domingo, 22 de março de 2015

LÚCIO ANEU SÊNECA


Tranquilidade e estoicismo romano
Dentre os estoicos romanos, destacou-se Sêneca. Nascido em Córdoba, atual Espanha, — mas na época Império Romano — no ano de I d.C., Sêneca figura entre os maiores filósofos romanos. Foi um senador de destaque. Seu prestígio e reconhecimento o levaram a ser preceptor de Nero, futuro imperador. Sim, ele mesmo, o incendiário.

Tranquilidade e razão
A razão é o recurso dado pela natureza ao homem para analisar e evitar a tristeza.
Esta razão deve nos levar, quando usada adequadamente, à ataraxia. Termo frequentemente traduzido por impassibilidade ou tranquilidade. Esta ataraxia depende de equilíbrio, tanto do corpo quanto da alma. Quando um deles ou ambos é perturbado sobrevém a tristeza. Entendida por Sêneca como uma doença.
·   Ataraxia: ausência de inquietude, tranquilidade de ânimo, paz e imperturbabilidade de espírito
Sêneca é um estoico romano. Diverge do estoicismo grego em muitas questões. Propõe que as coisas não estão dispostas segundo uma ordem imanente. Quando tiramos algo do seu lugar, está coisa poderá não voltar, por si só, à sua posição natural.

Tranquilidade e divina providência

Para que os velozes astros do universo não se colidam, e para que os fenômenos naturais não se descontrolem, é preciso que uma força divina garanta o fluxo ordenado do cosmo. Cada coisa tem seu lugar no cosmo porque os deuses assim quiseram. Um peixe pode morrer se deixado fora da água. Ele, por si mesmo, não se recompõe com a ordem natural de seu cosmo. É preciso uma força inteligente, humana ou divina, para colocá-lo de volta no seu devido lugar. É neste ponto que podemos vislumbrar a divina providência. Para restabelecer o que por si só não ocorreria.

Providência que rege também a existência humana. Assim, os deuses não só preveem para o homem um lugar que lhe é natural, como também lhe atribuem um destino. Cada um de nós possui uma missão que deve ser cumprida.

Nosso destino, muitas vezes, escapa à nossa percepção e ao nosso entendimento. Sobretudo quando não consideramos o universo como um todo. E esquecemos nossa condição de parte desse todo.

“Nada de mal pode atingir o homem bom: os contrários não se misturam. (...) Não estou querendo dizer que ele não sente os ataques externos, mas que os derrota e, ademais, põe-se a enfrentá-los com calma e tranquilidade. Ele considera todas as adversidades como exercícios” (SÊNECA. Sobre a divina providência).

Insiste Sêneca, o homem bom, virtuoso, encontra-se sempre preparado para todas as dores que na vida possa experimentar.
Não é outra a ideia de sábio, para os estoicos. Não se trata de alguém que sabe tudo sobre o mundo, como se poderia pensar. O sábio sabe viver. Sua especialidade é a vida. Quanto ao mundo, sabe que as coisas são como são. E as aceita assim.

Sêneca nos adverte que o mal-estar que sentimos em qualquer destas situações, decorre da insatisfação com nós mesmos.

Se o teto desabou por causa da enchente, só há neste relato um erro a lamentar. A crença de que isso não fosse acontecer. Portanto, pare de culpar o mundo. Assuma sua parte da tristeza. Porque o mundo, esse, é o que é. E, por mais que você faça, ainda será mais fácil corrigir-se do que adequá-lo a você. Porque se todo infortúnio depende de você e do mundo, por que não começar pelo que está mais na mão?

Tranquilidade e ira

A esperança é sentimento que nos remete a um mundo desejado e que nos afasta da realidade. Mal-estar resultante do contraste entre a vida que gostaríamos de viver com a vida que vivemos. Frustração de viver uma vida que não se sonhou. Eis, para os estoicos, a causa de sentimentos como a ira. A cólera.

A alternativa filosófica de Sêneca é adotar uma postura um pouco mais pessimista em relação à vida. Analisar a própria existência para se reconciliar com a realidade. Pensar sobre os desejos e suas condições de realização. Aceitar a frustração como condição da existência. Ter em mente que o mundo nunca será como nós queremos. Viver a vida como ela se apresenta. Com seus altos e baixos. Desejando o mínimo possível. Evitando assim esperanças, iras e angústias.

Na visão estoica só começamos a ser felizes quando aceitarmos que o mundo não gira ao nosso redor. Que as pessoas não foram feitas pelos deuses para atenderem nossas carências. Por isso, a tranquilidade, condição da vida boa, pressupõe a desesperança. A conciliação com a realidade.

Para ele a felicidade, a busca da tranquilidade da alma e do corpo, é um dever moral. Isso mesmo leitor, você tem o dever de ser feliz. E, para isso, o dever de reconciliar-se com o mundo. Lamentando menos, esperando menos e amando mais. No amor, vivemos melhor.

E essa constatação — de que o mundo não é como gostaríamos que fosse — nos entristece. Tristeza que nos leva a viver mal. A agir mal. A fazer bobagens. A culpar os outros. A persegui-los em estado de fúria. E, eventualmente, a tomar o troco. Por isso, render-se à tristeza é uma desordem cosmológica. Uma violação moral. Uma heresia. Uma blasfêmia contra o universo.

Sobre a brevidade da vida

Trecho da obra de Sêneca:
“Os vícios sufocam os homens e andam a sua volta, não lhes permitindo levantar nem erguer os olhos para distinguir a verdade. Permanecem imersos, presos às paixões, não favorecendo um voltar-se para si próprio. Mesmo encontrando alguma paz, eles continuam sendo levados por suas ambições, não achando tranquilidade, tal como o fundo do mar que, depois da tempestade, ainda continua agitado. Imaginas que falo daqueles cujos vícios estão explícitos? Observa os que a sorte abençoou: eles se sentem sufocados pelos seus bens. As riquezas são pesadas para muitos! A preocupação com a eloquência e a necessidade de mostrar talento tirou o sangue de muitos! Outros enfraqueceram devido a uma vida de libertinagens! Muitos possuem um grande número de clientes, mas nenhuma liberdade! Por fim, observa a todos, desde os mais simples aos mais poderosos. Este advoga, aquele assiste, um é acusado, outro defende, aquele outro julga; ninguém pede nada para si, uns nos outros se consomem. (...) ninguém cuida de si mesmo. (...) Assim, não há motivo para que cobres teus favores a quem quer que seja, já que, quando os fizeste, foi por querer estar com o outro e não contigo mesmo.”

