domingo, 24 de maio de 2015

BARUCH SPINOZA


Vida potente

A vida tem a ver com a potência. Com a energia que, a cada instante, podemos disponibilizar para viver. Nada nos é mais essencial. Se nos amputarem uma perna, continuaremos sendo o que somos. Da mesma forma, um braço. Ou outras partes de nós. E que parte de nós não podemos amputar? Sob pena de deixar de ser. Qualquer uma que, se amputada, aniquilasse nossa potência. Porque sem potência para agir, deixamos de ser.

Sua potência oscila, segundo a segundo. Afinal, as coisas que nos acontecem, os fragmentos de mundo que desfilam diante de nós, acabam interagindo conosco e nos transformando.

Potência e essência

A potência — que é a nossa nesse determinado instante — permite que sejamos o que somos. E só nossa. Não é a potência de mais ninguém. É também incomunicável. Intransferível. Inalienável. Incompartilhável. Daí nossa solidão. Condição de nossa existência.

Cada um na sua. Porque nossas sensações são nossas. Estritamente. Porque ninguém sente o que sentimos. Nunca sentimos mesmo o que sentem os demais. Por mais que se esforcem para nos contar. Suas tristezas são suas.

Esta nossa potência é só nossa, nosso diferencial, nosso casulo. Mas, ao mesmo tempo, está à mercê do resto do mundo onde nos encontramos.

Potência na imanência

O real é o todo. Podemos chamá-lo de mundo ou de universo. Esse mundo, por ser o todo, não tem lado de fora. Se tivesse, não seria o todo.

Espinosa não atribuía ao real nem beleza, nem feiura; nem ordem, nem confusão. Por falta de referência externa. Por ausência de gabarito. Porque o real é o que é. Tão somente. Conclui-se que qualquer ordem, caos, beleza, feiura, justiça, crueldade que atribuamos ao mundo advém apenas dos afetos de nosso corpo. Ou de nossas expectativas. De como gostaríamos que fosse.

Este mundo que só tem adjetivos para nós — é constituído por partes. E estas partes, por sua vez, também são constituídas por outras partes. E assim por diante.

Potência e relação

Essas partes só constituem o mundo quando se encontram em relação.

A rigor, o que estamos chamando de mundo é o todo das relações entre todas as partes.

Quando dois corpos A e B se relacionam, isto, antes de tudo, quer dizer que A age sobre B e B age sobre A. Ora, se um age sobre o outro, significa que produz sobre ele efeitos. Transformando-o. Determinando-o.

O homem que é todo constituído de partes — também é parte. Somos, todos, partes do mesmo todo. Imanentes ao mundo ou à natureza como tudo mais. Sem com ela rivalizar ou a ela transcender.

Desta forma, nem nós  nem qualquer outra entidade — olha e julga o mundo de fora. Por falta de poderes divinos. Assim, quando qualquer corpo se manifesta, está agindo enquanto parte. Porque a ninguém — nem a nada — é possível ir além desta condição. E todo discurso com pretensão universal ou imparcial é pura ingenuidade, ilusão, falácia. Ignorância da própria condição.

A vida do homem enquanto parte também se materializa em relações. Viver é relacionar-se. É estar em relação. Por isso a vida de qualquer um de nós não pode ser analisada pelo que supostamente somos, mas pelo que acontece conosco no mundo. Na medida em que somos efeito do mundo com o qual nos relacionamos. Como, a cada instante, o mundo se relaciona com o nosso corpo, age sobre ele ininterruptamente. Produzindo sobre ele efeitos. Por isso, também para nós, viver em relação é viver em transformação contínua.

Inferimos daí duas coisas: a primeira é que o mundo não para de nos afetar. A segunda é que não paramos de afetar o mundo.

Potência e afetos

“Postulados: 1. O corpo humano pode ser afetado de muitas maneiras, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, enquanto outras tantas não tornam sua potência de agir nem maior nem menor” (ESPINOSA. Ética).

Potência não percebida

Muitas vezes não percebemos a oscilação de potência de agir que o mundo determina sobre nosso corpo ao se relacionar com ele.

Portanto, muita coisa que acontece com você vai passar despercebida. E isso explica o fato de você ir se convertendo no que é sem entender muito bem por quê.

Tentamos, em função de experiências anteriores, prever encontros desagradáveis. Para evitá-los.

Potência e livre-arbítrio

Dentre as crenças judaico-cristãs, a mais consagrada no discurso moral, já nos tempos de Espinosa, é a do livre-arbítrio. A liberdade da vontade de escolher entre várias opções. É o que permitiria ao homem ser o responsável por sua própria salvação ou perdição. Não fossemos livres, não poderíamos pecar. Não poderíamos ser julgados e condenados.

