Vida potente
A vida tem a ver com a potência. Com a energia que, a cada instante, podemos disponibilizar
para viver. Nada nos é mais essencial. Se nos amputarem uma perna,
continuaremos sendo o que somos. Da mesma forma, um braço. Ou outras partes de
nós. E que parte de nós não podemos amputar? Sob pena de deixar de ser.
Qualquer uma que, se amputada, aniquilasse nossa potência. Porque sem potência para agir, deixamos de ser.
Sua potência oscila, segundo a segundo. Afinal, as coisas que nos acontecem,
os fragmentos de mundo que desfilam diante de nós, acabam interagindo conosco
e nos transformando.
Potência e
essência
A potência — que é a nossa nesse determinado instante — permite que
sejamos o que somos. E só nossa. Não é a potência de mais ninguém. É também incomunicável. Intransferível. Inalienável. Incompartilhável. Daí nossa solidão. Condição de nossa existência.
Cada um na sua. Porque
nossas sensações são nossas. Estritamente. Porque ninguém
sente o que sentimos. Nunca sentimos mesmo o que sentem os demais. Por mais que
se esforcem para nos contar. Suas tristezas são suas.
Esta nossa potência é só nossa, nosso diferencial, nosso casulo. Mas, ao mesmo
tempo, está à mercê do resto do mundo onde nos encontramos.
Potência na
imanência
O real é o todo. Podemos chamá-lo de mundo ou de universo. Esse mundo, por ser o todo,
não tem lado de fora. Se tivesse, não seria o todo.
Espinosa não atribuía ao real nem
beleza, nem feiura; nem ordem, nem confusão. Por falta de referência externa.
Por ausência de gabarito. Porque o real é o que é. Tão somente. Conclui-se que
qualquer ordem, caos, beleza, feiura, justiça, crueldade que atribuamos ao
mundo advém apenas dos afetos de nosso corpo. Ou de nossas expectativas. De
como gostaríamos que fosse.
Este mundo — que só tem adjetivos para nós — é constituído por partes. E estas
partes, por sua vez, também são constituídas por outras partes. E assim por
diante.
Potência e
relação
Essas partes só constituem o mundo quando se encontram em relação.
A rigor, o que estamos
chamando de mundo é o todo das relações entre todas as partes.
Quando dois corpos A e B se
relacionam, isto, antes de tudo, quer dizer que A age sobre B e B age sobre A.
Ora, se um age sobre o outro, significa que produz sobre ele efeitos.
Transformando-o. Determinando-o.
O homem — que é todo constituído de partes — também é parte. Somos,
todos, partes do mesmo todo. Imanentes ao mundo ou à natureza como tudo mais.
Sem com ela rivalizar ou a ela transcender.
Desta forma, nem nós — nem qualquer outra entidade — olha e julga o mundo de fora.
Por falta de poderes divinos. Assim, quando qualquer corpo se manifesta, está
agindo enquanto parte. Porque a ninguém — nem a nada — é possível ir além desta condição. E todo discurso com pretensão universal ou imparcial é pura
ingenuidade, ilusão, falácia. Ignorância da própria condição.
A vida do homem enquanto
parte também se materializa em relações. Viver é
relacionar-se. É estar em relação. Por isso a vida de qualquer um de nós não pode ser analisada pelo que supostamente somos, mas pelo
que acontece conosco no mundo. Na medida em que somos efeito do mundo com o
qual nos relacionamos. Como, a cada instante, o mundo se relaciona com o nosso
corpo, age sobre ele ininterruptamente. Produzindo sobre ele efeitos. Por isso,
também para nós, viver em relação é viver em transformação contínua.
Inferimos daí duas coisas: a primeira é que o mundo não para de nos afetar. A
segunda é que não paramos de afetar o mundo.
Potência e afetos
“Postulados: 1. O corpo humano pode ser
afetado de muitas maneiras, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, enquanto outras tantas não tornam sua potência de agir nem maior nem menor” (ESPINOSA. Ética).
Potência não percebida
Muitas vezes não percebemos a oscilação de potência de agir que o mundo
determina sobre nosso corpo ao se relacionar com ele.
Portanto, muita coisa que
acontece com você vai passar despercebida.
E isso explica o fato de você ir se convertendo no que é sem entender muito bem
por quê.
Tentamos, em função de experiências anteriores, prever encontros
desagradáveis. Para evitá-los.
Potência e
livre-arbítrio
Dentre as crenças judaico-cristãs, a mais
consagrada no discurso moral, já nos tempos de Espinosa, é a do livre-arbítrio.
A liberdade da vontade de escolher entre várias opções. É o que permitiria ao homem ser o responsável por sua própria salvação ou perdição. Não fossemos
livres, não poderíamos pecar. Não poderíamos ser julgados e condenados.
O livre-arbítrio pressupõe o poder da razão para controlar os afetos. Para
Espinosa, apenas uma ilusão. Que decorre da ignorância das causas verdadeiras,
eficientes, materiais que determinam certa ação. Uma construção que coloca o
homem acima da necessidade dos fluxos causais da natureza. Um equívoco da
imaginação.