“Pode haver alguma coisa mais tola, me diga, que a maneira de viver desses homens que deixam a prudência de lado? Vivem ocupados para poder viver melhor: acumulam a vida, dissipando-a. Fazem seus projetos para longo tempo, porém esse adiamento é prejudicial para a vida, já que nos tira o dia a dia, rouba o presente comprometendo o futuro. A expectativa é o maior impedimento para viver: leva-nos para o amanhã e faz com que se perca o presente. (...) Todas as coisas que virão jazem na incerteza: vive daqui para diante.”

“Enfim, queres saber o pouco que vivem os ocupados? Vê o quanto eles desejam longamente viver. Velhos decrépitos mendigam com súplicas um prolongamento de poucos anos. Eles fingem ser mais novos do que realmente são, lisonjeiam a si próprios com mentiras e se enganam com prazer, como se pudessem iludir o destino. Mas, quando alguma doença lhes mostra a sua fragilidade, morrem amedrontados, como se não estivessem deixando a vida, mas ela estivesse sendo arrancada deles. Eles gritam que foram tolos por não terem vivido e que, se conseguirem escapar daquela doença, viverão no ócio. Então, pensam o quanto inutilmente se esforçaram para coisas que não aproveitaram, quão vãos foram todos os seus trabalhos. (...)Por mais curta que seja, é mais que suficiente, de maneira que, ao chegar o último dia, o homem sábio não hesitará em ir para a morte com tranquilidade.”

Da tranquilidade da alma

Citação feita por Sêneca, sobre as ideias de Atenodoro:

“Ao te isolares no estudo, tu te livrarás de todos os desgostos da vida, não mais desejarás a noite por aborrecimento do dia e não mais serás uma carga para ti mesmo, nem inútil aos outros. Farás inúmeros amigos e todo homem de bem virá espontaneamente ao teu encontro: pois jamais, por mais obscura que seja, a virtude vive ignorada; existem sinais que revelam sua presença, e todo aquele que for digno sempre a descobrirá. Se, com efeito, renunciarmos a toda relação com o próximo e nos afastarmos do gênero humano para viver unicamente concentrados em nós mesmos, este isolamento, esta indiferença absoluta, terão por resultado a mais completa ociosidade: começaremos a construir de um lado e a demolir do outro; a repelir o mar, a desviar as águas lutando contra as dificuldades do terreno e a desperdiçar o tempo, que a natureza nos dá para aproveitar.”

Trecho da obra de Sêneca:
“Assim como as viagens se sucedem, um espetáculo substitui o outro, e como diz Lucrécio: "Assim cada um foge sempre de si mesmo". Mas para que fugir se não nos podemos evitar? Seguimo-nos sempre, sem nos desembaraçarmos desta intolerável companhia. Assim, convençamo-nos bem de que o mal do qual sofremos não vem dos lugares, mas de nós mesmos, que não temos força para nada suportar: trabalho, prazer, nós mesmos; qualquer coisa do mundo nos parece uma carga.”

“(...) é um erro pensar que os ricos aceitam mais corajosamente suas penas: que o corpo seja grande ou pequeno, as feridas lhe são igualmente dolorosas. Bíon disse com fineza: "Não é porque se tem mais cabelos sobre a cabeça que é menos desagradável sentir arrancá-los". Não é diferente no caso do pobre e do rico, e seu sofrimento é o mesmo: o dinheiro se apega tão intimamente à alma, que não se pode arrancá-lo sem dor. É, aliás, eu o repito, mais suportável e mais simples nada adquirir do que perder alguma coisa: daí vem que se vê um ar mais alegre nas pessoas que a fortuna jamais visitou do que naquelas que ela traiu.”

“Habituemo-nos a ter o luxo à distância e a fazer uso da utilidade dos objetos e não de sua sedução exterior. Comamos para matar a fome, bebamos para apagar a sede e reduzamos ao necessário a satisfação de nossos desejos. Aprendamos a andar com nossas pernas, a regular nosso vestuário e nossa alimentação, não sobre a moda do dia, mas sobre o exemplo dos antigos. Aprendamos a cultivar em nós a sobriedade e a moderar nosso amor ao fausto; a reprimir nossa vaidade, a dominar nossas cóleras, a considerar a pobreza com um olhar calmo, a considerar a frugalidade, apesar de todos aqueles que acharão aviltante satisfazer tão modestamente a seus desejos naturais; a não ter nas mãos. por assim dizer, as ambições desenfreadas de uma alma sempre inclinada para o dia seguinte e a esperar a riqueza menos da sorte do que de nós mesmos.”

“As honras prendem este, a riqueza aquele outro; este leva o peso de sua nobreza, aquele o de sua obscuridade; um curva a cabeça sob a tirania de outrem, outro sob a própria tirania; a este sua permanência num lugar é imposta pelo exílio, àquele outro pelo sacerdócio. Toda a vida é uma escravidão. É preciso, pois, acostumar-se à sua condição, queixando-se o menos possível e não deixando escapar nenhuma das vantagens que ela possa oferecer: nenhum destino é tão insuportável que uma alma razoável não encontre qualquer coisa para consolo. Vê-se frequentemente um terreno diminuto prestar-se, graças ao talento do arquiteto, às mais diversas e incríveis aplicações, e um arranjo hábil torna habitável o menor canto. Para vencer os obstáculos, apela à razão: verás abrandar-se o que resistia, alargar-se o que era apertado e os fardos tornarem-se'mais leves sobre os ombros que saberão suportá-los. Não descortinemos, de outro lado, um campo vasto demais aos nossos desejos: limitemos o voo aos objetos mais próximos, visto que não podemos pensar em reprimi-los inteiramente. Renunciando ao que é impossível ou difícil demais para realizar, apeguemo-nos ao que, estando mais próximo, anima nossa esperança; mas sem esquecer que todas as coisas são igualmente frívolas e que, se as aparências diferem, é sempre no interior a mesma futilidade. Não invejemos as situações elevadas: pois o que julgamos ser o cume não é mais do que a beira de um abismo.”