O livre-arbítrio pressupõe o poder da razão para controlar os afetos. Para Espinosa, apenas uma ilusão. Que decorre da ignorância das causas verdadeiras, eficientes, materiais que determinam certa ação. Uma construção que coloca o homem acima da necessidade dos fluxos causais da natureza. Um equívoco da imaginação.

Para que o livre-arbítrio seja possível, seria necessário que o mundo, todo ele, fosse indeterminado, contingente, acidental. Que as ocorrências não tivessem nada a ver umas com as outras. Seria preciso que o vento pudesse não erodir. Que a pera pudesse não cair, mesmo madura.

Outra possibilidade seria estabelecer uma fronteira de difícil fundamentação — entre toda a natureza e o homem. Assim, de um lado, tudo na natureza seria necessário. Determinado. Como só poderia ser. Vítima de suas causas materiais. Sem liberdade e sem arbítrio. E, de outro lado, só o homem, apenas ele — talvez por ser filho de Deus, parecer com ele e, por isso, estar meio fora, ou acima, dos nexos de causalidade — ser indeterminado. Flutuante. E, por isso tudo, de arbítrio livre. Indeterminado. Autodeterminado. Criador de si mesmo.

Porque, na sua perspectiva, a ação do homem é tão determinada pela natureza quanto a do leopardo. E se, porventura, ele não mata, não é porque livremente deliberou assim. Mas porque no enfrentamento entre a satisfação e a insatisfação trazidas pela cogitação da morte do outro, triunfou a segunda.

Mas quem decidiu não tem como saber o que aconteceu. O que o levou a decidir. As causas afetivas da decisão. As variáveis emocionais que participaram daquele momento decisório.

Até aqui, o mundo não parou de nos afetar. Mas você leitor, tanto quanto tudo que existe, não deixa barato. E também age sobre o mundo. Afeta o mundo. Faz com que seja como é. Porque o mundo não seria como é se você não fosse, e o transformasse ininterruptamente.

Impossível seria não afetá-lo. Isso implicaria não entrar em relação.

Como não impactar? Mesmo que você fique parado num descampado, o vento que normalmente passaria por onde você está tem que desviar. Por sua causa. E o mundo, por isso, foi diferente do que teria sido se você não fosse, se lá não estivesse. O ar, que por sua vez encontrou você, fez de você outro. Erodido pelo atrito. Resfriado pelo contraste de temperatura. Refrescado pelo calor que sentia.

Em toda essa fugacidade, o que mais importa para a vida é que, pelo fato de sermos afetados no todo, também não permanece a nossa própria essência. Aquilo sem o que não viveríamos. Nossa potência de agir.

Potência de agir

Nossa essência, nossa potência de agir. Algumas passagens são boas, outras más. São boas quando passamos de um corpo menos potente para outro mais potente. Será má, ou ruim, a passagem no sentido contrário. Quando o resultado final da relação determinar perda de potência em nosso corpo.

E essas passagens têm nome. Quando são boas, e com elas ganhamos potência, denominam-se alegria. Quando são ruins e implicam perda de potência, denominam-se tristeza. Assim, o mundo é bom quando alegra. E ruim, quando entristece. E mais: como a potência é nossa essência, a alegria nos aproxima de nossa essência, portanto, de nossa perfeição. Enquanto que a tristeza nos rouba potência. E, portanto, o que nos é essencial. Distanciando-nos de nós. De nossa perfeição.

Potência e resistência

Alegria tem a ver com vida boa. Tristeza, com o seu contrário. Podemos dizer que somos orientados por um movimento natural de insistência na própria existência.

Por isso, existir é insistir. Nada fazemos sem afirmar-nos no mundo. Tudo o que é, todo o ser, esforça-se, na medida em que pode, para continuar a ser. Esforço que Espinosa vai nomear conatus. Todos os seres são dotados necessariamente dessa força interna de autopreservação. Eis a sua essência.

Potência de pensar

Quando seu corpo a encontra, sua potência de agir aumenta. E, na solidão da alcova, a alma que nela pensa se alegra também. Aumenta a sua potência de pensar.

No entanto, nossa alma tem limites. Não consegue perceber nada no mundo senão por intermédio de um afeto sofrido pelo próprio corpo. Não percebe outro corpo em ato, na sua própria potência. Por isso, todo contato com o mundo é sempre mediado pelo nosso corpo. Pela maneira como é afetado.

Apesar de todas essas limitações, continuaremos nos esforçando ao máximo para pensar em coisas que aumentem a potência de agir do nosso corpo.

Porque o que passa pela nossa cabeça pode nos entristecer mesmo. Às vezes estamos bem, nada aconteceu diante de nós, e por conta de algum pensamento, nossa potência míngua.

O que nos ensina Espinosa é que toda vez que algum pensamento deste tipo nos acomete, nossa alma se esforça o máximo que pode para pensar em outra coisa.

