se deixar surpreender
por qualquer acontecimento que surja. Considerando antecipadamente tudo o que
pode acontecer, como o que irá realmente acontecer, ele amortecerá o choque de
todos os males: pois, para quem está preparado e a espera, a violência de todas
as desgraças se abranda; e somente acham seus golpes terríveis os que se
julgavam em segurança e que não tinham diante de si senão perspectivas felizes.”
“ (...) que nossa alma, renunciando a todos os benefícios exteriores, se recolha inteiramente em si mesma:
que ela só confie em si e só se alegre consigo, que ela só aprecie seus próprios bens, que ela se afaste o mais possível dos estranhos e se consagre exclusivamente a si mesma, que os prejuízos materiais a deixem insensível e
que ela chegue mesmo a encontrar um lado bom nas suas desgraças. (...) está mais em conformidade com a natureza humana rir-se da
existência do que lamentar-se dela. Acrescentemos que se presta
melhor serviço ao gênero humano ao se rir dele do que ao
lamentá-lo: o gracejador nos deixa alguma esperança de melhora, o outro se
aflige estupidamente com os males que desesperadamente procura remediar. Enfim,
para quem julga as coisas de um ponto de vista mais superior, uma alma
mostra-se mais forte abandonando-se ao riso do que cedendo às lágrimas
“É preciso frequentemente recolhermo-nos em nós mesmos:
pois a relação com pessoas diferentes demais de nós perturba nosso equilíbrio,
desperta nossas paixões, irrita nossas restantes fraquezas e nossas chagas ainda
não completamente curadas. Misturemos, todavia, as duas coisas: alternemos a
solidão e o mundo. A solidão nos fará desejar a sociedade e esta nos reconduzirá novamente a nós mesmos; elas serão antídotas, uma à outra: a solidão, curando
nosso horror à multidão, e a multidão, curando nossa aversão à solidão.”
“É preciso governar nosso espírito e conceder-lhe de
tempos em tempos um descanso que fará sobre ele o efeito de um alimento restaurador.
É preciso, igualmente, ir passear em pleno campo, pois o céu aberto e o ar puro
estimulam e avivam a inteligência; algumas vezes uma alteração, uma viagem,
uma mudança de horizontes, assim como uma boa refeição com um pouco mais de
bebida do que de costume, lhe darão um novo vigor.”
Referências
Bibliográficas:
FERRY, Luc. Aprender
a viver: Filosofia para os novos tempos. Rio de Janeiro, Editora
Objetiva, 2010.
DE BARROS
FILHO, Clóvis. A vida que vale a pena ser vivida. Editora
Vozes, 2010.
SÊNECA,
Lúcio Anneo. Da tranquilidade da alma. Os pensadores, Ed.
Nova Cultura, 1988.
SÊNECA, Lúcio Anneo. Sobre
a brevidade da vida. Coleção: L&PM POCKET
PLUS, vol. 548, 2006.