“Quem não souber morrer bem terá vivido mal. (...) quantas vezes morremos, vítimas do nosso medo de morrer! Estes são caprichos que a fortuna se permite: "Por que", diz ela, "poupar-te, criatura débil e trémula? Tu serás trespassada e serás crivada de golpes, justamente porque não sabes oferecer o pescoço. E tu, tua vida será prolongada e terás uma morte mais rápida, porque em lugar de desviares a cabeça ou de te cobrires com as mãos, esperas o ferro com coragem". Aquele que temer a morte não fará jamais obra de homem; mas aquele que disser a si mesmo que, desde o instante em que foi concebido, sua sorte foi decidida, governará sua vida em conformidade com esta decisão; e por prêmio terá a vantagem, graças a este mesmo vigor da alma, de jamais se deixar surpreender por qualquer acontecimento que surja. Considerando antecipadamente tudo o que pode acontecer, como o que irá realmente acontecer, ele amortecerá o choque de todos os males: pois, para quem está preparado e a espera, a violência de todas as desgraças se abranda; e somente acham seus golpes terríveis os que se julgavam em segurança e que não tinham diante de si senão perspectivas felizes.”

“ (...) que nossa alma, renunciando a todos os benefícios exteriores, se recolha inteiramente em si mesma: que ela só confie em si e só se alegre consigo, que ela só aprecie seus próprios bens, que ela se afaste o mais possível dos estranhos e se consagre exclusivamente a si mesma, que os prejuízos materiais a deixem insensível e que ela chegue mesmo a encontrar um lado bom nas suas desgraças. (...) está mais em conformidade com a natureza humana rir-se da existência do que lamentar-se dela. Acrescentemos que se presta melhor serviço ao gênero humano ao se rir dele do que ao lamentá-lo: o gracejador nos deixa alguma esperança de melhora, o outro se aflige estupidamente com os males que desesperadamente procura remediar. Enfim, para quem julga as coisas de um ponto de vista mais superior, uma alma mostra-se mais forte abandonando-se ao riso do que cedendo às lágrimas

“É preciso frequentemente recolhermo-nos em nós mesmos: pois a relação com pessoas diferentes demais de nós perturba nosso equilíbrio, desperta nossas paixões, irrita nossas restantes fraquezas e nossas chagas ainda não completamente curadas. Misturemos, todavia, as duas coisas: alternemos a solidão e o mundo. A solidão nos fará desejar a sociedade e esta nos reconduzirá novamente a nós mesmos; elas serão antídotas, uma à outra: a solidão, curando nosso horror à multidão, e a multidão, curando nossa aversão à solidão.”

“É preciso governar nosso espírito e conceder-lhe de tempos em tempos um descanso que fará sobre ele o efeito de um alimento restaurador. É preciso, igualmente, ir passear em pleno campo, pois o céu aberto e o ar puro estimulam e avivam a inteligência; algumas vezes uma alteração, uma viagem, uma mudança de horizontes, assim como uma boa refeição com um pouco mais de bebida do que de costume, lhe darão um novo vigor.”



Referências Bibliográficas:

FERRY, Luc. Aprender a viver: Filosofia para os novos tempos. Rio de Janeiro, Editora Objetiva, 2010.

DE BARROS FILHO, Clóvis. A vida que vale a pena ser vivida. Editora Vozes, 2010.

SÊNECA, Lúcio Anneo. Da tranquilidade da alma. Os pensadores, Ed. Nova Cultura, 1988.

SÊNECA, Lúcio Anneo. Sobre a brevidade da vida. Coleção: L&PM POCKET PLUS, vol. 548, 2006.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Princípio da ética em Rousseau


A diferença entre animalidade e humanidade segundo Rousseau: o nascimento da ética humanista

Para Rousseau, antes de tudo, é evidente que o animal, mesmo que se pareça com uma "máquina engenhosa", como diz Descartes, possui mesmo assim uma inteligência, uma sensibilidade, até mesmo uma faculdade de comunicar. Não são, portanto, a razão, a afetividade, nem mesmo a linguagem que distinguem, em última instância, os seres humanos, mesmo que, à primeira vista, esses diversos elementos possam parecer discriminatórios. Nesses dois aspectos, só diferimos dos animais pelo grau, do mais ao menos.

O critério de diferenciação entre o homem e o animal reside em outro ponto.

Rousseau vai situá-lo na liberdade, ou, como exprime por meio de uma palavra que vamos analisar, na "perfectibilidade". Digamos apenas, por ora, que essa "perfectibilidade" designa, numa primeira abordagem, a faculdade de se aperfeiçoar ao longo da vida, enquanto o animal, guiado desde a origem e de modo seguro pela natureza, como se dizia na época, pelo "instinto", é, por assim dizer, perfeito "de imediato", desde o nascimento.

Poderíamos fazer o seguinte comentário: no animal, a natureza fala o tempo todo e fortemente, tão fortemente que ele não tem a liberdade de fazer nada além de obedecer-lhe. No homem, ao contrário, domina certa indeterminação: a natureza está presente, de fato, e muito, como nos ensinam todos os biólogos. Nós também temos um corpo, um programa genético, o do nosso DNA, do genoma transmitido por nossos pais. Contudo, o homem pode afastar-se das regras naturais, e até mesmo criar uma cultura que se opõe a elas quase termo a termo — por exemplo, a cultura democrática que vai tentar resistir à lógica da seleção natural para garantir a proteção dos mais fracos.

Três consequências maiores da nova definição das diferenças entre animalidade e humanidade: os homens, únicos seres portadores de história, de igual dignidade e de inquietação moral

As consequências dessa constatação são profundíssimas. Eu lhe indicarei apenas as três que vão ter penetração considerável nos planos moral e político.

Primeira consequência: os humanos serão, diferentemente dos animais, dotados do que se poderia chamar de dupla historicidade. De um lado, haverá a história do indivíduo, da pessoa, e é o que chamamos habitualmente de educação; de outro, haverá também a história da espécie humana, ou, se você preferir, a história das sociedades humanas, o que habitualmente chamamos de cultura e política.

O que faz com que um bicho não possua nem história pessoal (educação) nem história política e cultural é que ele é desde o início e desde sempre guiado pelas regras da natureza, pelo instinto, e que lhe é impossível se afastar deles. O que, ao contrário, permite ao ser humano ter essa dupla historicidade é justamente o fato de que, estando em excesso em relação aos "programas" da natureza, pode evoluir indefinidamente, educar-se "ao longo da vida", e entrar numa história da qual ninguém pode dizer hoje quando e onde acabará. Em outras palavras, a perfectibilidade, a historicidade, como queira, é consequência direta de uma liberdade em si mesma definida como possibilidade de afastamento em relação à natureza.