E, assim vamos: em luta pelos encontros alegres de nosso corpo com o mundo; por evitar os tristes; por imaginar coisas que aumentam a potência de agir do corpo e a potência de pensar da alma; bem como por evitar as imaginações que enfraquecem, que refreiam a ambos. A vida que vale a pena ser vivida aqui é quando isso tudo dá certo. Quando ganhamos potência. Quando nos aperfeiçoamos. E você continuará lutando por ela.


Referência Bibliográfica:


DE BARROS FILHO, Clóvis. A vida que vale a pena ser vivida. Editora Vozes, 2010.

MONTESQUIEU


Durante a era do Iluminismo no século XVIII, a autoridade tradicional da Igreja foi minada pelas descobertas científicas e questionou-se a ideia de monarcas governando segundo o direito divino. Na Europa, em especial na França, muitos filósofos políticos começaram a investigar o poder da monarquia, do clero e da aristocracia. Destacando-se entre eles, estavam Voltaire, Jean-Jacques Rousseau e Montesquieu. Rousseau defendia que o poder passasse da monarquia para o povo, e Voltaire, que houvesse a separação entre Igreja e Estado. Montesquieu pensava menos na figura do governante. Para ele, era mais importante a existência de uma constituição que evitasse o despotismo. Isso se daria, argumentava, pela separação dos poderes dentro do governo.

Montesquieu dizia que o despotismo era a maior ameaça individual à liberdade dos cidadãos, e tanto as monarquias quanto as repúblicas corriam o risco de degenerar no despotismo, a menos que fossem reguladas por uma constituição capaz de prevenir tal destino. No cerne desse argumento estava a divisão do poder administrativo do Estado em três categorias distintas: o executivo (responsável pela administração e aplicação das leis), o legislativo (responsável por aprovar, rejeitar e propor emendas às leis) e o judiciário (responsável por interpretar e aplicar as leis).


Separação de poderes

A distinção entre os diversos poderes de governo, às vezes conhecida por trías política, não era nova — os gregos e romanos antigos reconheciam divisão similar. Montesquieu inovava na defesa de instituições separadas para exercer esses poderes. Isso criaria um equilíbrio, garantindo um governo estável com um risco mínimo de descambar no despotismo. A separação de poderes garantiria que nenhuma das instituições administrativas pudesse assumir todo o poder, já que cada uma delas conseguiria restringir qualquer abuso de poder das outras. Apesar de as ideias de Montesquieu terem enfrentado a hostilidade das autoridades na França, seu princípio de separação de poderes foi muito influente, especialmente na América, onde se tornou o alicerce da Constituição dos Estados Unidos. Depois da Revolução Francesa, tal separação também se tornou modelo para a nova república, e, conforme se formavam novas democracias ao redor do mundo no século seguinte, suas constituições mantinham, em geral, alguma variação desse sistema tripartite.

Referências biográficas: 

BUCKINGHAM, Will; BURNHAM, Douglas. O livro da Filosofia. São Paulo: Globo, 2011.

sexta-feira, 1 de maio de 2015

OS MODERNOS E DESCARTES

OS MODERNOS

Para os Modernos, o todo não tem mais nada de sagrado, já que para eles não existe cosmos divino e harmonioso no seio do qual seria necessário encontrar um lugar a se inserir. Apenas o indivíduo conta, de tal modo que, a rigor, uma desordem é melhor do que uma injustiça. Não se tem mais o direito de sacrificar os indivíduos para proteger o Todo, pois o Todo não é nada mais do que a soma dos indivíduos, uma construção ideal na qual cada ser humano, porque é "um fim em si", não pode mais ser tratado como um simples meio.

Você vê que o termo individualismo não designa, como se pensa habitualmente, o egoísmo, mas quase o oposto, o nascimento de um mundo moral no seio do qual indivíduos, pessoas, são valorizados na medida de suas capacidades de se desprenderem da lógica do egoísmo natural para construir um universo ético artificial.

DESCARTES


O "cogito" de Descartes ou a primeira origem da filosofia moderna

Cogito ergo sum, "penso, logo existo": talvez você já tenha ouvido essa fórmula. Se não, saiba que ela é, entre todas as sentenças filosóficas, uma das mais célebres do mundo. Com justa razão, porque ela marca uma data na história do pensamento, porque ela inaugura uma nova época: a do humanismo moderno, no seio do qual vai reinar o que será designado "subjetividade".

Por meio da experiência da dúvida radical que Descartes inventa totalmente há três ideias fundamentais que aparecem pela primeira vez na história do pensamento, fundadoras da filosofia moderna.

