Sobre o proletário, o burguês e o ócio
“Como
o liberalismo só se completa ao criticar-se a si mesmo, no liberalismo
‘crítico’ – em que, aliás, o crítico continua a ser um liberal, não
ultrapassando o princípio do liberalismo, o homem –, o melhor modo de o
designar é atendendo ao homem, e por isso lhe chamamos liberalismo ‘humano’.
O
trabalhador é visto como o mais materialista e egoísta dos homens. Não faz nada
pela humanidade, faz tudo por si e para o seu bem-estar.
A
burguesia, como só declarou o homem livre à nascença [nascimento],
deixou-o, quanto ao resto, nas garras dos desumanos (egoístas). Por isso, o
egoísmo tem um campo imenso à sua disposição sob o liberalismo.
Tal
como o burguês usava o Estado, assim também o trabalhador usará a
sociedade para os seus fins egoístas. ‘Tu só tens um fim em vista, o egoísmo
do teu bem-estar!’, é o que o humanista aponta ao socialista. ‘Segue um interesse
puramente humano, e podes contar comigo!’. ‘Mas para isso é preciso uma consciência
mais forte e mais alargada do que a de um trabalhador’. ‘O
trabalhador não faz nada, e por isso não tem nada: mas não faz nada porque o
seu trabalho é sempre isolado, calculado para as suas próprias necessidades do
dia-a-dia’. Perante isto, podemos pensar o seguinte: o trabalho de Gutenberg [inventor da prensa móvel] não ficou isolado, mas
gerou inúmeros filhos e vive ainda hoje, porque foi calculado para as
necessidades da humanidade, um trabalho eterno e imperecível.
A
consciência humanitária despreza tanto a consciência do burguês como a do
trabalhador: porque o burguês fica apenas ‘indignado’ com os vagabundos (todos
aqueles que não têm uma ‘ocupação definida’) e a sua ‘imoralidade’; o
trabalhador ‘irrita-se’ com o preguiçoso (‘madraço’) e os seus
princípios ‘imorais’, porque parasitários a associais [agregados]. Contra isto,
o humanista responde: A instabilidade de tantos é um produto teu, filisteu [aquele que é ou se mostra inculto e cujos interesses
são estritamente materiais, vulgares]! Mas tu, proletário, queres que
todos se esfalfem [esgotem],
queres tornar universal o trabalho de escravo, mas isso vem
de até agora teres sido sempre um burro de carga. O que tu queres é que todos
se matem a trabalhar, para aliviar o próprio trabalho, mas apenas para que
todos possam ter a mesma dose de ócio. Mas o que é que eles vão fazer
com o seu ócio? Que coisa faz a tua ‘sociedade’ para que esse ócio seja passado
de forma humana? Tem de deixar outra vez ao arbítrio [vontade] egoísta o
ócio conquistado, e precisamente o lucro que a tua sociedade
exige irá beneficiar o egoísta, do mesmo modo que o lucro da burguesia, a ausência
de dominação pessoal do homem,
não pôde ser preenchido pelo Estado com um conteúdo humano, e por isso foi
deixado à arbitrariedade [casualidade].
É
claro que é preciso que o homem se liberte de senhores; mas isso não pode
implicar que o egoísta [individualista] se torne novamente senhor do homem, pois é o homem que deve
dominar o egoísta. É claro que o homem tem de ter ócio [folga, repouso, quietação], mas se o egoísta se aproveita dele,
ele de nada aproveitará aos homens; por isso, deveríeis dar ao ócio um significado humano.
Mas vós, trabalhadores, até o vosso trabalho executais a partir de impulsos
egoístas, porque o que quereis é comer, beber, viver; por que é que haveríeis de ser menos egoístas quando
se trata do ócio? Vós só trabalhais porque depois do trabalho é bom festejar
(preguiçar) [vadiar], e deixais ao acaso o preenchimento dos vossos
tempos de ócio.” (p.102-103)
Sobre o trabalho
“O trabalho deveria satisfazê-lo como
homem, e em vez disso satisfaz a sociedade; a sociedade deveria tratá-lo como
homem, mas trata-o como... trabalhador miserável ou miserável que trabalha.