Segunda consequência: como diz Sartre — que sem saber repetia Rousseau —, se o homem é livre, então não existe "natureza humana", "essência do homem", definição de humanidade, que precederia e determinaria sua existência. A existência do homem precede sua essência, como diz Sartre, temos uma magnífica crítica ao racismo e ao sexismo.

O racismo diz que "o africano é jogador", "o judeu, inteligente", "o árabe, preguiçoso" etc., e só com o emprego do artigo "o" sabe-se que estamos lidando com um racista, um ser convencido de que todos os indivíduos de um mesmo grupo partilham a mesma "essência". O mesmo vale para o sexista que facilmente pensa que está na "natureza" da mulher ser mais sensível do que inteligente, mais terna do que corajosa, para não dizer "feita para" ter filhos e ficar em casa, grudada no fogão...

Terceira consequência: é porque é livre, porque não é prisioneiro de nenhum código natural ou histórico determinante, que o ser humano é um ser moral. Como poderíamos, aliás, lhe imputar boas ou más ações se ele não fosse de algum modo livre para escolher? Em contrapartida, quem pensaria em condenar o tubarão que acaba de devorar um surfista?

A herança de Rousseau: uma definição do homem como “animal desnaturado”

Para se interrogar, é preciso dois, aquele que interroga e aquilo que é interrogado. Confundido com a natureza, o animal não pode se interrogar. Eis aí, me parece, o ponto que procuramos. O animal e a natureza são um só. O homem e a natureza são dois.

É por causa dessa distância que nos é possível entrar na história da cultura, não ficar preso à natureza, como lhe expliquei há pouco. Mas é também graças a ela que podemos interrogar o mundo, julgá-lo, transformá-lo e, como tão bem se diz, inventar "ideais", uma distinção entre o bem e o mal.

Referências Bibliográficas:
FERRY, Luc. Aprender a viver: Filosofia para os novos temposRio de Janeiro, Editora Objetiva, 2010.

ESTOICOS


Vida tranquila
Os primeiros estoicos eram gregos, os últimos eram romanos. Por isso, o estoicismo figura tanto como escola filosófica grega quanto como romana. Destacamos entre os mais antigos os gregos Zenão, Cleanto e Crisipo. E, entre os mais recentes, e seguramente muito mais conhecidos, os romanos Sêneca, Epicteto e Marco Aurélio.
Politicamente, os estoicos gregos eram marginais e dominados. Já os romanos se aproximaram do poder. E passaram a exercê-lo como nunca antes um filósofo tinha logrado em tal magnitude. Como Marco Aurélio, simplesmente imperador.
Zenão, reconhecido como pai fundador do estoicismo grego, nascido em 333 a.C, na ilha de Chipre, era imigrante. Não tinha cidadania ateniense. Por isso não podia adquirir imóveis. Assim, para dar aulas, teve que se contentar com um pórtico, em grego stoá, espécie de porta de entrada da cidade, ao ar livre. Desta palavra grega, deriva estoico. Aquele que se encontra na porta. Que pode ser tanto de entrada como de saída. Espaço que denuncia a marginalidade do pensamento estoico neste momento.
Identificamos no estoicismo muitas semelhanças com o pensamento de Epicuro. Negação de toda explicação transcendente do mundo. E isto é o que mais aproxima as duas escolas adversárias. Redução do mundo ao observável. Ênfase à reflexão e ao ensino da ética, denominada por eles de arte de viver. E a felicidade, como escopo da vida.

Porém, duas questões fundamentais distinguiam o estoicismo do epicurismo: em primeiro lugar, a refutação do atomismo. Esta distancia-se de nossa temática.

A segunda nos interessa mais de perto: a redução epicurista da felicidade e da vida boa ao prazer. O prazer é a condição da vida boa. E este prazer que corresponde à vida boa não é qualquer prazer. Mas apenas aqueles que requerem a satisfação de desejos naturais e necessários.
O pensamento estoico sugere postura mais defensiva. Uma ra­zão protetora contra as agressões. Porque, segundo sua perspectiva, estaria presente — em tudo que vive — uma tendência da conservação de si.

Brilhante, companheiro
O que desce redondo para uns, atrita em outros. A nossa vida boa vai depender das condições de aproximação de tudo que se harmoniza conosco e de distanciamento de tudo que se opõe a nós.
A vida feliz deve ser uma vida harmonizada com o resto da natureza. Harmonia que não significa proximidade de tudo ou relação com tudo. Mas apenas com aquilo que conserva e ativa. Harmonia que pressupõe distância de tudo que enfraquece. Por isso, o bem vai sempre depender desta particular conservação. Uma coisa boa, para uns, poderá ser má para outros.
Prazer e dor não são prioritários. São consequências de uma vida que já encontrou o que lhe é fundamental, o que a conserva e realiza.
Todos os homens, contam, segundo os estoicos, com um instinto primeiro. Como todo instinto, é pré-racional. Este nos permite avaliar as coisas do mundo como benévolas ou malévolas. O bem é, portanto, vantajoso e útil e o mal, o nocivo. Mas esse instinto, o gorila também tem. Deve haver algo mais...

Tranquilidade e Deus

O homem se manifesta no logos divino. O ser de Deus é o ser do mundo. É o próprio universo. Imanente ao universo. Não seu criador. Ora, esse universo, que é Deus, é lógico. Portanto, existe um logos divino. Uma lógica, ou compreensibilidade, das coisas divinas. Que se manifesta no homem. Porque só a ele é dada a faculdade de compreender esse divino da ordem universal.
Os estoicos achavam o universo maravilhoso. Contemplavam e constatavam uma adequação perfeita na relação entre suas partes. Passou a chamá-la de Deus.

Tranquilidade e alma

Para os estoicos, tanto o homem quanto o próprio universo cósmico são dotados de alma.
Essa força racional da própria natureza corresponderia a um fogo que penetraria toda a realidade, aquecendo e ensejando vida. Assim, uma girafa está viva porque seu fogo a anima. Alma de girafa. A alma que o constitui é matéria, é corpo, é fogo. Fogo que lhe proporciona a vida.
Ora, essa alma que permeia o organismo humano é responsável por todas as suas funções essenciais.Para os estoicos a alma é corpórea. Constituída de fogo.
Esse privilégio humano — manifestação do logos divino — exige, segundo os estoicos, uma reflexão sobre a vida boa que não se confunda com a do resto dos viventes. Isto porque as coisas que se harmonizam com animais — estritamente instintivos — não se harmonizam necessariamente com o homem, essencialmente racional.