Primeira ideia: ao examinar cuidadosamente a única certeza que resiste a qualquer prova — no caso, o cogito —, ele está certo de conseguir descobrir um critério confiável da verdade. Assim, é um estado de nossa consciência subjetiva, a certeza, que vai se tornar o novo critério da verdade. Isso já mostra o quanto a subjetividade se torna importante para os Modernos.

Segunda ideia fundamental será ainda mais decisiva no plano histórico e político: é a da "tabula rasa", a da rejeição absoluta de todos os preconceitos e de todas as crenças herdadas das tradições e do passado. Pondo radicalmente em dúvida, sem distinção, a totalidade das ideias prontas, Descartes simplesmente inventa a noção moderna de revolução.

Na modernidade, é o homem, o sujeito humano, que se torna o fundamento de todos os pensamentos e de todos os projetos.
Não convém "dar crédito", como diz Descartes, senão àquilo de que podemos estar absolutamente certos por nós mesmos, Dai ;i natureza nova, fundada na consciência individual, e não mais na tradição.

Terceira ideia: é preciso rejeitar todos os "argumentos de autoridade". Chamamos "argumentos de autoridade" as crenças impostas de fora como verdades absolutas por instituições dotadas de poderes que não se tem o direito de discutir, ainda menos de questionar: a família, os professores, os sacerdotes etc.

A ideia de que deveriam aceitar uma opinião porque seria a mesma das autoridades, quaisquer que elas fossem, repugna tão fundamentalmente aos Modernos que ela praticamente acaba por defini-los como tais.

É uma filosofia do "sujeito", um humanismo, e até mesmo um antropocentrismo, quer dizer, no sentido etimológico, uma visão do mundo que coloca o homem (anthropos, em grego) — e não o cosmos ou a divindade — no centro de tudo.

Da interrogação moral à questão da salvação: o ponto em que essas duas esferas jamais poderiam se confundir

Se quiséssemos resumir as ideias modernas, poderíamos simplesmente definir as morais laicas como um conjunto de valores expressos por deveres ou imperativos que nos pedem um mínimo de respeito pelo outro, sem o qual uma vida comum pacificada é impossível.

Inútil sermos santos, apóstolos perfeitos dos direitos do homem e da ética republicana, nada nos garantiria o sucesso da vida afetiva. A ética nunca impediu ninguém de ser traído ou abandonado. Salvo engano, nenhuma das histórias de amor representada nas grandes obras romanescas depende da ação humanitária... Se a aplicação dos direitos do homem permite uma vida comum pacificada, eles não oferecem por si mesmos nenhum sentido, nem mesmo nenhuma finalidade ou direção à existência humana.

Eis por que, no mundo moderno assim como nos tempos passados, foi preciso inventar, para além da moral, algo que ocupasse o lugar de uma doutrina da salvação. O problema é que sem cosmos e sem Deus a coisa parece particularmente difícil de se pensar. Como enfrentar a fragilidade e a finitude da existência humana, a mortalidade de todas as coisas neste mundo, na falta de qualquer princípio exterior e superior à humanidade?

Referências Bibliográficas:

FERRY, Luc. Aprender a viver: Filosofia para os novos tempos. Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 2010.

ALBERT CAMUS (1913-1960)


Algumas pessoas dizem que o dever da filosofia é a busca pelo sentido da vida. O filósofo e escritor francês Albert Camus julgava que a filosofia devia reconhecer, em vez disso, que a vida é sem sentido. Embora à primeira vista pareça uma visão pessimista, Camus acreditava que ao adotarmos essa ideia nos habilitamos a viver tão plenamente quanto possível.

Essa ideia de Camus apareceu no ensaio O mito de Sísifo. Sísifo foi um rei grego que, perdendo o apoio dos deuses, acabou condenado a um destino terrível no inferno. Sua tarefa era rolar uma pedra enorme até o topo de um monte, só para vê-la rolar de volta ao solo. Sísifo tinha, então, de caminhar penosamente de volta ao solo para recomeçar, repetindo isso por toda a eternidade. Fascinado por Sísifo, Camus acreditava que o mito parecia encerrar algo da falta de sentido e do absurdo de nossas vidas. E considerou a vida como uma luta infinita para realizar tarefas essencialmente sem sentido.

De um lado, somos seres conscientes que não conseguem deixar de viver suas vidas como se elas tivessem um sentido. De outro, esse sentido não existe no universo exterior, mas somente em nossas mentes. O universo como um todo não tem sentido e propósito - ele simplesmente é. Mas por termos consciência – diferentemente dos outros seres vivos –, somos o tipo de ser que encontra sentido e propósito em todo lugar.

Abraçar o absurdo

O absurdo, para Camus, é o sentimento que experimentamos ao reconhecer que os sentidos conferidos à vida não existem para além da nossa própria consciência. É o resultado de uma contradição entre a nossa percepção do sentido da vida e o nosso conhecimento de que, não obstante, o universo como um todo é sem sentido.

