O caso
Nietzsche
Os "pós-modernos" vão atacar duas das mais importantes convicções
que animavam os Modernos do século XVII ao XIX: aquela segundo a qual o ser
humano seria o centro do mundo, o princípio de todos os valores morais e
políticos; aquela que considera a razão um formidável poder libertador, e que,
graças ao progresso das "Luzes", seremos, enfim, mais livres e mais
felizes – em resumo: ao mesmo tempo crítica do humanismo e crítica do racionalismo.
A filosofia moderna
destituiu o cosmos e criticou as autoridades religiosas substituindo-as pela
razão e pela liberdade humana, pelo ideal democrático e humanista de
valores morais construídos sobre a humanidade do homem, sobre o que constituía
sua diferença específica em relação a todas as outras criaturas, a começar pelo
animal. Com base numa verdadeira
sacralização do espírito crítico, numa liberdade de pensamento que chega a
fazer tabula rasa de todas as heranças passadas, de todas as tradições.
A razão e os ideais humanistas não se sustentarão, de modo que o mundo intelectual
por eles edificado vai finalmente ser vítima dos próprios
princípios nos quais repousava.
A ciência moderna, fruto do espírito crítico e da dúvida metodológica,
destruiu as cosmologias e enfraqueceu consideravelmente, pelo menos num
primeiro momento, as bases da autoridade religiosa. O humanismo não chegou a destruir inteiramente uma estrutura religiosa
fundamental. Eis por
que, aos olhos de Nietzsche, quando nossos republicanos herdeiros das Luzes se
dizem ateus, ou mesmo materialistas, na verdade, permanecem crentes! Naturalmente, não por rezarem a Deus, mas porque não deixam de venerar quimeras, já
que continuam a acreditar que alguns valores são superiores à vida, que
o real deve ser julgado em nome do ideal, que é necessário transformá-lo para
moldá-lo aos ideais superiores: os direitos do homem, a ciência, a razão, a
democracia, o socialismo, a igualdade de oportunidades etc.
Em resumo, aos olhos dos pós-modernos, e particularmente de Nietzsche, o humanismo das
Luzes, sem perceber, permanece prisioneiro das estruturas essenciais da
religião que ele rechaçou, no ponto mesmo em que supõe tê-las ultrapassado. Mas
Nietzsche afirmava
Melhorar a humanidade? Eis
a última coisa que eu prometeria. Não esperem de mim que eu
erija novos ídolos! Que os antigos aprendam antes quanto custa ter pés de
barro! Derrubar "ídolos" — é assim que chamo todos os ideais
—, esse é meu verdadeiro ofício. É inventando a mentira de um mundo ideal que
se tira o valor da realidade, sua significação, sua veracidade... A mentira
do ideal foi até agora a maldição que pesou sobre a realidade, a própria
humanidade se tornou mentirosa e falsa até o mais fundo de seus instintos — até
a adoração dos valores opostos àqueles que poderiam lhe garantir um
belo crescimento, um futuro...
Na opinião dos pós-modernos, a democracia, qualquer que seja o conteúdo que lhe dermos, não é senão uma nova ilusão religiosa entre
outras, e mesmo uma das piores, já que ela se dissimula frequentemente sob a
aparência de uma ruptura com o mundo religioso, habitualmente declarando-se
"laica".
Nietzsche pensa que todos
os ideais, explicitamente religiosos ou não, possuem a mesma estrutura, a mesma
finalidade: inventar um além melhor do que este mundo, de
imaginar valores pretensamente superiores e exteriores à vida ou, no
jargão dos filósofos, de valores "transcendentes". Seu verdadeiro objetivo não é ajudar a humanidade, mas apenas conseguir julgar e finalmente
condenar a própria vida, negar o verdadeiro real em nome de falsas realidades,
em lugar de assumi-la e aceitá-la tal como é. Não existe nada fora da realidade da vida, nem acima nem abaixo,
nem no céu nem no inferno, e todos os célebres ideais da política, da moral e
da religião são apenas "ídolos", inchaços metafísicos, ficções, que
não visam nada a não ser fugir da vida, antes de se voltar contra ela.
O filósofo pós-moderno aprende, antes de qualquer outra coisa, a
desconfiar das evidências primeiras, das ideias prontas, para ver o que há por
trás, por baixo, de viés se for preciso, a fim de detectar os preconceitos
dissimulados que os fundamentam em última instância. Nietzsche é um vanguardista, alguém que pretende acima de tudo inovar, fazer
tabula rasa do passado.