Theoría: a contemplação da ordem cósmica

Para os estoicos, de fato, a the-oría (theó significa Deus) consiste exatamente em esforçar-se por contemplar o que é "divino" no real que nos cerca. Em outras palavras, a tarefa primeira da filosofia é ver o essencial do mundo, o que nele é mais real, mais importante, mais significativo. Ora, pela tradição que culmina no estoicismo, a essência mais íntima do mundo é a harmonia, a ordem, simultaneamente justa e bela, que os gregos designam pelo nome de cosmos.
O mundo material, o universo todo, é, no fundo, como um gigantesco animal do qual cada elemento — cada órgão — seria admiravelmente concebido e agenciado em harmonia com o conjunto. É essa ordem, esse cosmo como tal, essa estrutura ordenada do universo todo que os gregos chamam de "divino", e não, como para os judeus ou os cristãos, um Ser exterior ao universo, que existiria antes dele e que o teria criado. Pode-se, portanto, dizer que a estrutura do universo não é apenas "divina", perfeita, mas também "racional", de acordo com o que os gregos chamam de logos (lógica) e que designa justamente essa ordenação admirável das coisas. Para os estoicos, abrir os olhos para o mundo era, assim como para um biólogo, abrir os olhos para o corpo de um rato ou de um coelho, a fim de descobrir que tudo nele é perfeitamente “benfeito”. Cícero dizia que “o mundo é um ser animado, dotado de consciência, inteligência e razão”.
Se compreendemos bem os Antigos, o que queriam dizer não tem nada de absurdo: ao afirmar o caráter divino do universo todo, eles exprimiam sua convicção de que uma ordem “lógica” operava por trás do caos aparente das coisas, e que a razão humana poderia trazê-la à luz. Do ponto de vista da theoría estoica, o cosmo é, pois, com exceção de alguns episódios acidentais e provisórios que são as catástrofes, essencialmente harmonioso — o que terá consequências importantes no plano "prático" (ou seja, nos planos moral, jurídico e político). Sob essa ótica, uma das finalidades últimas da vida humana será encontrar seu justo lugar no seio da ordem cósmica. Para a maioria dos pensadores gregos — com exceção dos epicuristas —, é perseguindo essa busca, ou melhor, realizando essa tarefa, que se pode conquistar a felicidade e a vida boa. Marco Aurélio nós fala um pouco dessa harmonia:
A juba do leão, a espuma que escorre da goela do javali, e muitas outras coisas, se observamos detalhadamente, sem dúvida estão longe de ser belas, e, no entanto, porque derivam do fato de terem sido engendradas pela natureza, são um ornamento e possuem encanto; se nos apaixonássemos pelos seres do universo, se tivéssemos uma inteligência mais profunda, sem dúvida, todos eles nos pareceriam sempre criaturas agradáveis. Mesmo em velhos e velhas, poderemos encontrar uma certa perfeição, uma beleza, como encontramos na graça infantil, se tivermos os olhos de um sábio.
O Deus dos cristãos é transcendente em relação ao mundo, ao passo que o divino dos estoicos, que absolutamente não se situa em não sei que "além", já que não é senão a estrutura harmoniosa, cósmica ou cosmética do próprio mundo, lhe é perfeitamente imanente.

O que não impede que, de outro ponto de vista, o divino dos estoicos possa ser do mesmo modo chamado de "transcendente", não, com certeza, em relação ao mundo, mas em relação aos homens, tendo em vista que ele é radicalmente superior e exterior a eles. É importante perceber que a theoría filosófica, entendida nesse duplo sentido, não é redutível a uma ciência particular como a biologia, a astronomia, a física ou a química, por exemplo. Por exemplo, ela não se interessa apenas pelo ser vivo, como a biologia, ou apenas pelos planetas, como a astronomia, nem mesmo apenas pela matéria inanimada, como a física, mas tenta captar a essência ou a estrutura interna da totalidade do mundo. Contudo, a filosofia não é uma ciência entre outras, e mesmo que ela deva levar em conta os resultados científicos, seu propósito fundamental não é de ordem científica. Ela busca um sentido para este mundo que nos cerca, elementos que nos permitam nele inscrever nossa existência, e não apenas um conhecimento objetivo.
Essa theoría, contrariamente às nossas ciências modernas que são, por princípio, "neutras", visto que descrevem o que é e nunca o que poderia ser, vai ter implicações práticas nos planos moral, jurídico e político.

Do amor à sabedoria à prática da sabedoria: a morte não é para ser temida, ela é apenas uma passagem, pois somos um fragmento eterno do cosmo
Mesmo que todos os seres humanos não se tornem filósofos, todos são, um dia ou outro, tocados pelas questões filosóficas. A filosofia, diferentemente das grandes religiões, vai prometer nos ajudar a nos "salvar", a vencer nossos medos e inquietações, não por intermédio de Outro, de um Deus, mas por nós mesmos, por nossas próprias forças, fazendo uso de nossa simples razão. Tendo chegado a certo nível de sabedoria teórica e prática, o ser humano compreende que a morte não existe verdadeiramente, que ela é apenas a passagem de um estado a outro, não um aniquilamento, mas um modo de ser diferente. Enquanto membros de um cosmo divino e estável, nós também podemos participar dessa estabilidade e dessa divindade. Já que o universo é eterno, e nós mesmos somos chamados a permanecer para sempre um fragmento dele, não cessaremos jamais de existir!
Para Epicteto, o objetivo de toda atividade filosófica é "a viver e morrer como um deus", ou seja: como um ser que, percebendo sua ligação privilegiada com todos os outros no seio da harmonia cósmica, alcança a serenidade, a consciência de que, mortal num sentido, não deixa de ser eterno em outro.

“Esperar um pouco menos, amar um pouco mais”
Vivemos continuamente na dimensão do projeto, correndo atrás de objetivos postos num futuro mais ou menos distante e pensamos, ilusão suprema, que nossa felicidade depende da realização completa de fins medíocres ou grandiosos. Esquecemos que não há outra realidade além da que é vivida aqui e agora, e que essa estranha fuga para adiante nos faz com certeza falhar. Segundo a famosa expressão de Sêneca, "enquanto se espera viver, a vida passa".  O passado não está mais aqui, e o porvir ainda não chegou. Marco Aurélio insiste:
Lembra-te de que cada um de nós só vive no momento presente, no instante. O resto é o passado, ou o obscuro futuro. Pequena é, pois, na verdade, a extensão da vida
A vida boa é a vida sem esperanças e sem temores; é, pois, a vida reconciliada com o que é, a existência que aceita o mundo tal como é. Você entende que essa reconciliação não poderia acontecer se não houvesse a certeza de que o mundo é divino, harmonioso e bom.