Camus explorou o significado de viver à luz dessa contradição. Ele afirmou que, para chegar à posição de poder viver plenamente, temos antes de aceitar o fato de que a vida é sem sentido e absurda. Ao abraçar o absurdo, nossas vidas tornam-se uma revolta constante contra a falta de sentido do universo – e então podemos viver livremente.

Essa ideia foi desenvolvida depois pelo filósofo Thomas Nagel, que disse que o absurdo da vida está na natureza da consciência, porque, por mais seriamente que encaremos a vida, sempre sabemos que existe alguma perspectiva a partir da qual essa seriedade pode ser questionada.

Trechos da obra O MITO DE SÍSIFO:

“Só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder à pergunta fundamental da filosofia.

(...) muitas pessoas morrem porque consideram que a vida não vale a pena ser vivida. Vejo outros que, paradoxalmente, deixam-se matar pelas ideias ou ilusões que lhes dão uma razão de viver (o que se denomina razão de viver é ao mesmo tempo uma excelente razão de morrer).
Matar-se, em certo sentido, e como no melodrama, é confessar. Confessar que fomos superados pela vida ou que não a entendemos. (...) Trata-se apenas de confessar que isso "não vale a pena". (...) Continuamos fazendo os gestos que a existência impõe por muitos motivos, o primeiro dos quais é o costume. Morrer por vontade própria supõe que se reconheceu, mesmo instintivamente, o caráter ridículo desse costume, a ausência de qualquer motivo profundo para viver, o caráter insensato da agitação cotidiana e a inutilidade do sofrimento.
Um mundo que se pode explicar, mesmo com raciocínios errôneos, é um mundo familiar. Mas num universo repentinamente privado de ilusões e de luzes, pelo contrário, o homem se sente um estrangeiro. E um exílio sem solução, porque está privado das lembranças de uma pátria perdida ou da esperança de uma terra prometida. Esse divórcio entre o homem e sua vida, o ator e seu cenário é propriamente o sentimento do absurdo. E como todos os homens sadios já pensaram no seu próprio suicídio, pode-se reconhecer, sem maiores explica­ções, que há um laço direto entre tal sentimento e a aspiração ao nada.

[1º tema] O tema deste ensaio é justamente essa relação entre o absurdo e o suicídio, a medida exata em que o suicídio é uma solução para o absurdo. Pode-se postular a princípio que as ações de um homem que não trapaceia devem ser reguladas por aquilo que ele considera verdadeiro. A crença no absurdo da existência deve então comandar sua conduta. É uma curiosidade legítima perguntar, com clareza e sem falso pateticismo, se uma conclusão desta ordem exige que se abandone de imediato uma condição incompreensível. Falo aqui, evidentemente, dos homens dispostos a estar de acordo consigo mesmos.

[2º tema] (...) será então preciso acreditar que não há relação alguma entre a opinião que se tem sobre a vida e o gesto que se faz para abandoná-la? (...) No apego de um homem à sua vida há algo mais forte que todas as misérias do mundo. O juízo do corpo tem o mesmo valor que o do espírito, e o corpo recua diante do aniquilamento. Cultivamos o hábito de viver antes de adquirir o de pensar.

[3º tema] O essencial desta contradição reside no que vou chamar de esquiva (...) A esquiva mortal que constitui o terceiro tema deste ensaio é a esperança. Esperança de uma outra vida que é preciso "merecer", ou truque daqueles que vivem não pela vida em si, mas por alguma grande ideia que a ultrapassa, sublima, lhe dá um sentido e a trai.

As pessoas se matam porque a vida não vale a pena ser vivida, eis uma verdade incontestável — infecunda, entretanto, porque é um truísmo. Mas será que esse insulto à existência, esse questionamento em que a mergulhamos, provém do fato de ela não ter sentido? Será que seu absurdo exige que escapemos dela, pela esperança ou pelo suicídio?

Cenários desabarem é coisa que acontece. Acordar, bonde, quatro horas no escritório ou na fábrica, almoço, bonde, quatro horas de trabalho, jantar, sono e segunda terça quarta quinta sexta e sábado no mesmo ritmo, um percurso que transcorre sem problemas a maior parte do tempo. Um belo dia, surge o "por quê" e tudo começa a entrar numa lassidão tingida de assombro. "Começa", isto é o importante. A lassidão está ao final dos atos de uma vida maquinal, mas inaugura ao mesmo tempo um movimento da consciência. Ela o desperta e provoca sua continuação. A continuação é um retorno inconsciente aos grilhões, ou é o despertar definitivo. Depois do despertar vem, com o tempo, a consequência: suicídio ou restabelecimento.
Da mesma maneira, e em todos os dias de uma vida sem brilho, o tempo nos leva. Mas sempre chega uma hora em que temos de levá-lo. Vivemos no futuro: "amanhã", "mais tarde", "quando você conseguir uma posição", "com o tempo vai entender". Estas inconsequências são admiráveis, porque afinal trata-se de morrer. Chega o dia em que o homem constata ou diz que tem trinta anos. Afirma assim a sua juventude. Mas, no mesmo movimento, situa-se em relação ao tempo. (...) Pertence ao tempo e reconhece seu pior inimigo nesse horror que o invade. O amanhã, ele ansiava o amanhã, quando tudo em si deveria rejeitá-lo.