Trabalho e sociedade são-lhe úteis, não
para satisfazer as suas exigências de homem, mas de egoísta [no sentido negativo].
(...)
Por isso, o liberalismo humanista diz: Vós
quereis o trabalho. Muito bem, nós também, mas queremo-lo de forma plena. Não o
queremos para podermos ter lazer, mas para encontrar nele próprio toda a
satisfação. Queremos o trabalho porque ele é o fundamento do nosso
desenvolvimento pessoal.
Mas então o trabalho terá de estar à altura
dessa exigência! (...) o trabalho que seja a auto-revelação do homem, de modo a
que se possa dizer: laboro, ergo sum,
trabalho, logo sou um homem. O liberal humanista pede um labor do espírito que
elabore, transformando-a, toda a matéria, o espírito que não deixe nada
intocado ou como é, o espírito que não se deixa aquietar, que analisa e submete
a renovada crítica os resultados obtidos. Este espírito inquieto é o verdadeiro
trabalhador, que anula os preconceitos, destrói barreiras e limitações e eleva
o homem acima de todas as coisas que pretendem dominá-lo, enquanto o comunista
trabalha apenas para si, e nem sequer por livre escolha, mas por necessidade – em suma, concebe o trabalho como forçado.
Um trabalhador deste tipo não é egoísta [no sentido negativo], porque
não trabalha para indivíduos, nem para si próprio nem para outros indivíduos,
portanto não para indivíduos privados, mas para a humanidade e o seu progresso;
não alivia dores individuais, não resolve necessidades individuais, mas levanta
as barreiras que oprimem a humanidade, destrói preconceitos que dominam épocas
inteiras, supera obstáculos que atravancam o caminho de todos, elimina erros
que confundem os homens, descobre verdades que valerão para todos e para todos
os tempos, em suma... vive e trabalha para a humanidade.
Acontece que, em primeiro lugar, o
descobridor de uma grande verdade sabe muito bem que ela poderá ser útil aos
outros; e, como não lhe dá qualquer prazer guardá-la zelosamente só para si,
comunica-a aos outros; mas, apesar de ter consciência de que a sua comunicação
pode ter valor para os outros, isso não significa que a tenha buscado e
encontrado por amor dos outros, mas para si próprio, porque sentia esse desejo, porque o obscurantismo
e o erro lhe não davam descanso até ele, empenhando o melhor das suas forças,
alcançar a luz e o esclarecimento. Ou seja, ele trabalha para si e para satisfazer
os sem desejos. O fato de, com isso, poder ser útil aos outros e até à
posteridade, em nada afeta o carácter egoísta
do seu trabalho.” (p.108-109)
Sobre
a lei
“Esforçamo-nos
por distinguir a lei da ordem arbitrária [casual], de um comando,
dizendo que aquela parte de uma autoridade legítima [autêntica]. Mas uma lei
sobre a ação humana (lei ética, lei do Estado, etc.) é sempre uma expressão
de uma vontade, logo uma ordem. Mesmo se eu fizesse a minha lei só para
mim, ela seria apenas a minha ordem, a que eu poderia recusar obedecer em
qualquer momento. Poderia dizer-se: alguém pode sempre declarar o que está
disposto a suportar, proibindo o que se lhe oponha através de uma lei,
ameaçando considerar seu inimigo todo o transgressor [violador]; mas ninguém