Em defesa do "não apego"

O estoicismo, num espírito próximo ao do budismo, defende uma atitude de "não apego" aos bens deste mundo, como sugere Epicteto:
O primeiro e principal exercício, o que conduz de imediato às portas do bem, consiste, quando uma coisa nos prende, em considerar que ela não é daquelas que não nos podem ser tiradas; que ela é como uma panela, ou uma taça de cristal, que quando se quebra não nos perturba porque lembramos o que ela é. O mesmo acontece aqui: se abraças um filho, um irmão ou um amigo, não te abandones sem reservas à imaginação... Lembra-te que amas um mortal, um ser que não é absolutamente tu mesmo. Ele te foi concedido para o momento, mas não para sempre, nem sem que te possa ser tomado... que mal existe em murmurar entre dentes, enquanto se abraça o filho: "Amanhã ele morrerá"?
O fato de que nada é estável neste mundo, que tudo muda e passa, e que não compreender isso é preparar para si mesmo os horríveis tormentos da nostalgia e da esperança. Marco Aurélio confirma:
Se, eu afirmo, separas dessa faculdade diretora tudo o que a ela se juntou em consequência das paixões, tudo o que está além do presente e todo o passado, farás de ti mesmo, como disse Empédocles, "uma esfera bem redonda, altiva em sua alegria e solidão". Tu te exercitarás a viver apenas no momento em que vives, quer dizer, no presente; e poderás passar todo o tempo que te resta até a morte, sem perturbação, nobremente e de um modo agradável para teu próprio demônio.
Trata-se de viver no presente, afastar de si os remorsos, os arrependimentos e as angústias que cristalizam o passado e o porvir, para aproveitar cada instante da vida como merecido, quer dizer, com plena e total consciência de que, para os mortais que somos, pode ser que seja o último. Portanto, "é preciso realizar cada ação da vida como se fosse a última" (Marco Aurélio, Meditações II, 5, 2).
Quando a coincidência entre nós e o mundo que nos cerca se torna perfeita, quando a concordância se faz por si mesma, sem constrangimento, na harmonia, que, de repente, o tempo parece anulado, dando lugar a um presente que parece durar, um presente, por assim dizer, dotado de espessura, cuja serenidade não é corrompida por nada do que passou ou virá. Quando ascende a esse grau de vigilância, o sábio pode viver "como um deus", na eternidade de um instante que nada mais relativiza, na completude de uma felicidade que nenhuma angústia poder vir a corromper. Quando a catástrofe, ou, pelo menos, o que os homens consideram habitualmente como tal — a morte, a doença, a miséria e todos os males ligados ao caráter irreversível do tempo que passa —, acontecer, eu poderei enfrentá-la graças às capacidades que me foram dadas de viver no presente, quer dizer, de amar o mundo tal como ele é.

Referências Bibliográficas:
FERRY, Luc. Aprender a viver: Filosofia para os novos temposRio de Janeiro, Editora Objetiva, 2010.


DE BARROS FILHO, Clóvis. A vida que vale a pena ser vivida. Editora Vozes, 2010.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

PERSEU


Com Perseu, temos mais uma vez pela frente um desses heróis gregos motivados pela justiça e preocupados em expulsar do mundo dos vivos seres passíveis de destruir a bela ordem cósmica instaurada por Zeus.

Era uma vez dois irmãos gémeos que se chamavam Acrísio e Proitos e dos quais se diz que se davam tão mal que já brigavam dentro da barriga da mãe! Para evitar que continuassem a brigar já adultos, eles resolveram dividir o poder. Proitos se tornou rei de uma cidade chamada Tirinto, e Acrísio, que é quem vai nos interessar, passa a reinar na bela cidade de Argos.

Ele tem uma linda filha, Dânae, mas nenhum filho, e nessa época longínqua um rei precisa ter um filho que assuma sua sucessão no trono. Seguindo a tradição, Acrísio se dirige então a Delfos para consultar o oráculo e saber se um dia, sim ou não, ele terá um herdeiro. Também seguindo a tradição, o oráculo responde à questão de forma enviesada. Diz apenas que ele vai ter um neto e esse neto, quando for adulto, vai matá-lo. Acrísio fica assustado e, para dizer a verdade, apavorado: o oráculo de Delfos nunca se engana e é uma condenação à morte que acaba de sair de sua boca. Nada se pode fazer contra o destino, mas, mesmo assim, os humanos não conseguem deixar de tentar. Mesmo gostando muito da filha, Acrísio resolve trancá-la com uma dama de companhia, uma servente, numa espécie de prisão de bronze que ele manda construir no subsolo do pátio do seu palácio. Ele, porém, pede ao arquiteto que deixe uma pequena fenda no teto para que um pouco de ar possa entrar, para Dânae não morrer asfixiada. Terminado o trabalho, ele tranca a filha com a servente e se sente um pouco menos angustiado.

Não contava com a concupiscência de Zeus, que, do alto do Olimpo, havia percebido a linda Dânae. E, como de costume, uma vez mais ele resolve se deitar com ela. Tendo isso em mente, se metamorfoseia em chuva de ouro que cai do céu e sutilmente se infiltra na prisão pela abertura deixada no alto. A chuva dourada cai no corpo de Dânae e desse contato único nasce um menino, Perseu. Cresce bem direitinho naquela gaiola, até o dia em que chama a atenção de Acrísio o tatibitate da criança. Horrori­zado, manda que imediatamente abram a prisão e descobre com terror a realidade: ele pura e simplesmente, apesar de tantas precauções, tem um neto. O que fazer? Para começar, mata a infeliz servente que, no entanto, não tem culpa alguma. Interroga a filha: o que fez para arrumar o bebé? Quem é o pai? Dânae conta a verdade. Zeus é o pai e tinha descido do céu transformado em chuva de ouro etc. Ele não acredita numa só palavra dessa história e acha que a filha está contando lorotas. Mas não pode, afinal de contas, fazer com ela o que fez com a servente. Nem com Perseu: trata-se de sua filha e de seu neto — as Erínias, que sempre punem os assassinatos em família, viriam atormentá-lo.