Esses aromas de ervas e de estrelas, a noite, certas noites em que o coração se distende, como poderia negar este mundo cuja potência e cujas forças experimento? Mas toda a ciência desta Terra não me dirá nada que me assegure que este mundo me pertence. Vocês o descrevem e me ensinam a classificá-lo. Vocês enumeram suas leis e, na minha sede de saber, aceito que elas são verdadeiras. Vocês desmontam seu mecanismo e minha esperança aumenta. Por fim, vocês me ensinam que este universo prestigioso e multicor se reduz ao átomo e que o próprio átomo se reduz ao elétron. Tudo isto é bom e espero que vocês continuem. Mas me falam de um sistema planetário invisível no qual os elétrons gravitam ao redor de um núcleo. Explicam-me este mundo com uma imagem. Então percebo que vocês chegaram à poesia: nunca poderei conhecer. Tenho tempo para me indignar? Vocês já mudaram de teoria. Assim, a ciência que deveria me ensinar tudo acaba em hipótese, a lucidez sombria culmina em metáfora, a incerteza se resolve em obra de arte. Que necessidade havia de tanto esforço? As linhas suaves das colinas e a mão da noite neste coração agitado me ensinam muito mais. Voltei ao meu começo. Entendo que posso apreender os fenômenos e enumerá-los por meio da ciência, mas nem por isso posso captar o mundo.

Existe um fato evidente que parece absolutamente moral: um homem é sempre vítima de suas verdades. Uma vez que as reconhece, não é capaz de se desfazer delas. Precisa pagar um preço. Um homem consciente do absurdo está ligado a ele para sempre. Um homem sem esperança e consciente de sê-lo não pertence mais ao futuro. Isto é normal. Mas também é normal que se esforce para escapar do universo que criou. Tudo o que foi dito até aqui só tem sentido em função, justamente, deste paradoxo. Nada mais instrutivo quanto a isto do que examinar agora como os homens que reconheceram o ambiente absurdo, a partir de uma crítica ao racionalismo, impulsionaram suas consequências.

Para me ater às filosofias existenciais, vejo que todas me propõem, sem exceção, a evasão. (...) O tema do irracional, tal como é concebido pelos existencialistas, é a razão que se enreda e se liberta ao se negar. O absurdo é a razão lúcida que constata seus limites.

(...) o homem absurdo compreende que não é realmente livre. Para falar claro, na medida em que tenho esperança, em que me preocupo por uma verdade que me seja própria, uma maneira de ser ou de acreditar, na medida, enfim, em que organizo minha vida e provo assim que admito que ela tem um sentido, crio barreiras entre as quais recluo minha vida.
O absurdo me esclarece o seguinte ponto: não há amanhã. Esta é, a partir de então, a razão da minha liberdade profunda.

(...) a crença no absurdo equivale a substituir a qualidade das experiências pela quantidade. Se eu me convencer de que esta vida tem como única face a do absurdo, se eu sentir que todo seu equilíbrio reside na perpétua oposição entre minha revolta consciente e a obscuridade em que a vida se debate, se eu admitir que minha liberdade só tem sentido em relação ao seu destino limitado, devo então reconhecer que o que importa não é viver melhor, e sim viver mais. Não tenho que me perguntar se isto é vulgar ou enjoativo, elegante ou lamentável. Os juízos de valor ficam descartados aqui, de uma vez por todas, em benefício dos juízos de fato. Só posso extrair conclusões do que posso ver e não arriscar nada que seja uma hipótese.

O absurdo não liberta, amarra. Não autoriza todos os atos. Tudo é permitido não significa que nada é proibido. O absurdo apenas dá um equivalente às consequências de seus atos. Não recomenda o crime, seria pueril, mas restitui sua inutilidade ao remorso.

Observações:

Abraçamos absurdos para lidar com o absurdo da existência. O suicídio ausente de sentido, só uma ideologia para preenche-lo com algum significado. O suicídio pode se tronar um ideal superior, algo que demonstra poder sobre a vida e a natureza, mas isso é fantasia. Devemos viver sem dar sentido, viver por viver e aceitar a vida como ela é, assim a vida pode ser “boa”.