pode mandar nas minhas ações, ninguém me pode querer impor [fixar] este
ou aquele modo de agir através de uma lei a que me obriga. Tenho de aceitar o
fato de ele me querer tratar como seu inimigo, mas nunca que ele ponha e
disponha de mim como se eu fosse criatura sua, nem que ele faça da sua
razão ou desrazão a minha regra de conduta.” (p.155)
Sobre
o Estado
“Os
Estados só duram enquanto houver uma vontade dominante e essa vontade
for vista como idêntica à vontade própria. A vontade do senhor é... lei. De que
te servem as tuas leis se ninguém as segue, de que te servem as tuas ordens se
ninguém lhes obedece? O Estado não pode abdicar da pretensão de determinar a
vontade individual de especular sobre ela e de contar com ela. Para ele é
absolutamente necessário que ninguém tenha vontade própria; se alguém a
tiver, o Estado tem de a eliminar (prendendo-o, exilando-o, etc.); se todos a
tivessem, poderiam abolir [acabar, eliminar] o Estado. O Estado não é
imaginável sem dominação e opressão (sujeição), porque o Estado tem de querer
ser senhor de todos aqueles que abarca [abrange, inclui], e a esta vontade
chama-se ‘vontade do Estado’.” (p.156)
“Todo
o Estado é um regime despótico [poder isolado, arbitrário], quer o déspota seja um ou
muitos, quer sejam todos os dominadores, cada um exercendo a sua ação despótica
sobre os outros, como se pensa que acontece numa república. Isto acontece de
fato quando uma lei, uma vez estabelecida na sequência da clara vontade de uma
assembleia nacional, passe a ser uma lei para todo o indivíduo, que lhe deve
obediência e perante a qual tem o dever de obediência. Mesmo
imaginando que cada indivíduo tinha manifestado a mesma vontade e assim se
formaria uma ‘vontade geral’, mesmo assim as coisas não se alterariam. Não
ficaria eu preso, hoje e depois, à minha vontade de ontem? Neste caso, a minha vontade
ficaria petrificada [estagnada].
Detestável sensibilidade! A minha criatura, isto é, uma
determinada expressão de vontade, tornar-se-ia no meu tirano, e eu, seu criador
dotado de vontade, ficaria tolhido no meu desenvolvimento e na minha
dissolução. Pelo fato de ontem ter sido um idiota, estaria condenado a permanecer
assim para o resto da vida. Deste modo, na vida do Estado eu sou, na melhor das
hipóteses – também poderia dizer: na pior –, um escravo de mim próprio. Porque
ontem fui um ser de vontade, hoje sou um ser sem vontade; ontem voluntário,
hoje involuntário.” (p.156)
“Seria
o caos total se cada um pudesse fazer o que lhe apetece [quer, anseia]!” Mas
quem diz que cada um pode fazer tudo? Para que é que tu estás aqui, tu que não
tens de aceitar tudo? Defende-te, e ninguém te fará nada! Quem quiser quebrar a
tua vontade terá de se haver contigo e é teu inimigo. Trata-o como tal.
Se tiveres atrás de ti uns quantos milhões para te protegerem, sereis uma força
imponente e triunfareis facilmente. Mas mesmo que a vossa força vos traga o
respeito do adversário, isso não significa que sejais uma autoridade sagrada, a
não ser que ele seja um ladrão. Ele não vos deve respeito nem consideração,
ainda que tenha de tomar cuidado perante a vossa força.