E apela então para um hábil marceneiro. Pede que construa um grande baú, tão benfeito que possa vagar pelos mares. Coloca lá dentro a filha e o neto. Fecha bem hermeticamente e pronto, tudo isso dentro d'água! Seguem abandonados ao sabor das ondas, entregues à própria sorte. O baú, como é de imaginar, acaba chegando a algum lugar. No caso, uma ilha, a ilha de Sérifo, onde os dois náufragos são encontrados por um pescador chamado Dictis. É um bom sujeito, com real generosidade, e trata Dânae com o devido respeito que se deve a uma princesa, criando ainda o pequeno Perseu como se fosse seu próprio filho. Mas Dictis tem um irmão, Polidectes, bem menos delicado e respeitoso. Polidectes é rei de Sérifo e se apaixona por Dânae assim que a vê. Resumindo os fatos, ele daria tudo para dormir com ela. O único problema é que Dânae não quer e que Perseu cresceu: já é um rapaz. Ele protege a mãe e não é tão fácil assim se livrar dele. Polidectes tem uma ideia, sem dúvida para desviar a atenção de Perseu ou talvez para fazê-lo cair numa armadilha, não se sabe muito bem. Em todo caso, trata-se de afastá-lo, e ele anuncia com grande alarde que vai dar uma festa para a qual todos os jovens da ilha estão convidados. Pretende anunciar, nessa ocasião, que quer se casar com uma moça, Hipodâmia, que adora cavalos. É costume que todos os jovens ofereçam um presente. Cada um traz um cavalo, o mais bonito possível, para agradar ao rei. Perseu, entretanto, nada tem. É claro, ele é pobre como, literalmente, um náufrago. Em compensação, ou talvez por pura bravata, se dispõe a presentear Polidectes com qualquer outra coisa, até mesmo a cabeça de Medusa, a terrível Górgona! Talvez tenha dito isso só para chamar a atenção, ou pode ser também que já sentisse em si mesmo uma vocação heróica.

De um jeito ou de outro, o rei evidentemente o toma ao pé da letra, todo contente com a oportunidade de definitivamente se livrar daquele desmancha-prazeres que nunca sai de perto da mãe. Já da Górgona, ninguém jamais se aproximara que voltasse vivo. O caminho estaria livre para se casar (ou tomar à força...) Dânae.

As três Górgonas tinham anteriormente sido muito bonitas, mas cometeram a impudência de pretender que eram mais belas do que Atena. E o tipo de hybris, como você já sabe, que não se perdoa. Para se vingar ou, mais exatamente, para colocá-las de volta no devido lugar, Atena literalmente as desfigurou. Passaram a ter pavorosos olhos exorbitados; uma língua semelhante à de um porco ou de um carneiro sai o tempo todo das suas bocas, além dos dentes de javali que as obriga a uma espécie de cacoete medonho. Têm braços e mãos de bronze e asas de ouro nas costas. Mas o pior é que os seus olhos globulosos transformam qualquer ser vivo, animais, plantas ou seres humanos em pedra assim que se cruza o olhar: o dom mágico que permite transformar o orgânico em inorgânico, o vivo em pedra ou em metal, representa uma ameaça direta à harmonia e à preservação da ordem cósmica inteira. Na verdade, se assim quiserem ou lhes permitirem, semelhantes seres podem aniquilar o trabalho de Zeus. É então vital para o cosmos que, quando necessário, eles sejam enviados de volta a seus lugares. Acontece porém que, das três Górgonas, duas são imortais e apenas uma mortal. Já era tempo de se liquidar pelo menos esta que pode ser liquidada, e é Perseu quem vai se encarregar disso.

A primeira etapa para Perseu consiste em procurar as assim chamadas "Greias". Três irmãs que são também irmãs das Górgonas. Todas têm os mesmos pais, igualmente apavorantes, dois gigantescos monstros marinhos, Fôreis e Ceto. As Greias têm como missão guardar o caminho que leva às Górgonas e, mesmo que pessoalmente ignorem a moradia exata delas, pelo menos sabem de ninfas que, com certeza, têm a informação. Caso Perseu consiga fazer as Greias falarem, poderá em seguida consultar as tais ninfas, numa segunda etapa do périplo. Mas as Greias não são fáceis. A sua maneira, são verdadeiros monstros, e é preciso ter cuidado: são famosas por devorarem rapazes quando bem entendem.

Como prova disso, as Greias têm duas características assustadoras. A primeira é que já nasceram velhas. A segunda característica é que as três têm só um olho e só um dente! Imagine só a cena: o tempo todo, sem parar, elas passam de uma para a outra o olho e o dente, que giram incessantemente nesse revezamento infernal.

Perseu é um herói, e, como você pode imaginar, nessa primeira façanha ele se sai bem. Rápido como o relâmpago, consegue subtrair os dois órgãos, e são as três velhas que passam a ficar aterrorizadas, pondo-se a berrar: elas são imortais, mas, sem o olho e o dente, a vida delas vai se tornar um inferno. Se não lhe disserem onde encontrar as ninfas que sabem onde se encontram as Górgonas, ele não lhes devolve os seus bens. E se assim escolherem, vão passar todo o restante da eternidade sem enxergar nem comer. Reclamando muito, as velhas aceitam. Indicam o caminho das ninfas, que elas deviam guardar. Muito honesto, Perseu lhes devolve o olho e o dente e sai rápido dali.

Ao contrário das três bruxas, as ninfas são tão bonitas quanto acolhedoras. Recebem Perseu com todo carinho. Não colocam a menor dificuldade para dizer onde encontrar as Górgonas. Mais ainda, chegam a oferecer presentes de valor inestimável, dotados de poderes mágicos sem os quais Perseu na verdade não teria a menor chance de alcançar o seu objeto. Para começar, oferecem sandálias aladas iguais às de Hermes, calçados que permitem que se voe no céu a toda velocidade, como um pássaro ou até mais rápido. Em seguida, dão o famoso capacete de Ha­des, um chapéu de pele de cachorro que torna invisível quem o usa — o que faz com que Perseu possa escapar da perseguição das duas Górgonas imortais, que vão querer vingar a irmã. Por último oferecem uma espécie de bornal, esse saco em que os caçadores colocam a caça já morta, para que Perseu possa guardar com segurança a cabeça da Górgona, depois de cortada. É preciso que saiba que seus olhos, mesmo com ela já morta, eternamente continuam a petrificar tudo aquilo por que passarem: é então extremamente prudente, para não dizer vital, mante-los sob controle. Aos três presentes, Hermes acrescenta uma faca. Em todo caso, um instrumento afiado que também é mágico: por mais duro e resistente que seja o que cair sob a sua lâmina, ele corta.