O homem que se consome é o sem esperança, ele se esgota por viver intensamente todas as possibilidades de vida. Quando se está aberto ao mundo, a multiplicidade de afetos é preferível, a esperança é um ideal absurdo. Viver aceitando o absurdo da existência é viver alegrias sem futuro, desapegados com os ideais.

Referências Bibliográficas:

BUCKINGHAM, Will; BURNHAM, Douglas. O livro da Filosofia. São Paulo: Globo, 2011.

CAMUS, Albert. O mito de Sísifo, editora Record, RJ, 2012.

ERASMO DE ROTTERDAM (1466-1536)


Filósofo humanista e teólogo, o holandês Erasmo era filho ilegítimo de um padre, tendo sido forçado à vida religiosa por seus tutores. Sua eterna paixão pelo latim começou no monastério, e Erasmo rapidamente ultrapassou a capacidade intelectual de seus tutores. Ele fugiu da vida monástica com quase 30 anos, passando a viajar e estudar intensamente. Por fim, foi para a Inglaterra e iniciou uma amizade com Thomas More, que perdurou até a morte deste, nas mãos de Henrique VIII. Foi durante o percurso da viagem de retorno à Inglaterra, depois de uma visita à Itália, que concebeu sua obra mais famosa, Elogio da loucura. Chegando à casa de More em Londres, rapidamente a passou para o papel e publicou-a, com o apoio de More, em 1509.

O Elogio da Loucura, tratado escrito por Erasmo em 1509, reflete as ideias humanistas que começavam a se espalhar pela Europa nos primeiros anos da Renascença, desempenhando um papel importante na Reforma. É uma sátira espirituosa sobre a corrupção e as disputas doutrinárias da Igreja católica. No entanto, tem também uma mensagem séria, afirmando que a loucura – como Erasmo chamou a ignorância ingênua – é parte essencial do ser humano, sendo o que essencialmente nos traz a maior felicidade e contentamento. Ele foi adiante para afirmar que o conhecimento, por outro lado, pode ser um fardo e levar a complicações passíveis de contribuir para uma vida opressiva.

Fé e loucura

A religião também é uma forma de loucura, afirmou Erasmo, pois a crença verdadeira só pode se basear na fé, nunca na razão. Ele rejeitou a mistura de racionalismo grego com teologia cristã feita por filósofos medievais como Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino, consideradas intelectualização teológica  segundo ele, a causa fundamental da corrupção da fé religiosa. Em vez disso, defendeu um retorno às crenças sinceras, com indivíduos construindo uma relação pessoal com Deus, e não uma conexão prescrita pela doutrina católica.

Erasmo nos aconselhou a abraçar o que ele considerava o verdadeiro espírito das Escrituras: simplicidade, ingenuidade e humildade. Estas, ele disse, são as características humanas decisivas para uma vida feliz.


Contra a supervalorização da razão

Erasmo escreve seu livro O Elogio da loucura como se fosse a própria Loucura personificada, ambicionando ser ouvida pelos que a não reconhecem. Observe alguns trechos da obra:

 “(...) me preocupo muito pouco com esses sábios que, porque um homem faz louvores a si próprio, tratam-no imediatamente de presunçoso e impertinente. Se o tratassem de louco, seria melhor; mas que admitam ao menos que, agindo assim, ele se conduz de uma maneira inteiramente conforme a essa qualidade. Com efeito, há algo de mais natural do que ver a Loucura exaltar seu próprio mérito e cantar ela própria seus louvores?

Vede esses homens magros, tristes e rabugentos que se dedicam ao estudo da filosofia, ou a alguma outra coisa difícil e séria; a alma deles, constantemente agitada por uma multidão de pensamentos diversos, influi sobre seu temperamento; os espíritos vitais dissipam-se em grande abundância, o úmido fica seco, e geralmente eles se tornam velhos antes de terem sido jovens.

Por que essa juventude encantadora que brilha sem cessar no rosto de Baco? (...) Longe de querer ser visto como sábio, é, ao contrário, pelos jogos e os prazeres da loucura que se pode prestar-lhe um culto que lhe seja agradável (...). No entanto, há alguém que não preferisse assemelhar-se a esse deus extravagante e ridículo, ser como ele sempre alegre, sempre jovem, sempre divertido, levando a toda parte a alegria e os prazeres, do que ser como Júpiter, cujo aspecto sombrio e severo faz tremer o céu e a terra?

Segundo os estoicos, ser sábio é tomar a razão como guia; ser louco é deixar-se levar ao sabor das paixões. Ora, Júpiter, para suavizar um pouco as agruras e os desgostos da vida, não deu aos homens mais paixões do que razão? (...) E essa razão, ele a relegou a um pequeno canto da cabeça, enquanto entregou o resto do corpo às agitações contínuas das paixões.