Costumamos
classificar os Estados de acordo com a forma como o ‘poder supremo’ neles está
repartido. Se for por um só – monarquia; se for por todos – democracia, etc. O
poder supremo, então! Poder contra quem? Contra o indivíduo e a sua ‘vontade
própria’. O Estado exerce o seu ‘poder’, o indivíduo não o pode fazer. O
comportamento do Estado é o do poder violento: a esse poder ele chama
‘direito’, ao do indivíduo chama-lhe ‘crime’. O poder do indivíduo chama-se
então crime, e só pelo crime ele pode quebrar o poder do Estado, se for de
opinião que não é o Estado que está acima dele, mas ele acima do Estado.” (p.157)
“Todo
o eu é, desde o nascimento, um criminoso contra o povo, contra o Estado. Por
isso este vigia realmente todos, vê em cada indivíduo um... egoísta
[individualista], e receia os egoístas. Imagina o pior de cada um, e dá
atenção, atenção policial, a que ‘nenhum dano possa ser feito ao Estado’, ne
quid respublica detrimenti capiat
[para que o Estado não sofra nenhum dano]. O eu sem peias
[travas] – e é isso que somos originalmente, e continuamos a sê-lo no mais
íntimo de nós – é para o Estado o criminoso em permanência. O indivíduo que é
guiado pela sua ousadia, pela sua vontade, pela sua indiferença aos princípios
e aos receios, é rodeado de espiões ao serviço do Estado e do povo. E digo: do
povo! O povo – e vós, cidadãos bondosos, que pensais maravilhas dele! –, o povo
está totalmente impregnado de mentalidade policial. Só quem renuncia ao seu eu,
só quem pratica a ‘negação de si’, agrada ao povo.” (p.159-160)
“Aquilo
a que se chama Estado é um entrançado e uma rede de dependências e adesões, é
qualquer coisa da ordem da pertença [pertinência], uma coesão [concordância], no âmbito da
qual os membros se adaptam uns aos outros, ou seja, dependem uns dos outros: o
Estado é a ordem dessa dependência. Imaginemos que o rei, cuja
autoridade concede autoridade a todos, até ao nível do esbirro [agente de polícia], desaparecia; nesse caso,
todos aqueles em quem o sentido da ordem continuasse desperto manteriam a ordem
contra a desordem da bestialidade [brutalidade]. E se a desordem vencesse, o
Estado desapareceria.
Mas
estará esta ideia do amor – adaptarmo-nos uns aos outros, ligados e dependentes
– verdadeiramente em condições de nos conquistar? Se assim fosse, o Estado
seria a realização do amor, e cada um existiria e viveria para os
outros. A aceitação do sentido da ordem não faz perder o sentido de si, a
vontade individual? Não nos contentaremos então se a força impuser a ordem,
isto é, que ninguém ‘se chegue de mais’ ao outro, para que o rebanho possa
ser conduzido e disposto de forma conveniente? Assim, tudo estará na “melhor
ordem”, e essa ordem chama-se... Estado.”
(p.176-177)
“As
nossas sociedades e os nossos Estados são sem que nós os façamos, estão
unidos sem que nós o estejamos, são predestinados e existem ou têm uma existência
própria e independente, constituem, contra nós, egoístas [individualistas],
o irredutível estado de coisas vigente [validas]. A luta que hoje se trava no
mundo dirige-se, como se diz, contra o ‘estado de coisas vigente’. Mas
geralmente entende-se isto de forma errada, como se o que agora existe tivesse
apenas de ser trocado por outra coisa melhor. Mas a guerra deveria ser
declarada ao próprio existir desse estado de coisas, ou seja, ao Estado (status),
não a um determinado Estado nem ao estado atual do Estado; o que se tem em
vista não é um outro Estado (por exemplo, um ‘Estado popular’), mas a associação
que ele representa, a união, sempre fluida, de todos os elementos existentes.
Um Estado existe sem que eu tenha de fazer nada por isso: eu nasço nele, cresço
nele, tenho os meus deveres para com ele e tenho de lhe ‘prestar homenagem’.