Mais uma vez, a tarefa não é fácil e ele precisa da ajuda de Atena. De fato, como cortar a cabeça da horrível Medusa sem correr o risco de cruzar o olhar com ela? Para executar semelhante trabalho, é preciso enxergar o que se faz. E é o que inexoravelmente o exporia à morte certa! Felizmente Atena pensou em tudo. Trouxe seu famoso escudo. Sendo lustroso e brilhante, ele vai servir de espelho. Ela se coloca atrás de Medusa, que está dormindo, enquanto Perseu se aproxima, silencioso como um gato. Ele vê no espelho o reflexo do rosto de Medusa: mesmo que ela o olhe, não há perigo, pois é apenas uma imagem e não a realidade. A partir daí, nada mais fácil do que cortar a horrível cabeça e colocá-la no bornal. Mas as duas outras Górgonas acordam. Imediatamente Perseu veste o chapéu de Hades que o torna invisível e os calçados de Hermes que lhe permitem fugir como o vento.

No caminho de volta para Sérifo, onde vai encontrar a mãe, Dânae, e entregar a cabeça de Medusa a Polidectes, estando nos ares, em pleno céu, ele vê aquela que vai se tornar sua mulher: a bela Andrômeda, que está numa péssima situação. No momento em que Perseu passa lá por cima, Andrômeda na verdade está acorrentada na encosta de um penhasco, num abismo acima do mar, onde a espera um monstro abominável! Qual pior situação se pode imaginar? Por quê? Sua mãe, Cassiopeia, que é mulher de Cefeu, rei da Etiópia, teve a péssima ideia, assim como Medusa com Atena, de desafiar divindades nada desprezíveis, no caso as Nereidas, filhas de Nereu, um dos mais antigos deuses do mar, inclusive anterior a Poseidon. Ela de fato as tinha insultado, pretendendo ultrapassá-las muito facilmente em matéria de beleza — algo que significa, como você já sabe, cometer por excelência o pecado de hybris. As Nereidas têm como melhor amigo Poseidon, que também se irrita com a estúpida pretensão. Para punir a insolente, ele envia um maremoto e, junto, um monstro marinho que passa a aterrorizar a região. Existe um único meio que pode acalmá-lo: entregar-lhe para comer a filha do rei, a bela Andrômeda. E Cefeu, com a alma em frangalhos, acaba aceitando. Por isso Andrômeda está amarrada naquele rochedo, aguardando um fim medonho, assim que o monstro resolver vir buscá-la. Perseu não hesita um segundo. Promete a Cefeu libertar a bela. Em troca, pede apenas que ela se torne sua mulher. Negócio feito. Com seu podão, sandálias aladas e capacete da invisibilidade, ele não tem a menor dificuldade para matar a fera, libertar a bela e levá-la de volta à terra. Todos ficam encantados, exceto um certo Fineu, tio de Andrômeda, que devia justamente se casar com ela. Tenta então se livrar de Perseu, que saca a cabeça da Górgona do bornal e imediatamente o transforma em pedra.

De volta a Sérifo, Perseu encontra sua mãe que havia fugido com Dictis para um templo, tentando escapar da violência de Polidec-tes. Ele penetrou no palácio num momento em que Polidectes havia convidado seus amigos e, desviando os olhos (para não ser ele próprio petrificado), mostrou a todos a cabeça da Górgona. Os convivas (inclusive, é claro, Polidectes) foram logo transformados em pedra, cada um na exata postura em que se encontrava (imagine só o quadro: uns bebendo vinho, outros no espanto de ver a entrada de Perseu, Polidectes certamente cheio de curiosidade e apreensão etc.). Depois de tornar Dictis rei de Sérifo (Polidectes, que virou estátua, está morto e seu irmão justo e bom o sucede no trono), Perseu devolve as sandálias, o bornal e o capacete a Hermes e dá a Atena a cabeça da Górgona. Hermes devolve os objetos em questão às ninfas e Atena coloca a cabeça da Górgona no centro do seu escudo (não esqueça que ela é também a deusa da guerra e que com a cabeça de Medusa ela pode literalmente "petrificar" de medo todos os inimigos).

Última sequência, inevitável: é preciso que o oráculo se cumpra e que Acrísio seja punido por sua maldade e egoísmo. Acompanhado por Andrômeda, que passa a ser sua mulher, e a mãe, Perseu decide voltar a Argos. Bom príncipe que ele é, já havia perdoado o avô. Não lhe quer mal, pois sabe que no fundo Acrísio fez tudo aquilo por medo de o oráculo se realizar. Quer lhe dar o seu perdão. Mas Acrísio, ao saber que Perseu está a caminho, fica aterrorizado com a ideia do cumprimento do oráculo. E rapidamente foge para outra cidade, Larissa, onde pede proteção ao rei, um certo Teutâmides. Este último está em plena organização de jogos atléticos, espécie de competição pelas quais os gregos eram loucos naquela época, com jovens disputando em todo tipo de modalidade esportiva. Acrísio é convidado pelo amigo para assistir ao espetáculo da tribuna. Ao saber que jogos se realizavam nas proximidades de Argos, justamente no seu caminho, Perseu não resiste à tentação de participar. Ele é excelente lançador de disco. Por falta de sorte, o primeiro disco que ele lança cai com toda força no pé de Acrísio, que morre na mesma hora.

N
ão me pergunte como um disco que cai no pé de alguém pode causar assim a sua morte. Isso não importa. O que conta é que a justiça se faz e o destino — que não passa de outra maneira de se chamar a ordem cósmica — reassume seus direitos. Tudo entra em sua ordem, e Perseu vai poder seguir tranquilamente o curso da sua vida, entre a mãe e a esposa, assim como os filhos que esta última não deixará de gerar. Ao morrer, Zeus, seu pai, concede o insigne favor para um mortal. Recompensando sua coragem e contribuição para a sustentação da ordem cósmica, Per­seu é inscrito por toda a eternidade na abóbada celeste, sob a forma de constelação que, ao que dizem, traça o desenho do seu rosto.

Referência Bibliográfica:
FERRY, Luc. Aprender a viver II: A sabedoria dos mitos gregos. Rio de Janeiro. Editora Objetiva, 2009.