Três grandes eixos aos quais você já se habituou na filosofia: theoria,
práxis e doutrina da salvação. Não encontramos em Nietzsche uma theoria, uma
práxis e uma doutrina da salvação no sentido em que as encontramos nos estoicos,
nos cristãos ou mesmo em Descartes, Rousseau e Kant. Nietzsche é o que chamamos
de "genealogista" — é assim que ele próprio se designava —, um
"desconstrutivista", alguém que passou a vida dando surras nas
ilusões da tradição filosófica, o que não escapa a ninguém.
Nietzsche não desconstrói a cosmologia grega, o cristianismo ou a filosofia
das Luzes pelo simples prazer de negar ou destruir, mas para abrir espaço a
pensamentos novos, radicais, que vão efetivamente constituir, embora em sentido
inédito, uma theoria, uma práxis e até mesmo um pensamento da salvação de novo gênero.
Um
pensamento inédito da doutrina da salvação: a doutrina do amor fati (o amor do momento presente, do
"destino"), a "inocência do devir" e o eterno retorno
Procurar a salvação num Deus, ou em qualquer outra figura da transcendência que se
queira pôr em seu lugar, é, diz ele ainda, "declarar guerra [...] à
vida, à natureza, à vontade de viver!", é a fórmula de todas as calúnias
"deste mundo", de todas as mentiras do "além".
No entanto, isso significa
que toda aspiração à sabedoria e à beatitude deva, na opinião
de Nietzsche, ser rejeitada? Nada é menos certo. Acredito, ao contrário, que
Nietzsche, como todo verdadeiro filósofo, visa à sabedoria.
O sentido
do eterno retorno: uma doutrina da salvação enfim
totalmente terrestre, sem ídolos e sem Deus
Se não existem mais além, nem cosmos nem divindade, se os ideais
fundadores do humanismo estão comprometidos, como distinguir não apenas o bem
do mal, ou, ainda mais profundamente, o que vale a pena ser vivido e o que é
medíocre? É para oferecer uma resposta a essa pergunta que a doutrina do eterno
retorno foi inventada por Nietzsche. Para nos fornecer um critério,
finalmente terrestre, de seleção do que merece e do que não merece ser
vivido.
“E se um dia ou uma noite um
demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: “Esta vida,
assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e
ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e
cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de
grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência – e do
mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este
instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada
outra vez – e tu com ela, poeirinha da poeira!” Não te lançarias ao chão e
rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste
alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderias: “Tu és um deus e
nunca ouvi nada mais divino!” Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti,
assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta
diante de tudo e de cada coisa: “Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?”
pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias
de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que
essa última, eterna confirmação e chancela?”
Nietzsche chega a propor
explicitamente que se ponha a "doutrina do eterno retorno no lugar da
'metafísica' e da religião" — como ele colocou a genealogia no
lugar da theoria, e o grande estilo no lugar dos ideais da moral.
Se não há mais transcendência, mais ideais, mais fuga possível num
além, mesmo depois da morte de Deus, "humanizado" em forma de utopia
moral ou política (a "humanidade", a "pátria", a
"revolução", a "república", o "socialismo" etc.),
é no seio deste mundo, permanecendo nesta terra e nesta vida, que é preciso
aprender a distinguir o que vale ser vivido e o que merece perecer. É aqui e
agora que se deve saber separar as formas de vida frustradas, medíocres,
reativas e enfraquecidas, das formas de vida intensas, grandiosas, corajosas e
ricas em diversidade.
Nietzsche se diverte
parodiando Kant:
Se, em tudo o que você quer fazer, começar perguntando: "Tenho certeza de que
desejo fazê-lo infinitas vezes?", isso se tornará o centro de gravidade
mais sólido para você... Eis o ensinamento de minha doutrina: "Viva de
forma a ter de desejar reviver — é o dever —, pois, em todo caso, você
reviverá! Aquele para quem o esforço é a alegria suprema, que se esforce!
Aquele que ama antes de tudo o repouso, que repouse! Aquele que ama antes de
tudo se submeter, obedecer e seguir, que obedeça! Mas que saiba para o que
dirige sua preferência, e não recue diante de nenhum meio! É a eternidade
que está em jogo!"
Trata-se de interrogar nossas existências, a fim de fugir das falsas
aparências e das meias medidas, de todas essas covardias que, ainda segundo
Nietzsche, nos levariam a desejar esta ou aquela coisa "só uma vez",
como uma concessão, todos esses momentos em que nos abandonamos à facilidade de
uma exceção, sem a querer realmente.