Estar contente com o que se é, com o que se tem, não é a maior parte da felicidade? Pois bem, é meu caro Amor-próprio que vos proporciona essa vantagem; ele é que faz cada um ficar contente com seu rosto, seu espírito, sua origem, sua condição, seus costumes, sua pátria; é por ele que o irlandês julga-se mais feliz que o italiano, o trácio que o ateniense, o cita que um habitante das Ilhas Afortunadas.

Se quiserdes vos convencer de quanto esses pobres filósofos são ineptos a todos os afazeres deste mundo, pensai em Sócrates, esse filósofo que o oráculo de Delfos chamou tão estupidamente o mais sábio de todos os homens. Obrigado um dia a tratar de não sei qual assunto público, saiu-se tão mal que todos zombaram dele. É preciso admitir, porém, que ele tinha às vezes ideias que não eram tão tolas; por exemplo, quando recusou o título de sábio, dizendo que este pertencia apenas à divindade, ou quando disse que o filósofo não devia se ocupar do governo. Teria feito melhor, no entanto, se tivesse ensinado que, para ser homem, é preciso renunciar absolutamente à sabedoria.

Em primeiro lugar, é claro que todas as paixões desregradas são produzidas pela loucura. Pois toda a diferença entre um louco e um sábio é que o primeiro obedece a suas paixões e o segundo à sua razão. Eis por que os estoicos proibiram ao sábio as paixões como se fossem doenças. No entanto, são essas paixões que servem de guia aos que seguem com ardor o caminho da sabedoria; são elas que os estimulam a cumprir os deveres da virtude, inspirando-lhes o pensamento e o desejo de fazer o bem. Em vão disse Sêneca, esse estoico arrebatado, que o sábio deve ser absolutamente sem paixões. Um sábio dessa espécie não seria mais um homem, seria uma espécie de deus, ou melhor, um ser imaginário que jamais existiu e jamais existirá; ou enfim, para falar mais claramente, seria um ídolo estúpido, desprovido de todo sentimento humano e tão insensível quanto o mármore mais duro.

Como não abominar como um monstro terrível, como não evitar como um espectro medonho um homem dessa espécie, se é possível que alguma vez tenha existido? Surdo à voz da natureza, os sentimentos de ternura, piedade e beneficência não impressionam mais seu coração, como se ele fosse feito da rocha mais dura. Nada lhe escapa, nada o engana; a visão de um lince não é tão penetrante quanto a sua; ele examina, pesa tudo com o maior rigor. Sem indulgência pelos semelhantes, só está contente consigo mesmo. Acredita-se o único rico, o único saudável, o único livre; acredita, enfim, que possui tudo o que se pode possuir no mundo, mas é o único que pensa assim. Sem se preocupar em ter amigos, ele próprio não é o amigo de ninguém.

Uma pedra cair sobre a cabeça, eis o que se chama um mal! Mas a vergonha, a infâmia, a desonra, as injúrias só prejudicam os que as admitem. Um mal não é um mal para quem não o sente. Todo o povo te vaia; que te importa, se tu mesmo te aplaudes? Ora, é somente a Loucura que faz aplaudir-se a si mesmo.

Ouço já os filósofos protestarem: "É uma infelicidade ser louco, viver no erro e na ignorância". – Mas isso é ser homem, meus amigos! Pois, em verdade, não vejo por que chamaríeis infeliz um ser que vive de acordo com seu nascimento, sua educação, sua natureza. Não é esse o destino de tudo o que existe? O que permanece em seu estado natural não poderia ser infeliz; caso contrário, poder-se-ia dizer que o homem deve queixar-se de não voar como as aves, de não andar com quatro patas como os quadrúpedes, de não ter a cabeça armada de chifres como os touros. Do mesmo modo, poder-se-ia dizer que um belo cavalo é infeliz por não saber gramática, por não comer pastéis, e que o destino de um touro é deplorável porque ele não pode aprender nenhum dos exercícios da Academia. Ora, o homem não é mais infeliz por ser louco do que o cavalo por não saber gramática, pois a loucura está ligada à sua natureza.

(...) o homem é o mais infeliz de todos os animais, porque é o único que não está contente com seu destino e busca sair do círculo no qual a natureza circunscreveu suas faculdades.


Sim, quanto mais os homens se entregam à sabedoria, mais se distanciam da felicidade. Mais loucos que os próprios loucos, eles esquecem então que são apenas homens e querem ser vistos como deuses; amontoam, a exemplo dos Titãs, ciências sobre ciências, artes sobre artes, e servem-se delas como outras tantas máquinas para fazer guerra à natureza.”

Referências Bibliográficas:

BUCKINGHAM, Will; BURNHAM, Douglas. O livro da Filosofia. São Paulo: Globo, 2011.

ROTTERDAM, Erasmo. Elogio da loucura. Coleção L&PM POCKET, vol. 278, 2003.