Para que o livre-arbítrio seja possível, seria necessário que o mundo, todo ele, fosse
indeterminado, contingente, acidental. Que as ocorrências não tivessem nada a
ver umas com as outras. Seria preciso que o vento pudesse não erodir. Que a
pera pudesse não cair, mesmo madura.
Outra possibilidade seria
estabelecer uma fronteira — de difícil fundamentação — entre toda a natureza e o homem. Assim, de um
lado, tudo na natureza seria necessário. Determinado. Como só poderia ser. Vítima
de suas causas materiais. Sem liberdade e sem arbítrio. E, de outro lado, só o
homem, apenas ele — talvez por ser filho de Deus, parecer com ele e, por isso, estar meio fora, ou
acima, dos nexos de causalidade — ser indeterminado. Flutuante. E, por isso
tudo, de arbítrio livre. Indeterminado. Autodeterminado. Criador de si mesmo.
Porque, na sua perspectiva,
a ação do homem é tão determinada pela natureza quanto a do leopardo.
E se, porventura, ele não mata, não é porque livremente deliberou assim. Mas
porque no enfrentamento entre a satisfação e a insatisfação trazidas pela
cogitação da morte do outro, triunfou a segunda.
Mas quem decidiu não tem como saber o que aconteceu. O que o levou a decidir. As
causas afetivas da decisão. As variáveis emocionais que participaram daquele
momento decisório.
Até aqui, o mundo não parou de nos afetar. Mas você leitor, tanto
quanto tudo que existe, não deixa barato. E também age sobre o mundo. Afeta o
mundo. Faz com que seja como é. Porque o mundo não seria como é se você não
fosse, e o transformasse ininterruptamente.
Impossível seria não afetá-lo. Isso implicaria não entrar em relação.
Como não impactar? Mesmo que você fique parado num descampado, o vento
que normalmente passaria por onde você está tem que desviar. Por sua causa. E o
mundo, por isso, foi diferente do que teria sido se você não fosse, se lá não
estivesse. O ar, que por sua vez encontrou você, fez de você outro. Erodido
pelo atrito. Resfriado pelo contraste de temperatura. Refrescado pelo calor que
sentia.
Em toda essa fugacidade, o que mais importa para
a vida é que, pelo fato de sermos afetados no todo, também não permanece
a nossa própria essência. Aquilo sem o que não viveríamos. Nossa potência de
agir.
Potência de agir
Nossa essência, nossa potência de
agir. Algumas passagens são boas, outras más. São boas quando passamos de um
corpo menos potente para outro mais potente. Será má, ou ruim, a passagem no
sentido contrário. Quando o resultado final da relação determinar perda de
potência em nosso corpo.
E essas passagens têm nome. Quando são boas, e com elas ganhamos potência,
denominam-se alegria. Quando são ruins e implicam perda de potência,
denominam-se tristeza. Assim, o mundo é bom quando alegra. E ruim, quando
entristece. E mais: como a potência é nossa essência, a alegria nos aproxima
de nossa essência, portanto, de nossa perfeição. Enquanto que a tristeza nos
rouba potência. E, portanto, o que nos é essencial. Distanciando-nos de nós.
De nossa perfeição.
Potência e
resistência
Alegria tem a ver com vida
boa. Tristeza, com o seu contrário. Podemos dizer que somos
orientados por um movimento natural de insistência na
própria existência.
Por isso, existir é insistir. Nada fazemos sem
afirmar-nos no mundo. Tudo o que é, todo o ser, esforça-se, na medida em que
pode, para continuar a ser. Esforço que Espinosa vai nomear conatus. Todos
os seres são dotados necessariamente dessa força interna de autopreservação.
Eis a sua essência.
Potência de pensar
Quando seu corpo a
encontra, sua potência de agir aumenta. E,
na solidão da alcova, a alma que nela pensa se alegra também. Aumenta a sua
potência de pensar.
No entanto, nossa alma tem
limites. Não consegue perceber nada no mundo senão por
intermédio de um afeto sofrido pelo próprio corpo. Não percebe outro corpo em
ato, na sua própria potência. Por isso, todo contato com o mundo é sempre
mediado pelo nosso corpo. Pela maneira como é afetado.
Apesar de todas essas
limitações, continuaremos nos esforçando ao máximo para pensar em coisas
que aumentem a potência de agir do nosso corpo.
Porque o que passa pela
nossa cabeça pode nos entristecer mesmo. Às vezes estamos
bem, nada aconteceu diante de nós, e por conta de algum pensamento, nossa
potência míngua.
O que nos ensina Espinosa é que toda vez que algum pensamento deste tipo nos acomete, nossa
alma se esforça o máximo que pode para pensar em outra coisa.
E, assim vamos: em luta pelos encontros alegres de nosso corpo com
o mundo; por evitar os tristes; por imaginar coisas que aumentam a potência de agir do corpo e a potência de pensar da alma; bem como
por evitar as imaginações que enfraquecem, que refreiam a ambos. A vida que
vale a pena ser vivida aqui é quando isso tudo dá certo. Quando ganhamos
potência. Quando nos aperfeiçoamos. E você continuará lutando por ela.
Referência Bibliográfica:
DE BARROS FILHO, Clóvis. A vida que vale a pena ser vivida. Editora Vozes, 2010.