Nietzsche nos convida, ao
contrário, a viver de tal modo que nem os arrependimentos nem os
remorsos tenham mais nenhum espaço, nenhum sentido. Essa é a verdadeira vida. A vida boa é a que consegue viver o instante sem referência nem ao passado
nem ao futuro, sem condenação pessoal, com leveza absoluta, com o sentimento
perfeito de que não há mais diferença real entre o passado e a eternidade.
A
doutrina do amor fati (amor do que é no
presente): fugir do peso do passado, assim, como das promessas do futuro
O amor fati tem a ver com esperar um pouco menos, lamentar um pouco
menos, amar um pouco mais. Nunca permanecer nas dimensões não reais do tempo, no passado e no futuro, mas tentar, ao
contrário, habitar tanto quanto possível o presente, dizer-lhe sim com amor
(numa "afirmação dionisíaca", diz Nietzsche, referindo-se a Dioniso,
o deus grego do vinho, da festa e da alegria, aquele que, por excelência, ama a
vida).
Há uma contradição perturbadora entre as duas passagens de
Nietzsche: de um lado, na doutrina do eterno retorno, ele nos pede para escolher
o que queremos viver e reviver, em função do critério da repetição eterna
do mesmo; e de outro, ele nos recomenda amar todo o real, qualquer que seja,
sem nada tomar ou abandonar, e, sobretudo, nada querer além daquilo que é, sem
nunca procurar escolher ou selecionar no interior do real! O critério do eterno
retorno nos convidava à seleção apenas dos momentos dos quais
desejássemos a infinita repetição, e eis que a doutrina do amor fati, que
diz sim ao destino, não deve fazer nenhuma exceção para tudo tomar e tudo
compreender num mesmo amor ao real. Como conciliar as duas teses?
A inocência do devir ou a vitória sobre o medo da morte
Se a doutrina do eterno
retorno repercute como um eco na do amor fati, esta, por sua vez, culmina
no ideal de uma inculpabilidade total. Pois a culpabilidade é o máximo do reativo, do conflito interior [entre si e si mesmo].
Somente o sábio, aquele que ao mesmo tempo pratica o grande estilo (senhor do
caos interior, nutrindo forças ativas em si) e segue os princípios do eterno
retorno, poderá alcançar a verdadeira serenidade. E ela exatamente que
Nietzsche designa pela expressão "inocência do devir". Pois é assim e apenas assim que podemos, por fim, ser salvos. De quê?
Como sempre, do medo. Por meio do quê? Como sempre, pela serenidade.
Diferentemente dos estoicos, sem dúvida, Nietzsche não pensa que o mundo seja harmonioso
e racional. A transcendência do cosmos foi abolida. Mas, como eles, ele
convida a viver no instante, a nos salvar por nós mesmos, amando tudo o que
existe; a fugir da distinção dos acontecimentos felizes e infelizes, a nos
libertar, sobretudo, dos dilaceramentos que uma má compreensão do tempo
introduz fatalmente em nós: remorsos associados a uma visão indeterminada do passado
("eu deveria ter agido
de modo diferente..."), hesitações em face do
futuro ("eu não deveria fazer uma outra escolha?"). Pois é quando nos
libertamos dessa dupla face insidiosa das forças reativas (qualquer
dilaceramento é essencialmente reativo), quando nos libertamos dos pesos do
passado e do futuro, que alcançamos a serenidade e a eternidade, aqui e agora, já
que não há nada mais, já que não há referência a "possíveis" que
venham relativizar a existência presente e semear em nós o veneno da dúvida, do
remorso ou da esperança.
Críticas e interpretações de Nietzsche
A noção de amor fati se fundamenta no seguinte princípio:
lamentar um pouco menos, esperar um pouco menos, amar um pouco mais o real como
ele é e, se possível, amá-lo por inteiro! Compreendo perfeitamente quanta
serenidade, alívio, reconforto, como tão bem diz Nietzsche, pode haver na
inocência do devir. Acrescento que a injunção só vale, é claro, para os
aspectos mais dolorosos do real: convidar-nos a amá-lo quando ele é amável não
teria, de fato, sentido, já que isso seria natural. O que o sábio deve
conseguir realizar em si é o amor pelo que ocorre, sem o que ele não é sábio,
mas se encontra como todos, amando o que é amável e não amando o que não o é!