Por sua vez, o Estado recebe-me na sua ‘graça’, e eu vivo dela. Assim, a
existência autônoma [independente, livre] do Estado fundamenta a minha
dependência, a sua ‘naturalidade’, o seu organismo, exigem que a minha natureza
não cresça livremente, mas se lhe ajuste. Para que ele se possa desenvolver de
forma natural, aplica-me a mim a tesoura da ‘cultura’; dá-me uma instrução e
uma educação que lhe servem a ele, mas não a mim, e ensina-me, por exemplo, a
respeitar as leis, a não agir contra a propriedade do Estado (isto é,
propriedade privada), a venerar uma autoridade, divina e terrena, etc.; em
suma, ensina-me a ser irrepreensível, exigindo com isso que eu ‘sacrifique’ a minha
singularidade [distinção] própria a algo de ‘sagrado’ (e muitas coisas podem
ser sagradas, por exemplo a propriedade, a vida dos outros, etc.). Nisso
consiste o tipo de cultura e formação que o Estado me pode dar: educa-me para
eu ser uma ‘ferramenta útil’, um ‘membro útil da sociedade’.” (p.177)
“Estado
tem sempre uma única finalidade: limitar o indivíduo, refreá-lo, subordiná-lo,
fazer dele súbdito de uma qualquer ideia geral; só dura enquanto o
indivíduo não for tudo em tudo, e é apenas a mais marcada expressão da limitação
do meu eu, da minha limitação e da minha escravidão. Nunca um Estado tem
como objetivo permitir a atividade livre de cada indivíduo, mas sempre aquelas
que estão ligadas aos interesses do Estado. E também nada de comum pode
nascer dele, do mesmo modo que um tecido não pode ser visto como o trabalho
comum de todas as partes de uma máquina; trata-se antes do trabalho de toda a
máquina como uma unidade, um trabalho mecânico. A forma como as coisas
acontecem com a máquina do Estado é semelhante; é ela que faz mover as
engrenagens de cada um dos espíritos em particular, mas nenhum deles pode
seguir o seu próprio impulso. O Estado procura travar toda a atividade livre,
através da sua censura, da sua vigilância, da sua polícia, e toma isso como seu
dever, que é na verdade um dever que lhe é ditado pelo seu instinto de
conservação. O Estado quer fazer alguma coisa dos homens, e é por isso que nele
só vivem homens fabricados; todo aquele que quiser ser ele próprio é seu
inimigo, e não vale nada. Este ‘não vale nada’ significa que o Estado não
encontra utilidade para ele, não lhe confia nenhuma posição, nenhum posto,
nenhum negócio, etc.” (p.179-180)
“(...)
Sob a dominação do Estado, não há propriedade a que possa chamar minha.
Eu
quero elevar o valor de mim próprio, o valor da singularidade-do-próprio, e
pede-se-me que desvalorize a propriedade? A minha resposta é não! Do mesmo modo
que, até agora, eu não fui levado em conta, porque se colocava acima de mim o
povo, a humanidade e mil outras instâncias universais, também a propriedade não
foi até hoje reconhecida no seu devido valor. Também a propriedade era apenas
propriedade de um fantasma, por exemplo, propriedade do povo; toda a minha
existência ‘pertencia à pátria’: Eu pertencia à pátria, ao povo, ao
Estado, e com isso também tudo aquilo a que chamava meu. Exige-se dos
Estados que erradiquem o pauperismo [absoluta
pobreza]. A mim parece-me que isso significa a exigência de o Estado
cortar a própria cabeça e pô-la aos seus pés; porque enquanto o Estado for o eu, o eu individual será sempre um pobre diabo, um não-eu. O Estado tem
apenas um interesse, o de ser rico; não lhe importa saber se o Manuel é rico e
o João é pobre, e também ficaria indiferente se o João fosse rico e o Manuel
pobre. Ele assiste, indiferente, a este jogo de sorte que leva uns a ficar
pobres e outros ricos. Enquanto indivíduos, eles são, perante o Estado,
realmente iguais, e nisso ele é justo: perante ele, ambos são... nada, tal como
nós, ‘perante Deus, somos todos pecadores’. Mas o Estado já tem um grande
interesse em que aqueles indivíduos que fazem dele o seu eu partilhem da sua riqueza: faz deles participantes da sua