Ora, é aí que reside a dificuldade: se é preciso dizer sim a tudo, se
não se pode, como se diz, "pegar e largar", mas, ao contrário,
assumir tudo, como evitar o que um filósofo contemporâneo, discípulo de
Nietzsche, Clément Rosset, chamava tão acertadamente (mas para negar), o
"argumento do carrasco"?
Esse argumento é mais ou menos enunciado da seguinte forma: existem na Terra,
desde sempre, carrascos e torturadores. Sem dúvida alguma, eles fazem parte do
real. Consequentemente, a doutrina do amor fati, que nos obriga a amar o
real tal como ele é, nos pede também para amar os torturadores!
Epicteto, por sua vez,
declarou nunca ter encontrado em sua vida um sábio estoico,
alguém que amasse o mundo em todos os momentos, mesmo os mais atrozes que se
possa imaginar, que se abstivesse, em qualquer circunstância, de lamentar ou
esperar. Devemos ver de fato nesse esmorecimento uma loucura, uma fraqueza
passageira, uma falta de sabedoria, ou não seria um sinal de que a teoria
vacila, que o amor fati não apenas é impossível, mas que às vezes se
torna simplesmente obsceno? Se devemos aceitar tudo o que é como é, em toda a
sua dimensão trágica de não sentido radical, como evitar a acusação de
cumplicidade, ou de colaboração com o mal?
Se o amor ao mundo tal como ele anda não é realmente praticável
nem entre os estoicos, nem entre os budistas, em Nietzsche, ele não corre o
risco de retomar irresistivelmente a forma execrável de um novo ideal e, por
isso mesmo, de uma nova figura do niilismo?
De que adianta pretender
acabar com o "idealismo", com todos os ideais e todos os "ídolos", se esse grandioso programa filosófico permanece ele
próprio... um ideal? De que adianta zombar de todas as figuras da transcendência e apelar para essa sabedoria que ama o real tal como ele é se esse amor
permanece, por sua vez, perfeitamente transcendente, se ele permanece um
objetivo radicalmente inacessível sempre que as circunstâncias, por menos que
seja, são difíceis de serem vividas?
De qualquer modo, tais
interrogações não poderiam nos levar a subestimar a importância histórica
da resposta nietzschiana às três grandes perguntas de toda filosofia: a
genealogia como nova teoria, o grande estilo como moral ainda inédita e a
inocência do devir como doutrina da salvação sem Deus nem ideal formam um todo
coerente sobre o qual você deverá refletir por muito tempo.
Gostaria ainda, a título de conclusão, de lhe dizer como a obra de Nietzsche será
objeto de três interpretações (sem dúvida só me refiro às que valem a pena, às
que se enraízam numa leitura séria).
Podemos ver nela uma forma
radical de anti-humanismo, uma desconstrução sem precedente dos
ideais da filosofia das Luzes. De fato, é certo que o progresso, a democracia,
os direitos do homem, a república, o socialismo etc., todos esses ídolos e ainda outros serão
varridos por Nietzsche, de sorte que, quando Hitler encontrou Mussolini, não
foi inteiramente por acaso que lhe ofereceu uma bela edição encadernada de suas
obras completas.
Inversamente, podemos ver
nele um continuador paradoxal da filosofia das Luzes, um herdeiro de Voltaire
e dos moralistas franceses do século XVIII. Nietzsche dá prosseguimento ao trabalho que eles inauguraram, ao criticar a religião, a
tradição, o Antigo Regime ou ao colocar sempre em evidência, por trás dos
grandes ideais anunciados, os interesses inconfessáveis e as hipocrisias
escondidas.
E a interpretação de Heidegger que vê Nietzsche como o
"pensador da técnica", o primeiro filósofo que vai destruir
integralmente e sem o menor resquício da noção de "finalidade" a
ideia de que haveria, na existência humana, um sentido a buscar, objetivos a
perseguir, fins a realizar. Com o grande estilo, de fato, o único critério que
subsiste ainda para definir a vida boa é o critério da intensidade, da força
pela força, em detrimento de todos os ideais superiores.
Não seria, depois de esgotada a alegria de desconstruir, entregar o
mundo contemporâneo ao puro cinismo, às leis cegas do mercado e da competição
globalizada? Como você vê, a pergunta merece
pelo menos ser feita.
Referência Bibliográfica:
FERRY, Luc. Aprender a viver: Filosofia para os novos tempos. Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 2010.