propriedade. Através da propriedade, com a qual recompensa os indivíduos,
ele domestica-os; mas a propriedade continua a ser sua, e cada um pode
apenas usufruir dela enquanto trouxer em si o eu do Estado ou for ‘um leal membro da sociedade’; caso contrário,
a propriedade é confiscada ou reduzida a nada por meio de processos penais. A
propriedade é e será, assim, propriedade do Estado, e não propriedade do
eu. O fato de o Estado
não retirar de forma arbitrária [aleatória] ao indivíduo aquilo que este dele
recebe significa apenas que o Estado não se rouba a si próprio. Quem for um
eu-de-Estado, isto é, um bom cidadão ou súbdito, desfruta tranquilamente do seu
feudo enquanto eu desse tipo, mas não como eu próprio. A isso, o código
dá um nome: propriedade é aquilo a que eu chamo meu ‘em nome de Deus e do
direito’. Mas mesmo com o aval [apoio] de Deus e do direito, isso só é meu
enquanto o Estado não tiver nada a opor.” (p.199-200)
Sobre a propriedade
“Na
opinião dos comunistas, é a comunidade que deve ser proprietária. De fato, é ao
contrário: eu sou proprietário e limito-me a entender-me com os outros sobre a
minha propriedade. Se a comunidade me tratar mal, rebelo-me contra ela e
defendo a minha propriedade. Eu sou proprietário, mas a propriedade não é
sagrada. Dirão que então sou apenas alguém que possui bens. Não, até agora
só se era possuidor, com a sua pequena parcela assegurada, se se concedia
também a outros a posse de outras parcelas; mas agora tudo me pertence a
mim, eu sou proprietário de tudo aquilo de que preciso e de que me
posso apoderar. Os socialistas dizem que a sociedade me dá tudo o que eu
preciso, mas o egoísta diz: ‘Eu apodero-me daquilo de que preciso’. Os
comunistas comportam-se como miseráveis, o egoísta como proprietário.
(...)
Assim,
a propriedade não deve nem pode ser abolida [eliminada], tem, isso sim, de ser
arrancada a mãos espectrais [de fantasmas] e tornar-se minha propriedade;
nessa altura, desaparecerá das consciências a ideia falsa segundo a qual eu não
tenho o direito de me apoderar daquilo de que preciso.
‘Mas,
há alguma coisa de que o homem não precise?’ Bom, aqueles que precisam de muito
e sabem como lá chegar, sempre se apropriaram do que queriam, como Napoleão fez
com o continente e os Franceses com a Argélia. Por isso, o importante é que a
‘plebe’ respeitosa finalmente aprenda a ir buscar aquilo de que precisa. Se ela
for longe de mais, pois defendei-vos. Não precisais de lhe oferecer nada de boa
vontade; e se ela aprender a conhecer-se – melhor, o plebeu que aprender a conhecer-se
–, livrar-se-á do seu plebeísmo virando as costas às vossas esmolas. O que é
deveras ridículo é a vossa etiqueta de ‘pecaminosa e criminosa’, quando ela não
pretende viver das vossas boas ações, porque é capaz de ir buscar o que
precisa. As vossas ofertas enganam-na e refreiam-na. Defendei a vossa
propriedade, e sereis fortes; mas se, pelo contrário, quiserdes manter a vossa
capacidade de oferta e, quem sabe, ter ainda tantos mais direitos políticos
quantas mais esmolas (o imposto dos pobres) derdes [oferecer], isso não durará
mais tempo que aquele que os beneficiários [beneficiados] permitirem.
Em
conclusão: a questão da propriedade não é de resolução pacífica, como sonharam
os socialistas e até os comunistas. Só será resolvida com a guerra de todos
contra todos. Os pobres só serão livres e proprietários se se rebelarem, se
revoltarem, se sublevarem [revolucionarem]. Por mais que lhes oferecerdes, eles
vão sempre querer mais; porque o que eles querem é, nada mais nada menos, que
finalmente se acabe com as dádivas [doações].
Perguntar-se-á: mas que acontecerá se os
que nada têm tomarem coragem e decisões? De que tipo será então a igualização?
É o mesmo que pretender que eu preveja a hora exata do nascimento de uma
criança. Para saber o que fará um escravo depois de ter quebrado as cadeias,
teremos... de esperar.” (p.204-205)